Ao que parece, tudo teve
início naquela noite de sobrevoo, momento de transfiguração, em que passara a
enxergar o telhado de sua casa, a caixa d”´água
e as roupas do varal, com o detalhe da camiseta do colégio, que, ao se
vê distanciando, tremulava como aceno, quando o medo, de estalo, na mesma
leveza, fez com que voltasse ao corpo, no aconchego do leito, um homem viajado, de revirar o mundo em
segundos.
- Você foi abduzido, cara!
ponderou Thelma ao final do relato de Flávio.
_ Mas eu fiquei com medo e
acordei logo. O momento em que eu flutuava fora do corpo...
_ Esse é o ponto, pince,
aperte a tecla pause e tente recobrar .
_ Me vi afastado do corpo com
o pessoal que se anunciava como amigo. Conversamos em silêncio.
_ Como assim?
_ Por dentro, decodificando
tudo, ao modo de Ìsis. E eles não acharam ruim quando eu quis voltar.
Entenderam e deixaram. Foi rápido, então praticamente esqueci quando acordei, como
de um sonho qualquer.
Thelma disse, corrigindo-se,
que o caso era de uma quase abdução, que não fora dessa vez. Ele guardava dentro de si que Ísis viera para
prestar aquele auxílio, como em missão, conforme dissera antes de partir.
_ Concordo porque eu estava em
desespero naquele dia que marcamos para conversar, quando ela me chamou para
levar um papo.
_ Pois eu já estava calmo
antes, tanto que cheguei em grande
estilo, inspirado e me deparei com aquela garota, ela tão bacana, não é?
Enquanto mantinha esse
diálogo, Flávio percebeu que o pai se aproximava deles:
_ Está velho, eu vi isso no
rosto dele, depois pelo corpo como um todo, nada mais se salva da crueldade do
tempo. Notei que ele está murcho, sua voz está murcha, suas músicas estão
murchas... e a partir dessa visão saí pelas ruas e vi muita gente murcha...Meu
Deus, e eu que tinha ainda na cabeça o eterno moço bom, Roberto Carlos... pois
Roberto Carlos está velho, meninos e, cá para nós, falou meio em segredo,
ficando feio.
O pai de Flávio falava com
conhecimento de causa. Era dessa geração
que fez “carreira” de fã com a
turma da jovem guarda e, do outro lado da moeda, da MPB, música engajada, tropicália, e falava de seus ídolos com
entusiasmo mas agora se manifestava sobre o assunto meio borocochô.
_ Quem já foi Zunga? Menino
que toda mãe queria ter. Leia o artigo daquele jornalista, que também foi um
político sacana, não desses sacanas de hoje em dia, mas como é mesmo o nome
dele?
Lá depois de algum tempo,
vinha seu Félix lembrando do jornalista;
- Lacerda... Carlos Lacerda! Em artigo
brilhante, ele fala do sucesso do menino Roberto Carlos...
- Marcou toda uma época, seu Félix, mas o tempo
é realmente cruel. Tudo tem seu tempo, como se diz. Não se pode banhar na mesma
fonte. E olhe que hoje o tempo é em ritmo de internet. As coisas parecem ficar
velhas logo, descartáveis.... Não há segredos nem sortilégios. Roberto Carlos
já se deu por demais... Alguém tem que dizer isso a ele..., Thelma, de outra
geração, deu seu parecer.
Flávio, que também curtia
Roberto Carlos, achou que sua data de validade, se é que assim pode se
considerar, chegara a termo, e silenciosamente ficou lembrando de um verso que
lera alhures: Chega um dia em que o dia
se termina, antes que a noite caia inteiramente. Mas como valeu a pena ir
até ali, como a copa de 70, os gols de Jairzinho e Pelé, tudo emoldurando-se em
quadros, que ficam: É A VIDA, pensou finalmente em dizer e disse para encerrar o papo.
Verão
de 2020.