Elzeni Cunegundes Nunes Jorge
Teríamos um novo professor de Português na escola. Meio de
semestre, houve uma mudança repentina pelo fato de o anterior ter-se mudando de
cidade. Era missionário, foi enviado pela igreja a outra região. O novato seria
um advogado, filho de um influente político da cidade, mas se formara na
capital e havia retornado à cidade há pouco. Jovem ainda, pelas informações que
me passaram. Eu não o conhecia. Seria um engomadinho com linguagem empolada,
metido a intelectual, logo pensei, revirando os olhos. Não me fazia muita
diferença, visto que o anterior também era meu antagonista. Explico. Não nos
dávamos bem por vários motivos, e o primeiro era o fato de ele manter o hábito
horroroso de assediar as alunas. Fazia vistas grossas nos erros das provas em
troca de um sorriso meigo, uma carícia nas mãos... como era uma adolescente
“nariz empinado”, nunca cedi. Isso afetava meus brios, primeiro porque Língua
Portuguesa sempre foi minha matéria preferida. Redação era meu forte, até
ganhei uma medalha de bronze (e não ouro, que afronta!) num concurso de redação
oferecido pelo colégio uns dois ou três anos antes. Segundo porque era nojenta
essa conduta. Ainda que fosse outra matéria (Matemática, meu fraco), eu jamais
cederia, não fazia parte dos meus princípios. Lembro-me de uma vez em que ele
aplicou uma prova com todas as questões objetivas e eu gabaritei. Valia 10 e
ele me deu 8. Fui questionar, ele não levou a sério. Tentei de todas as formas
requerer minha nota por direito, mas não recebi apoio. Procurar a secretaria
seria a solução, se eu contasse com um suporte e informação suficientes, mas
meus pais nunca se interessaram em se envolver com nossa vida escolar, mantendo
o costume arcaico, de quando os professores eram autoridades máximas e o aluno
tinha que ser subalterno em todas as circunstâncias. Anos 90, ninguém se
importava muito com defesa de direitos. Resultado, fecharia o ano com 38 pontos
totais em Língua Portuguesa, quando o total eram 40 pontos e, para “passar
direto” (sem precisar fazer prova de recuperação), eram necessários apenas 28
pontos. Quando eu ia reclamar com alguém, já ouvia a frase: “Mas para que você
quer tantos pontos?”. Para efeito de vaidade, ora bolas! Eu sempre me
jactanciei por fazer 40 pontos praticamente todo ano em Língua Portuguesa. Era
esplêndido ouvir a sequência de admiração das pessoas: “nossa, como você
consegue?”; “ai, que inveja!”; “me empresta um pouco da sua inteligência!”. Os
mais despeitados diziam: “Não sei pra que você quer 40 pontos, se 28 são
suficientes para passar”. Sentia-me o máximo!
Sexta-feira, terceiro horário, ele entrou tranquilamente na sala. Alguns alunos
estavam ansiosos, outros curiosos, outros indiferentes. Eu não me encaixava em nenhum
desses grupos, apenas falava comigo mesma: “O senhor vai ter o resto do ano
letivo para conquistar minha confiança”. Não quis emitir minha primeira
impressão, mas a verdade é que eu fui com a cara dele logo à primeira vista.
Mas não iria demonstrar tão cedo, muitas águas ainda deveriam rolar. Após a
apresentação inicial, que foi bem sucinta, asseverou:
__ Tarefa de sondagem, antes de darmos continuidade à matéria de Português.
Cada um de vocês vai me produzir um texto, tema e estilo livre.
Ouviu-se um levantar uníssono de protestos, uma miscelânea de vozes e
reclamações acerca de “ser pego de surpresa”, “não ser bom em redação” (nunca
entendi por que 90% das pessoas carregam esse conceito desde os primórdios da
vida escolar), “não sei por que não começa logo com a matéria” e por aí afora.
Eu permaneci quieta à espera de mais esclarecimentos sobre a tal tarefa de
sondagem, mas minha massa cinzenta já começava a elaborar a sinopse do
conteúdo.
__ Lápis e papel na mão – ele continuou sorridente. – Vocês têm a aula
toda para produzir esse texto, pode ser dissertativo, narração, descrição...
podem usar a imaginação à vontade, tá? Vamos lá!
As contestações foram minguando, os mais espertos já se colocaram a postos para
a escrita, os mais relaxados ainda foram abrir suas mochilas e procurar os
cadernos. Eu já estava com caderno e caneta em mãos desde a entrada do novo
professor. Fechei os olhos por alguns minutos e pensei: “vou narrar um conto, em
primeira pessoa, com narrador personagem”.
Caminhava apressadamente por entre as vielas escuras da mata densa. Era noite
sem lua e o céu ainda estava bastante nublado. A respiração estava ofegante,
acelerei ainda mais os passos ao perceber que alguém me seguia. Senti as pernas
tremeram, onde encontraria socorro? Quanto mais eu andava, mais a estradinha se
estendia à minha frente. Para onde eu estava indo mesmo? Para casa?
Parei um pouco para ter certeza de que meu subconsciente não estava me pregando
peças, fazendo-me delirar. Vi um vulto e desesperei. Gritei, mas mesmo diante
da aproximação do perigo, minha voz não saiu. As pernas estavam cada vez mais
pesadas, e minha solução imediata era procurar me camuflar por entre as
árvores, auxiliada pela opacidade noturna. Quem estaria me perseguindo? E sob
qual justificativa? Senti um líquido grosso e morno escorrer pelo antebraço,
mas mesmo sem conseguir visualizar, impedida pelas trevas, sabia que era
sangue. Precisava encontrar um abrigo, mas onde?
Um pássaro estranho e grande voou baixo, atravessando meu caminho. Recuei por
instinto, mas sabia que meu algoz estava cada vez mais próximo. Parece que
todas as bestas da mata se uniram para assistir minha desventura, visto que dos
dois lados do caminho, por entre árvores e arbustos, dezenas de pares de olhos
brilhavam na escuridão, mas estranhamente tornavam o cenário ainda mais escuro.
Além de assustador, claro.
Senti vontade de chorar, mas as lágrimas insistiam em não vir. Os pés descalços
farfalhavam sobre as folhas ressequidas, ferindo-se constantemente nos espinhos
e arbustos, mas a dor me era quase imperceptível. Sentia, também, um frio quase
insuportável. E nesse cenário estarrecedor, deparei-me com a presença abrupta
da velha Júlia, nossa antiga vizinha. Ela agitava os braços freneticamente e
falava um amontoado de palavras que eu não compreendia. Mas ela não havia
falecido há anos? Céus, será que morri e não percebi? Não, eu estava vivíssima,
podia comprovar isso pelo frio intenso sobre a pele mal coberta pelo vestidinho
de viscose, o ardor no corte recém-adquirido no antebraço, decerto pelo atrito
nos galhos de alguma árvore espinhenta, e a respiração ofegante, simultânea ao
aceleramento cardíaco.
Não consegui entender as palavras da velha senhora, que acabou ficando para
trás, mas logo percebi que se tratava de um aviso: logo à frente estava um
abismo ainda mais escuro que a negritude que me envolvia. Gritei, mas minha voz
não saía. Não poderia retroceder, meu algoz estava a poucos metros de me
alcançar. Desconhecia aquele lugar e não entendia como havia ido parar ali. De
repente senti algo me puxando para dentro do abismo, gritei novamente e dessa
vez o som do meu grito irrompeu por todo o ambiente, produzindo ondas quase
insuportáveis de vibração nos meus tímpanos. Fechei os olhos, a morte parecia
inevitável.
Num piscar de olhos tudo mudou. Abri os olhos e me deparei com o teto do meu
quarto, precariamente iluminado pelos raios da lua cheia que penetravam entre
os vãos da persiana. O grito ainda ecoava no silêncio do quarto.
Minha tarefa de sondagem estava pronta. Revisei apressadamente a ortografia,
passei o texto a limpo e coloquei o nome e a identificação da turma no final da
página, fiquei sem saber como criar um título, então deixei sem. A sirene
tocou, indicando o final da aula. Entreguei a folha diretamente nas mãos do
professor, que seguiu para outra turma. O danado saiu ileso do primeiro dia de
aula, sem trabalho nenhum. Mas eu gostei da estratégia dele.
Passado do fim de semana, retornamos às aulas. Não estava ansiosa acerca da
avaliação das atividades, na verdade nem me lembrava mais dela. O horário da
aula de Português naquela segunda-feira era o último. O professor iniciou a
aula devolvendo a atividade corrigida. No meu texto não havia nenhuma marcação
em vermelho, como de costume. Na primeira linha que deixei vaga ele acrescentou
em tinta preta, com letra de médico, um título: “Pesadelo”. Achei meio pobre e
“lugar comum”, mas não reclamaria jamais. Seria falta de ética e até de
educação.
Após a entrega de todas as atividades ele iniciou seu discurso de avaliação
geral do desempenho da turma.
__ Desculpando-me a sinceridade, vocês estão péssimos em matéria de produção de
texto.
Feriu-me tais palavras. Tudo bem que não havia feito grande esforço para
produzir meu conto, mas merecia um pouquinho de consideração ao menos pela
ausência de erros gramaticais. Não iria contestar, não queria deixar a marca de
aluna rebelde nesses primeiros momentos. Ele continuou seu sermão:
__ Vejo que dois podem ter sido os motivos desse desempenho tão negativo. O
primeiro certamente é a falta de interesse da parte de cada um, e o segundo a
ausência de conteúdo literário. O brasileiro lê pouco, vocês estão seguindo
essa estatística. Com isso já pude entender que precisamos trabalhar muita
leitura e produção de texto no decorrer das nossas atividades.
A turma continuava em silêncio, mas ninguém reclamou. Afinal, todos estavam
convencidos de que ele tinha razão. Eu não via interesse por parte de nenhum
dos demais em ser bem sucedido na matéria de redação. Senti-me um pássaro raro,
uma ambiciosa. Antes que o desânimo me abatesse, ouvi uma ressalva:
__ A bem da verdade, só há um texto em toda a turma que salvou todos vocês do
fiasco. Texto muito bem produzido, linguagem clara e total ausência de desvios
gramaticais – olhando na sua agenda, completou. – O texto de uma tal de...
Ouvi meu nome, não com surpresa, mas com satisfação. Meu ego inflou-se. E como
era de costume, ouviu-se um ressoar de “Ah, pra mim não é surpresa”, “Ficaria
surpresa é se o dela também fosse péssimo” e “Já sabia que estava faltando
alguma palavra acerca do texto dela”. E foi assim que o novo professor de
Português conseguiu meu respeito e admiração, tornando-se no decorrer dos anos
seguintes, um dos maiores incentivadores da minha doce tarefa de escrever.