sábado, 29 de setembro de 2018

A aluna no. 1





                 Onde já se viu isso? Ela não se contentava com a aula dada em sua sala e vinha e ficava sentadinha na sala da outra turma, onde ele, de novo, tratava do mesmo tema, abordando a primeira geração romântica, poemas de Gonçalves Dias.  Deparou-se com aquela estampa de garota e então procurou esmerar-se ao discorrer sobre o poeta:
            - Vocês podem reparar que não existe nenhum adjetivo no poema. Ele enaltece a terra em que nasceu se valendo de um recurso. Qual? A comparação: Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá/as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá. O Romantismo no Brasil se iniciava assim. O Brasil querendo ser, se achar, como se diz na linguagem atual, daí o nacionalismo.
            O jeans em ajuste no corpo da Vênus. Ela estaria gostando da aula, era? Ou dele? Sentada na mesinha da carteira escolar, ao fundo, atenta. Podia? Pernas cruzadas. Controle de classe, soprava-lhe a censura. Deu seu recado finalizando a aula e ia se dirigindo para o intervalo, quando da algazarra do corredor uma voz se distinguiu:
            - Professor.
            Voltou-se para a moça, que falou sobre o que mesmo? Deu explicações sobre o que mesmo? Viu de perto seus olhos miúdos e negros num rosto de um moreno indiático que mostrava o detalhe das orelhas - pequenas, bem desenhadas - .num meneio de cabelos negros. 
            - O senhor me  empresta Gonçalves Dias, meio cantada sua voz.
          Pegou o exemplar de bolso, que  trazia à mão, e entregou a Joice:
-  Devolva-me  depois. Poemas da primeira fase  romântica, nacionalismo.
- Amanhã – respondeu Joice, interessada.  Posso lhe pedir uma coisa. O Senhor me dá uma carona.
- Claro. Na saída.
            Quando veio o momento de saída, viu um pouco adiante do portão aquela garota com os livros apoiados no peito, dentre eles o de Gonçalves Dias. Parou o veículo e pediu que Vilma, que estava de carona,  se ajeitasse, para ela passar.
            Tomaria uma antes do avançar das horas.  O corsa encontrou uma posição boa em meio aos outros veículos
            - `Só uma gelada e daqui eu desço para casa, falou     Vilma.
            Desceu primeiro, abriu as portas do veículo para cuidar do desembarque das damas.
            - Essa história de cavalheirismo é só até passar as eleições, brincou Gustavo.
- Votar a gente vota, mas garantia nenhuma, completou Vilma.
            - Pela pesquisa, o homem vai ser reeleito com tranquilidade, retornou
Gustavo.
            - É, mas o preocupante é isso daí: “tranquilidade”. Boto fé nessa pesquisa não.
             - Vamos até o fim registrar meu protesto. Vai que ainda chega a um segundo turno.
              - Deus te ouça, concluiu  Vilma, até que passaram a outro assunto, depois Vilma desceu, conforme haviam combinado, e eles ficaram frente a frente. Ela estava com uma blusa marrom por cima do uniforme do colégio, que tinha vestido sem que se percebesse. “... essas meninas...”, pensou com seus botões. Rápido disfarce de costume, com um retoque do batom, e aí era uma garota comum, como tantas outras, e não uma estudante matando aula.           
_Fizmeu curso regado a cerveja, discutindo literatura. Altos papo a oras tantas ou tontas, já encaixando poesia, e assim curtia o tempo, lances de conhecimento e troca de idéias.
              _ Bacana! – falou Joice admirada. _ Ótimo esse “horas tontas”.
              _ É. Mais uma e outra, ficava-se leve e ia fluindo a prosa.
              _ Imagin

Marilene





As meninas internas – naquele uniforme de calça marrom, camisa branca de gola polo e tênis (só encontráveis nas lojas Leão de Ouro), eram decentes. Além de decentes, prendadas e bonitas. Que mais! Com direito a pose, mas sem se importarem com o exercício desse direito – ausência que antes de qualquer coisa dava nelas mais encanto. Tocavam guitarra, dançavam balé. Quem se entrosava com elas fazendo número de dança no teatro, que ficava no térreo do prédio, como figurante, nos eventos culturais, era Paulo -  uma maneira de a gente também estar próximo delas e poder sonhar. Como só havia três meninos na turma, Paulo tinha que ser colega chegado. E viva Paulo, que dava notícia delas para gente.Do tipo assim: que elas eram órfãs, de outro Estado, uma delas até era sobrinha de irmã Catarina, nossa Orientadora Educacional do SOE. Nada mais que isso sabíamos.

Ela, a preferida, de nome humilde, Marilene Andrade, era branca dos cabelos negros, de róseo rosto com pontinhas ligeiramente perceptíveis de espinhas. Leve, numa magreza normal de ginasiana bem cuidada, o que podia ser notado facilmente na hora de dar a saída de bola no jogo de vôlei. Com estilo, no short marrom desenhando um bronzeado normal, ia para o saque. Erguia-se e levantava com classe de bailarina a bola para a colega fazer belas cortadas e acrescentar pontos no placar. Depois, nos saltos de contentamento, caminhava de volta para o saque no fundo da quadra. Classe.Sempre. E a gente na torcida curtindo, enquanto aguardava a vez de enfrentar o time vencedor, no quem ganhar chama.

A gente tinha mais era que ficar assim, na torcida, sem pisar a sério o chão da realidade, naquele ano de 1976, para que tudo não se conduzisse de forma inexorável, uma manhã sucedendo a outra, o mesmo cheiro matinal de café com leite e  pão francês. Melhor que ficássemos pelo resto de vida só acompanhando o jogo: o saque de Marilene, a cortada de sua colega, cujo nome me foge, mas não me foge o contrabaixo que ela tocava legal com Marilene. Elas tocavam brincando, sem fazer qualquer esforço. Sentavam juntas, andavam juntas afinal. Era mais forte, como se fosse irmã mais velha, mas de mesma jovialidade estampada. Deviam ter o entendimento comum.  Suas notas eram as mesmas, acima de oito, nove, geralmente dez, variavam de forma imperceptível.  

A sobrinha de irmã Catarina, que não tocava nenhum instrumento,  foi quem chegou a nos dar ousadia, mas era do tipo sem segredos nem encantos.  Minha câmera invisível parecia filmar o movimento delas duas pela manhã, desde a fila que se formava para  cantar o Hino Nacional -  obrigatório -  até o acesso as salas de aula, no primeiro andar. Mas vez por outra o acesso era para entrar no teatro do colégio, aberto para alguma apresentação ocasional ou periodicamente para fazer a avaliarão da unidade, através de uma espécie de vestibular simulado. Minha câmera invisível acompanhava nesse dia um evento cultural, em que as meninas tocavam violão e um coral cantava uma canção de Doriival Cayme, um drama do pescador em Suíte de Pescador:

Minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar, meu bem querer
Se Deus quiser quando eu voltar do mar

Um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar
E a Deus do céu vamos agradecer
Adeus, adeus
Pescador não esqueça de mim
Vou rezar pra ter bom tempo, meu nêgo
Pra não ter tempo ruim
Vou fazer sua caminha macia
Perfumada com alecrim

Não precisa dizer que o adolescente, vindo do interior, viu ali o máximo de apresentação artística e carregaria por toda vida aquela dor: a mulher do pescador, que vinha até a beira do palco para entoar o adeus, adeus, e os “pescadores” (meia dúzia de garotas bailarinas) indo até a outra margem do palco. Antes desse número, houve apresentação de um sapateado com Paulo (filho de português) e uma garota de outra turma, que era espanhola (tocava violoncelo, diria Paulo depois), e nós dissemos que era namorada de Paulo, tanto era nosso o desejo adolescente na garota. Confesso aqui uma traição: mal tivemos essa prosa, Paulo acabou se apaixonando pela espanhola e, por tabela, todos nós mergulhamos também nessa penumbra da paixão, e Paulo me encarregou de fazer depois uma carta para a garota, em que pude derramar todo meu amor por... Marilene(cuja conduta exemplar me influenciaria dali para frente). 

Aconteceu de eu ter de fingir de paixão pela espanhola e escrever essa carta para a garota por encomenda de Paulo, que era um pouco mais amadurecido, e ia cortando os excessos  dos meus arroubos juvenis ao passar a limpo o texto. Creio que foi assim, sob esse amor platônico, que iniciamos aquele ano letivo de 76, que vinha grafado clandestinamente no muro do colégio recém pintado.