A
filha que bateu na mãe e virou cadela
Para Zeca Bahia
Na
feira livre de Candiba aparecia vez por outra um vendedor diferente dos demais.
Daqueles que davam verdadeiros espetáculos para vender seu produto. Não. Nada
de vendedor de remédio contra picada de cobra ou vitamina para galinhas e
porcos. Chamava a atenção de todos. Logo um círculo de pessoas se formava em volta. Duvido que conseguisse vender bem. Mesmo porque havia muitos
analfabetos. De nada adiantaria ter em mãos aqueles livrinhos de versos. Hoje
sei que se tratava de literatura de cordel: lindas, tristes e fantásticas
estórias contadas em versos. Daí que o interesse maior não era apenas pelos
romances, ilustrados com xilogravuras, mas pela leitura e resenha que deles fazia o
vendedor com fala nordestina, resumindo a estória.
- Leiam A peleja de Riachão e o Diabo -
e recitava de viva voz:
Riachão ‘stava cantando
Na cidade do Assu
Quando apareceu um negro
Da espécie de urubu
Tinha a camisa de sola
A calça de couro cru.
Aí
fazia um resumo do duelo um dia enfrentado pelo violeiro Riachão contra o diabo
em figura de gente.
Os
livrinhos se achavam dispersos numa mala aberta de papelão. Uns com capa bem
ilustradas, outros de papel mais ordinário. Alguns ouvintes, atraídos, chegavam
a folhear os livretos, meio vacilantes, quando lá vinha o vendedor:
- Pode
levar, meu amigo. Essa é a estória Peleja de Lampião no Inferno.
Isso, leve os dois: aqui a estória de Cancão de Fogo ou este, uma
estória de amor: O amor do Soldado. Vamos chegando, gente!
Vibrei
naquele sábado de feira livre quando, mal me aproximei do mercado, a voz
nordestina do vencedor já se fazia ecoar:
- A
filha que Bateu na Mãe e Virou Cadela. Leia este formidável romance - e se repetia: - A Filha que Bateu na Mãe e Virou Cadela.
Não
consegui dormir à noite. Ficava imaginando a transformação da filha que bateu
na mãe. Cheguei mesmo a orar temendo que tal infortúnio sucedesse dentro de
minha família. Para mim e para muitos outros não se tratava de pura estória mas de
realidade. Talvez por isso é que quando Arnaldão de seu Braulino, nosso
vizinho, chegou da romaria feita a Bom Jesus da Lapa, eu quase morri de medo
com as coisas que ele contava. Decerto que ouvindo literatura de cordel ou por
invenção própria, já que Arnaldão era nosso contador oficial de estória, ele
saiu com aquilo que o mundo estava prestes a se acabar e que, final dos tempos,
o homem mal iria encontrar carne de sapo para comer.
- Como
é que você soube disso, Arnaldo? - perguntei, coração em bombardeio. E lá vinha
ele explicando que em Bom Jesus da Lapa existe uma espada pendida de umas rochas com uma ponta quase a tocar o chão. Assim que a espada tocasse o chão o mundo
se acabava.
Meu
coração quase à boca. Arnaldo com aquele tom macabro de voz por certo me
tiraria mais uma noite de sono tranqüilo. Em busca de conforto, acabei por
ficar mais amedrontado. Perguntei:
- Ô
Arnaldo, falta muito, né? pra espada fincar no chão.
Ele
cerrou um pouco os olhos e, num tom de fim-de-mundo, respondeu sinalizando com
a mão:
-
Coisa de um palmo e meio.
Eu, que já tinha rezado para que minha irmã não
virasse cadela, fiquei por muito tempo rezando para que a espada da Lapa não
tocasse o chão. E vai ver que foi por isso que o mundo não se acabou mesmo.