1. ÍSIS
Bateu em Flávio uma imensa
vontade de levá-la para feliz casa, quando a viu aquela primeira vez, de tanto que a
achou interessante, musa, mágica, inebriante; a mãe, com seu manto de proteção,
podia cuidar desse desejo de filho, com reforço das tias.
Estrela. Ela parecendo de
outro planeta Terra, mas sem os fios de controle, só “elazinha” assim.
Chocolate, sonho partilhado às escondidas, mas sem pressa. Ela era pequena e
grande. Ocupava duas posições ao mesmo tempo. Se a mãe soubesse, dava-se jeito.
Porque mãe é mãe. Não estava dando jeito na situação dele e Telma, mas veria
isso depois.
É que agora se sentia
contagiado por aquela presença repentina, vindo do nada, presença silenciosa de
imponente visibilidade, o que o impulsionava ao mundo poético, cachoeiras,
cascatas, cheiro de terra e mato verde.
Tirava-lhe dos ombros o peso de preocupação do que iria ouvir de Telma,
que estava para chegar, conforme combinado.
_ Eu quero mais é chuva de
cântaros, mel de abelhas de encher vidro usado desses de balas marca Oriente
que vem no ônibus Belavista, ao simples golpe de facão, em árvore de um matagal
próximo, nos arredores da cidade em expansão, em dia de folga, em que pais saem
para um passeio bucólico, foi declarando Flávio para início de conversa,
alegre, com cheiro de chuva por perto.
A garota, que sem saber como
nem de onde chegara ali naquela lanchonete da pracinha, acolheu suas palavras
e, estampado sorriso, se fez ouvida da seguinte mensagem:
_ A gente tem que acordar
feliz, junto com o dia, que para esse itinerário nasce, apesar das intempéries,
pareceu responder a garota.
_ Pensando bem, prosseguiu
ela: _ Por que, no geral, nascemos com sentimento de culpa, que devíamos deixar
em aberto?
Até nisso era diferente, a sua
fala não era fala propriamente dita mas semelhante, que nesse sistema, base de
um entendimento mútuo, os dois estavam se comunicando.
Isis – era seu nome – parecia
dizer e, parecendo falar, perguntou silenciosamente no que ele estava pensando?
_ Gostaria de estar tomando sorvete
lá na avenida... com você, respondeu Flávio seguindo a mesma espontaneidade
encontrada de início, quando tinha comparecido ali para tratar de um acerto de
contas com outra pessoa, noutros termos.
Isis sorriu como que
comunicando que não havia nenhum empecilho e sugeriu deixar para outro dia,
melhor gastar as horas de mais conhecimento ali e apontou a sombra de uma
árvore para onde seguiram e se acomodaram.
_ Algumas perguntas, que ficam
coçando a gente feito um formigueiro, disse
Flávio.
- Pode perguntar, ela respondeu
no seu jeito peculiar de se expressar.
- Por que com você a gente não
quer ir embora. Isis, disse, saboreando a pronúncia do seu nome. Por que essa
vontade de te levar para casa, Isis? prosseguiu questionando e sentindo-se à
vontade.
_ Com o tempo você vai
descobrir por você mesmo. Por ora, vamos num papo normal.
E todos os presentes, como
figurantes, pareciam achar tudo nos eixos, como se Isis fosse velha conhecida,
com carruagem esperando lá fora ou algo do tipo, porque ela na realidade se
achava só, trajando jardineira jeans, blusa cor de rosa, tênis bamba brancos,
cabelo castanho claro escondendo no pescoço, num disfarce, uma tatuagem de
borboletinha, que se via vez por outra em flashes de voo cego - charme
especial, que dela emanava naturalmente.
_ Você não disse a que veio e
eu tenho vergonha de perguntar, Ísis, argumentou Flávio, entregando-se de
bandeja, como diria a galera.
- Você não devia passar por
isso, Flávio, pontuou bem as palavras Isis, pegando-lhe nos cabelos num gesto
natural de carinho.
Suas palavras faziam Flávio
refletir e lembrar-se de alguma coisa distante, que de momento lhe pegava meio
desprevenido, tateante no escuro, sem uma nesga de visualização explicativa a
que se apegar, senão o que lhe gritava por dentro de forma surda, sem apelos
harmoniosos. Era dessa leiva de raciocínio que lhe fazia deixar fluir a barca
do encontro que tinha agora com Isis. Muita coisa para perguntar que ia
desaparecendo por completo.
_ Entendi, Ísis, disse. _ Bem,
me fale um pouco de onde você veio, quis Flávio saber logo da origem.
Olhou Isis com a suavidade de
um beijo no pescoço por merecimento, que ela pareceu sentir e agradecer em
retribuição a esse seu impulso, já que embarcariam numa viagem, o que levou
Flávio a pedir que a lanchonete, a poucos metros dali, providenciasse sorvete
de coco queimado...
_ O meu é de baunilha com
chocolate, Russo, gritou Isis, simplesmente, e falando como se conhecesse todo
mundo.
Disse nada; esperou. Isis,
diante de tanta modéstia, mencionou com leveza que a vida era aquilo e lambeu o
sorvete de casquinha, que Russo lhe entregava.
_ Tomar sorvete, depois de uma
tarde de calor com prenúncio de chuva, é uma boa, retornou Flávio, em busca de
uma melhor acomodação.
_ Daqui a pouco, depois da
chuva (que já iniciava, de forma calma), o sol abre novamente e é maravilhoso,
previsão de ísis.
Ficaram os dois assim molhando-se
na chuva, que agora ia dando espaço para o sol se estender.
_ De onde eu venho existem
maravilhas, começou saboreando o creme. _ Mas vamos curtir essas pequenas
maravilhas daqui. Afinal, vamos parar com essa ideia de culpa, que ninguém aqui
tem qualquer culpa, esclareceu Isis.
Nisso passou uma garota
conversando no celular que acenou para Flavio em cumprimento.
_ Coisa que aqui vocês vivem o
auge, lá para nós é coisa do passado.
_ O celular?! Como vocês fazem
então para se comunicar, Isis?
Ela sorriu de forma
complacente para Flávio, como quem dizia que era como eles estavam se falando.
Flavio sorriu concordando em resposta: ‘ah, tinha esquecido. ”
_ Mas vocês têm ainda muito o
que evoluir. Noutras coisas também.
Depois, virou-se para Flavio:
- Chame aquela garota pra mim,
Flávio, quero falar com ela em particular um instante.
Era uma ordem ou um pedido?
Ísis não pedia nem ordenava. Era só complacência entre eles. Flávio se encheu
ao ouvir Isis pronunciar seu nome. Trouxe Telma até ela, e ao sair gritou de longe, com a mão em concha
na boca, como que em segredo:
_ Demora com ela não, Telma, que vou querer
Ísis pra mim.
Calculou umas duas horas de
relógio a conversa entre as duas garotas. Flávio, inquieto, cronometrava no
celular, enquanto passeava os olhos pela pracinha, de iniciada decoração
natalina. Telma, por certo despejaria nesse papo suas gulodices de vida, de
acordo com o mundo que lhe era apresentado diariamente, tanto que entre eles
eram só cumprimentos, sem delongas, e pronto, desde que romperam o
relacionamento sério de quase um ano. Marcaram para ter uma conversa mas agora
só queria estar com Isis. E ao que se cuida, Telma também, porque a prosa entre
as duas fluía bem naquela manhã de indeciso sol e desembocados desejos. O que
tanto falavam? Sentia falta de Ísis, e Telma se aproximava dela cada vez mais,
a ponto disso resultar num abraço como se um gol fosse marcado num Maracanã
lotado com passe magistral de Ísis.
_Quem fez gol aí? perguntou no
estalo.
- Bom sentar, disse Ísis.
_ Ísis me botou cara a cara
com o gol, Flávio, disse Telma
explodindo de contente e dando-lhe os braços. _. Vamos lá em sua casa, Flavio,
vamos, e ísis também vai com a gente. Vamos!
_ Vocês já se ajeitaram,
missão cumprida, agora vou-me embora, despediu-se Ísis sem manifestação de
nada, sorriso estampado/sumindo-se no meio da claridade, em plena praça. Depois
ninguém testemunhou para reforçar essa história, que ficou como um segredo
entre Telma e Flávio, cada vez mais juntos para relembrar os ensinamentos de
Ísis, num dia propício para, em vez de preocupar-se com coisas vazias, encher
de mel pote-de-vidro-usado-de balas marca oriente ou tomar sorvete com quem
ama.
Verão
de 2020