Todos apreensivos no pátio do ginásio, veio o diretor até o quadro do
mural e anunciou em voz alta o primeiro colocado na lista dos aprovados para
aquele ano de 1973. O nome do aluno não foi surpresa mas a forma do anúncio
sim, mal acostumados que estávamos com presepadas de aluno.
“Quem é Orlando Prado Martins?” perguntou o mestre com autoridade. “Diga
a ele que meus parabéns: nota oito e meio!” concluiu o mestre depois de
espalhar o terror, motivo de logo haver-se formado um aglomerado de meninos em
frente ao mural onde era afixada a relação de aprovados.
Era um garoto diferente. Lando de seu Cizínio (no tempo em que todo mundo tinha seu
dono), carregava um elevado grau de perspicácia. Colega do curso da admissão,
mas tinha vindo de Goiás, para morar com uma irmã mais velha, e já matriculara
no quinto ano primário, ao contrário de nós, que ralávamos no quarto ano da
professora Elisabete. Um menino que já trazia na bagagem Bernardo Élis e muito
choro escondido de órfão aos nove, dez anos.
Logo enturmara-se no meio de amigos de rua, em brincadeiras próprias da
idade, de pelada, bola de gude, esconde-esconde, e troca de novidades, como revistinhas e
informações de cinema e circo. Nessas aventuras, era meu parceiro de vestir
calça boca de sino e tirar retrato no jardim da pracinha da igreja com pose de
playboy.
- Somos primos, conversávamos
olhando num monóculo os primos na moda, no meio da jardinagem de altas gramas.
- Essa moda nunca vai acabar, Cola.
- É a melhor, não está vendo? e maravilhávamos.
Lando era um viciado, essa a palavra, em leitura de revistinhas e livros.
Principalmente a de Tex, que não me
fascinava, como as de Fantasma, Recruta Zero e Bolota. Fazíamos a troca
de gibis então. Nesse negócio de permuta, ouvi certa vez, confuso, de um dos
garotos:
- Troquei com Dominguim de Mariinha.
Confuso mas ainda sem rigidez, fui investigar e descobri. Dominguinho, que
morava no beco, filho de pais alcoólatras, era literalmente um analfabeto de
pai e mãe, mas um moleque do seu tempo, ao seu modo, bom em tudo, no estilingue
(parecia uma borracha diferente – o estilingue), na birosca (barulho de bolas
azulzinhas no bolso do calção, que hoje seria uma pochete), na natação em lagoas
e represas...
- Da turma mesmo só Dominguim atravessou a nado (a represa), dizia-se.
... na ponta esquerda (batia um
peito de pé que dava gosto), na mesinha de sinuca (porque aprendi a jogar com a
mão esquerda apesar de destro) e nos trejeitos de artistas de circo (o trapezista), de cinema (o último a se
render), mas fora da escola, na vida, que queria manter vivo seu interesse em meio
aos meninos letrados da turma.
Para ele, não era muito difícil separar um pouco do seu dinheirinho que
conseguia na batalha semanal da caixa de engraxate. Destiná-lo à aquisição de
revistinhas infantis de Cavaleiro Negro
e Tex e manter aquele círculo de
leitura entre amigos era uma prazer enorme. Ninguém notou sua discreta saída,
só eu guardei, meio enevoado, esse segredo de menino: Dominguinho comprava as
revistas só pelo prazer de participar do círculo de amigos. Uma forma de ser
gente e ir-se firmando como tal. Nesse embalo, alguém deve ter dado algum
repelão nele para que ele saísse fora, porque tinha esse prazer de emprestar,
de ser útil por nós, como quem oferece a melhor fruta do pé, sem estar bichada,
perfeita, de Londres, como diria uma
amiga de farra, anos mais tarde.
Mas eu quero falar de Lando de seu Sizinio, com quem a gente comentava os
filmes da semana, que, encantado, acabou dando notícia da descoberta de um
verdadeiro tesouro.
Duas malas a propósito. Cheiinhas de revistas, até de um tal de Buck Jones, Roy Rogers, e muitas de Cavaleiro
Negro. Velhas e com cheiro gostoso de aventuras pelo mundo do desconhecido.
- De Delê, amigo de meu irmão mais velho. Seu filho que abriu as
malas. Vou pegando aos poucos, e exibiu uma de Buck Jones.
Um dia, tinha acabado de chegar de férias e vi Lando passando na frente
de casa.
- Vamos entrar pra ver minhas revistinhas novas que eu trouxe de Montes
Claros.
Vinha de férias, como presente pela aprovação na prova do curso de
admissão, com a média de cinco vírgula dois, ao que Lando, que passara com oito
e meio, replicara:
- Lá em casa dizem que eu não fiz mais que minha obrigação.
Lando, maravilhado, grudou logo uma e pôs-se a ler, que chegou até a
deitar-se no sofá para, ao cabo de certo tempo de entretenimento, botar a mão
na cabeça, sinalizando desespero:
- Pô, tenho que ir ali comprar um requeijão para o café da tarde. Esqueci,
Minha irmã me mata, disse e saiu em disparada.
Mas quando lá chegou, o moço
informou que seu cunhado, não agüentando esperar, tinha ido atrás e comprado o
requeijão.
Lando e Dominguim, meus heróis de infância, deixo aqui um abraço.
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