domingo, 6 de fevereiro de 2022

O menino que trazia Bernardo Élis na bagagem

 

  

Todos apreensivos no pátio do ginásio, veio o diretor até o quadro do mural e anunciou em voz alta o primeiro colocado na lista dos aprovados para aquele ano de 1973. O nome do aluno não foi surpresa mas a forma do anúncio sim, mal acostumados que estávamos com presepadas de aluno.

“Quem é Orlando Prado Martins?” perguntou o mestre com autoridade. “Diga a ele que meus parabéns: nota oito e meio!” concluiu o mestre depois de espalhar o terror, motivo de logo haver-se formado um aglomerado de meninos em frente ao mural onde era afixada a relação de aprovados.

Era um garoto diferente. Lando de seu Cizínio (no tempo em que todo mundo tinha seu dono), carregava um elevado grau de perspicácia. Colega do curso da admissão, mas tinha vindo de Goiás,  para  morar com uma irmã mais velha, e já matriculara no quinto ano primário, ao contrário de nós, que ralávamos no quarto ano da professora Elisabete. Um menino que já trazia na bagagem Bernardo Élis e muito choro escondido de órfão aos nove, dez anos.

Logo enturmara-se no meio de amigos de rua, em brincadeiras próprias da idade, de pelada, bola de gude, esconde-esconde,  e troca de novidades, como revistinhas e informações de cinema e circo. Nessas aventuras, era meu parceiro de vestir calça boca de sino e tirar retrato no jardim da pracinha da igreja com pose de playboy.

- Somos primos,  conversávamos olhando num monóculo os primos na moda, no meio da jardinagem de altas gramas.

- Essa moda nunca vai acabar, Cola.

- É a melhor, não está vendo? e maravilhávamos.

Lando era um viciado, essa a palavra, em leitura de revistinhas e livros. Principalmente a de Tex, que não me fascinava, como as de Fantasma, Recruta Zero e Bolota. Fazíamos a troca de gibis então. Nesse negócio de permuta, ouvi certa vez, confuso, de um dos garotos:

- Troquei com Dominguim de Mariinha.

Confuso mas ainda sem rigidez, fui investigar e descobri. Dominguinho, que morava no beco, filho de pais alcoólatras, era literalmente um analfabeto de pai e mãe, mas um moleque do seu tempo, ao seu modo, bom em tudo, no estilingue (parecia uma borracha diferente – o estilingue), na birosca (barulho de bolas azulzinhas no bolso do calção, que hoje seria uma pochete), na natação em lagoas e represas...

- Da turma mesmo só Dominguim atravessou a nado (a represa), dizia-se.

...  na ponta esquerda (batia um peito de pé que dava gosto), na mesinha de sinuca (porque aprendi a jogar com a mão esquerda apesar de destro) e nos trejeitos de artistas de  circo (o trapezista), de cinema (o último a se render),  mas fora da escola, na vida,  que queria manter vivo seu interesse em meio aos meninos letrados da turma.

Para ele, não era muito difícil separar um pouco do seu dinheirinho que conseguia na batalha semanal da caixa de engraxate. Destiná-lo à aquisição de revistinhas infantis de Cavaleiro Negro e Tex e manter aquele círculo de leitura entre amigos era uma prazer enorme. Ninguém notou sua discreta saída, só eu guardei, meio enevoado, esse segredo de menino: Dominguinho comprava as revistas só pelo prazer de participar do círculo de amigos. Uma forma de ser gente e ir-se firmando como tal. Nesse embalo, alguém deve ter dado algum repelão nele para que ele saísse fora, porque tinha esse prazer de emprestar, de ser útil por nós, como quem oferece a melhor fruta do pé, sem estar bichada, perfeita, de Londres, como diria uma amiga de farra, anos mais tarde.

Mas eu quero falar de Lando de seu Sizinio, com quem a gente comentava os filmes da semana, que, encantado, acabou dando notícia da descoberta de um verdadeiro tesouro.

Duas malas a propósito. Cheiinhas de revistas, até de um tal de Buck Jones, Roy Rogers, e muitas de Cavaleiro Negro. Velhas e com cheiro gostoso de aventuras pelo mundo do desconhecido.

- De Delê, amigo de meu irmão mais velho. Seu filho que abriu as malas. Vou pegando aos poucos, e exibiu uma de Buck Jones.

Um dia, tinha acabado de chegar de férias e vi Lando passando na frente de casa.

- Vamos entrar pra ver minhas revistinhas novas que eu trouxe de Montes Claros.

Vinha de férias, como presente pela aprovação na prova do curso de admissão, com a média de cinco vírgula dois, ao que Lando, que passara com oito e meio, replicara:

- Lá em casa dizem que eu não fiz mais que minha obrigação.

Lando, maravilhado, grudou logo uma e pôs-se a ler, que chegou até a deitar-se no sofá para, ao cabo de certo tempo de entretenimento, botar a mão na cabeça, sinalizando desespero:

- Pô, tenho que ir ali comprar um requeijão para o café da tarde. Esqueci, Minha irmã me mata, disse e saiu em disparada.

 Mas quando lá chegou, o moço informou que seu cunhado, não agüentando esperar, tinha ido atrás e comprado o requeijão.

Lando e Dominguim, meus heróis de infância, deixo aqui um abraço.

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário