quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Camada têxtil

 

O acontecido, essa camada têxtil, esse véu, essa máscara, essa coisa mais parecida com certa manhã, ao despertar de sonhos intranqüilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso, isso não pode ser atribuído à pandemia ou a outra forma de morrer, que eu estou aqui para contar ou pelo menos tentar.

Quando entrei no mundo kafkiano, só à guisa de introdução, até bem pouco tempo, não me conformava com essa transformação de Gregor Samsa sem nenhum protesto das pessoas que o viam prostrado, e em todos esses anos me mantive calado.

Agora eu vejo meu amigo José Roberto morto e não posso dizer que ele se encontra nesta situação. Não posso e não devo. Existe uma firmeza convencional nisso. E é desse segredo que eu quero tratar.

Começo por dizer da visão geral das pessoas, essa de que estão todas mortas num ponto ou noutro. O sigilo não seria uma mão de uma espécie de material têxtil, teia de aranha especial, que faz com que a gente possa ver tudo mas com certas nuances.

 Por exemplo, Josefina não se pinta mais como uma fatal, apesar da crueldade do tempo. Você olha e diz: quem já foi Naninha? José Roberto, vistoso de outros carnavais, já chega num jeito cansado de guerra. E a professora de lingüística, solteirona, ainda é professora e solteira? Ainda fuma? Sônia ainda é noiva ou saiu fora? Muitas dessas figuras lembradas são poeira que se assentou, diante do nosso longo silêncio, outras não, vivem sob o véu, essa camada tênue, que ora pretendo furar.

Ligo para Zé Roberto:

- Morto? Eu? – Zé recusa, nega.

- Você porque não pode ver, Zé, mas é verdade.

- Por causa da minha doença. Eu andei mesmo com...

- Pronto. Corta! – gritei igual a um diretor de cinema.

Com Josefina foi outro papo:

- Me fale então das celebridades, disse ela. Pelé está no hospital.

-  Pelé, também:  Rei morto, Rei posto. Roberto Carlos, depois que Erasmo se foi, eles têm medo do médium pedir parceria nas suas composições.

E por aí a gente enxerga alguma explicação da coisa. Pena não poder expandir-se ao pó e se saber do destino da professora de lingüística nem do corpão de Sônia, com certeza  igualada  a Josefina, que foi maravilhosa.

Assim como não vemos no dia-a-dia o escorrer das estações do ano e o crescimento da barba, damos de invadir a grama de nosso quintal e encontrar figuras kafkianas de verdade e não figuras de linguagem. Assim é a vida. Tudo no seu devido tempo. Baixemos o véu e sosseguemos o facho.

 

 

 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Aula vaga

 

Uma colegial desperta para a vida num dia de aula vaga

 

 Ela não estava atrasada. Pegou o par de tênis devidamente escovado. Ajeitou-se, por fim, no uniforme. À saída, um toque alheatório de lavanda.  Costumes. Podia desaparecer um mundo de coisas, menos sua marca, seu tchan, seu bland, melhor dizendo. A presilha no lado esquerdo do cabelo castanho.  Um chiclete tutti frutti, que até o portão do Colégio seria mascado, depois cuspido fora. E isso tudo era mais um dia que passava em sua vida. Banho tomado, fresca, com seu aroma, saía para o Colégio naquele início de tarde, que prometia nenhum desfecho, senão dentro de uma normalidade que se avizinhava canhestra.

Vida de uma meninazinha. De cidade pequena. Estreita em tudo. Qual seria a hora de crescer? Abraçar o palpável e o impalpável. O que valesse.  Sair dessa tristeza e mergulhar nesse universo desconhecido, que se ia desanuviando aos poucos. Novas imagens. Gente bonita, diferente. Outro papo.

- Boa tarde! – cumprimentou Cerlândia, sozinha no pátio.

Moça sem modos, morava com os tios. Que mais sabia sobre a menina, que fora paquera de seu irmão Erasmo, que rompeu o relacionamento por conta de sua conduta escorregadia? Quando alguém se entusiasmava com ela, ela logo escapava.

- E aí, menina, que dia vai assumir Erasmo e sossegar o facho?

- E ele, Gorete, deixou de ser múmia? - respondeu com outra pergunta, no seu jeito rebelde de ser, segura no seu sorriso em que se destacavam as covinhas do rosto e seus cachos aveludados de cabelo.

Gorete, que estava de aula vaga, achou foi graça e também se abriu num sorriso:

- Que mais? – deu corda.

- Os caras é que ficam atrás de Tina Charles.

- Quem é essa Tina Charles, menina?

- Da música I love to love – respondeu com passos de dança e sacudindo os cachos.

Notou que Cerlândia usava outra calça em lugar da do uniforme, mais cocota, na moda.

- Como é que deixaram você entrar assim?

- Por que você acha que estou aqui fora da sala? – disse e deu de ombros, como se fosse mais uma das suas.

 No outro dia, o sol sairia de qualquer maneira. Uma portaria de censura à aluna seria baixada no mural, com cópia encaminhada para casa dos tios dela, analfabetos, coitados. A sineta do Colégio tocaria na hora do recreio e no final do turno.  E à noite, para algumas, como Cerlândia, haveria Tina Charles no barzinho da praça. Ela já conhecia outros caminhos.  Morara em S. Paulo. Não era tão boba.

Falando de S. Paulo, a garota chegava encher de verde os olhos que já eram verdes. Nesse bate papo, acabou até aceitando ir para S. Paulo no fim de semana, seu maior sonho,  e até combinaram  detalhes.

- Então fica feito o trato pro fim de semana? – Cerlândia quis confirmação.

Deram-se as mãos como arremate do entendimento. Quando Gorete ia entrando em sala de aula, ouviu atrás de si:

- Vai nada,  você não tem coragem, Gorete!

Gorete, que não era mais Gorete, viu que sua vida dependia de uma atitude sua, então resolveu se abrir de vez:

- Eu vou até hoje mesmo, agora!

Juntou livros e cadernos nos peitos e saiu em companhia da garota. Quando deram por fé, estavam as duas na praça, diante de um supermercado, comprando uns pacotes de velas, por sugestão de Gorete.

Estrada vencida sem plano, com histórias que iam sendo contadas, sem pressa, sem nada, em meio a brincadeiras e passos de dança, que chutavam os seixos. Daí que, muito se falou sobre Erasmo, por quem, sem demonstração aparente, estava ela apaixonada.

Um friozinho de beira de serra, de gerais, latidos de cães, iam cortando a prosa que era boa. Podia se ver a cidade lá embaixo com seus pontinhos de luz, quando Gorete gritou:

- As velas! Temos que parar numa dessas casas e pedir pouso.

Pousaram na casa de dona Neném, que fritou ovos com bastante cebola:

- Eu não gosto de cebola!

- Deixa que eu cato, Tina - segredou Gorete na manhãzinha.

Depois foi só o ermo. De um lado e de outro. E então um enjôo, um vazio que ficava e que se produzia por dentro. Nem lembrava da mãe e do pai, mas agora!... E procurava espiar pelas frestas da vegetação do trecho íngreme a trilhar. Estavam perdidas, eis a verdade, que entalava Gorete.

Quando num lampejo vermelho, viu que era a camisa de seu irmão com mais pessoas procurando por ela, então chamou pelo irmão, que veio e a abraçou, ambos em choro. Gorete tinha alguém por ela, afinal.

O que mais pesou, no entanto, foi Tina Charles, Tina Charles não, Cerlândia, sem nenhum parente, vendo o demorado abraço de irmãos, por ela implorar debaixo dos cachos e com humildade de uma  criança que foi longe demais:

- Erasmo, me abrace também.


terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Desconforto

 

LOGLINE: considerada simples embrecho pela família, sua namorada avisa de sua chegada no feriadão, e isto o levaria a um desconforto.  

 

 

Sempre que convocado, um incômodo se lhe disparava por inteiro. Ora com roupa, ora com falta de grana, ora com nada, incômodo simplesmente. Questão Íntima que, desde há muito, como um assombro, já o perseguia.  Tinha que andar com esse desconforto. Afinal, provisório, calculava-se.  E a coisa ia prosseguindo. Até esse impasse como agora. Que rumo tomar? Ela falou que viria passear no feriadão. Que esperasse. Era doida, era? Como que iriam encarar esse recente namoro? Ainda mais  que a mãe, nas vezes que o tinha visto com ela, nas férias, no interior, tomou-o como simples paquera, com  uma observação, que era uma sentença:

- Essa é moça pra casar.

Como se fosse para ele desocupar, nem passar perto.  Ela,  moça feita, ele nem terminara o ensino médio, moleque. Um avião de moça, graúda, não ia deixar passar para mãos alheias, se era para casar,  pois então... E abraçava aquela beleza de corpo. Como se fosse dele.  Misto de proibido e sagrado. Diferença de idade, casamenteira,  essas conversinhas, sustentava a torcida contra. Como se fosse.

- Gol bonito! - ela vinha para o abraço, invadindo a quadra na hora que fazia um gol, nas tardes de “babas”.

- Obrigado, Tesouro.

Iria chegar. Vinha para casa de uma amiga que também morava na Capital. Ainda bem. Imagine se fosse para ficar na casa deles, ele,  um adolescente, e irmãs, a mais velha de brigas com o marido. Não dava para encarar. Ela na maior inocência. Como iria ser essa vinda? Não adiantavam mais subterfúgios. Era o mundo se acabando:

- Os pais não ligam mais pra ela não?! Ou soltaram a moça assim?!

- E esse povo de hoje obedece a pai? Mas qual, gente!

Era o que se colhia das conversas em volta na casa durante as férias no interior. E essa menina queria conhecer a Capital com o namorado, ôxe. Que maravilha! Que que tinha? Mas ela era moça de curso médio terminado e juventude explodindo pelos poros. Iria enfrentar vestibular, daí a negativa dos seus pais, que via ali uma paquera de verão apenas, sem passar adiante. Imagine, moça pronta, não estavam vendo!

- E bonita, a danada.

Uma pegação do corredor à porta da rua, que ganhavam, mordendo em revezamento uma maçã.

- A vida é assim – dizia a moça graúda entre beijos que levava.

- Se não for, faça de conta – respondia Gustavo.

- Esses meninos... – dizia-se.              

E se dizia mais, a valer, quando avistaram uns aluninhos assustados com um garoto que chegava e, hora de recreio, abraçava a professorinha deles.

Quando a envolvia nos braços,  sentia seu tipo, energia escapando pelos lados, então mergulhava nessa maciez de perdição. Exalava à profundeza, uma conexão antiga. Desse relacionamento, miúdo mas constante, criou-se uma áurea, que só eles enxergavam, e daí um outro mundo.  Deles.  Muito distante.  Eles sabiam, por isso que tocavam o barco ao sabor do vento. A qualquer instante a pausa para esclarecimento, que se fazia silenciosamente e por telepatia.

Como é que receberia essa moça? O que mostraria a ela? Pegaria um cineminha e tal? Alguém telefonaria para a mãe para dizer? As tias com a velha prosa de que o pai cortaria o carro que prometera? O mundo desabando: sua fragilidade escancarada. Como a normalidade iria voltar nos raios de uma manhã explicativa?

Embaraço? Não queria estar presente, como de fato não esteve. Premido pelas circunstâncias, a salvação acabou sendo a viagem que fora forçado a fazer para o interior naquele dia, fugindo do psicopata do cunhado, que andava às voltas com separação da irmã.  

- Você não estava lá, nem suas irmãs, e tinha um homem doido pela casa.

-  Ele fez alguma coisa com vocês?! – gritou Gustavo.

- Não. Nós caímos fora.

Ufa!