domingo, 27 de setembro de 2020

o fuso

 

A cena seguia um ritual simples mas um ritual. Antes de ir para o seu quarto, ela se erguia do sofá com os apetrechos de fiar no colo, algodão, novelos de linha e um instrumento, que hoje minha mãe guarda consigo, como uma cara lembrança: o fuso, que ela, vovozinha, sabia manejar com peculiar destreza. E dele fazer maravilha , essa maravilha  que  me envolve seguro de mim desde tenra infância: “meu cobertor que vovozinha fiou nas noites de espera”.

Interessante é que fazia uso desse cobertor tanto no frio como no calor. Tornara-se um vício: sentir o cobertor, ao menos uma ponta do algodão, com o cheiro de bem lavado que sempre o acompanhava e a gente associava a guarda-roupa da casa de vovó.

Inseparáveis. Éramos eu e o cobertor. Quando chegava o frio era só colocar o cobertor novo por cima. Aconchegante. Dormia aquecido por vovó, carinho que não costumava receber de forma exposta em vida mas recebia agora, após. Carinho tardio mas um carinho afinal. Que importa o tempo! Me pegou adulto e eu valorizo ainda mais porque é o instinto maternal estendendo-se adiante seu abraço de avó. Em reconhecimento é que por vezes, em noites boêmias, até tive que carregar comigo para um hotel e onde quer que fosse a noitada afora. Era uma criança graúda que sentia guarnecida e com toda proteção num sono de despreocupado. Nesses panos de riscado de vovó encontrei minha fidelidade. Uma traição me cobrir com cobertor de cheiro e textura diferentes, que não o riscado esbranquiçado de tantas águas e sabão de bola como devia ser:

“Esse cobertor seu pode lavar na máquina!”  era a mulher dando um trato novo  de manuseio no algodão, para não se descuidar da originalidade.

Contemplo  demoradamente o fuso, aparelhozinho tipo bobina de madeira que em mãos hábeis se tornou responsável por minhas noites de conforto maternal, de um bebê que ainda busca dormir como antigamente, em que se rezava antes e após tomar a benção de vovó.

Mãe, na qualidade de filha mais velha, ficou com o fuso e os novelos linha de algodão deixados por vovó: “Ei, olhe aqui! ” me mostrava como novidade umas bolas de lã. “Tem uma mulher que ainda faz o tecido. Vou encomendar mais uns dois cobertores de riscado.”

Era a presença de vovó na família. 

“Uma mulher forte!”  pensei com um frio sob controle do riscado tecido por vovó, examinando minha garganta antes de adormecer e apagando o candeeiro em seguida, num tempo em que se recolhia sem que de pandemia se ouvisse falar.

 

 


Um comentário:

  1. Texto fabuloso, meu amigo George! Imagem de um cotidiano que nós os cinquentões vivenciamos. Trago essa mesma lembrança das minhas avós, lidando com esses aparatos da tecelagem, algo que se perdeu no tempo mas que foi apreendido habilmente por sua alma poeta.

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