terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

 FAB

 

Robson nem caderno tinha. Quiçá uma caneta. Era um dos alunos do segundo semestre de Letras, que, sem encontrar encaixe, andava circulando pelo campus feito zumbi. Sentava na fila de trás, revirando novidades, que só por sua cabeça em cenas apocalípticas de filmes passavam: 

- Edson está comendo essa bacana – apontava os dois estudantes de papo prolongado.

- Conversa de colegas, Robson!

- Que conversa, Gustavo? Está todo mundo fodendo. Não vá me dizer que você não está comendo essa bacaninha que vem lhe pedir carona.

- Pelo amor de Deus, Robson! O mundo pra você acabou, é?

Difícil andar com Robson. Noutras palavras, era um chato. Fazia o tipo de burguesinho que ficou de fora de uma boa faculdade e agora estava ali para a gente suportá-lo nos seus azedumes, em protesto contra tudo  que não fosse do agrado. Rapaz de boa aparência e todos os requisitos protocolares. Mas nessa engrenagem faltava um dente. Daí essa inquietação de Robson. Que até parecia só eu/ entender. Talvez por conta da cola que dei a ele numa prova de Literatura, numa das tentativas de ajudá-lo, que teve início esse tratamento provisório. Ficava pondo panos quentes nas suas presepadas, reservando-lhe carteira:

- É de Robson essa carteira. Olhe ele chegando ali, ói! – reclamava.

Às vezes a gente saía pela cidade no carro do pai de Robson, de mil recomendações, com diálogo que eu flagrei um dia entre os dois no orelhão:

- Bom que eu não pego mais essa porra de carro – disse Robson em desabafo ao desligar o orelhão. Lembrava que “essa porra de carro” saiu depois de desligado o aparelho. O pai era de um rigor monstruoso.

- Ele te sufoca, cara – falamos em apoio.

E isso só contribuía para agravar o quadro psicológico do garoto. Numa dessas saídas, oferecemos carona a uma presumida garota da noite e tocamos para um motel. Aventura! Se dois em um era falta, nós estávamos em três. Levávamos mais um colega, o poeta. Mas todos os ratos eram pardos e a menina topou o convite e tapeou os três direitinho, de forma que ninguém comeu ninguém e todos se saíram machos. Encerramos a noitada forrando o estômago com sarapatel e cerveja, num bar encontrado ainda aberto perto da faculdade.

Os estilhaços da briga com o pai de Robson ficavam mais entre eles mesmos, só algumas fagulhas eram entrevistas, como, por exemplo, o fato de o pai, sem enxergar viabilidade para o mundo deles, discordar do curso em que o filho ingressara. Daí a bomba de um lado e de outro, numa explosão de relacionamento familiar. Mas por dedução, parece que o ramo de negócio em que se firmava a família era o de corretagem imobiliária. Robson falava muito de ser forçado a tomar uma atitude séria na vida, como maneira de resolver a parada

- Sumir, bicho! Qualquer hora eu pego um avião e desapareço por aí.

Ia fazer vinte e um anos. Não precisava mais de alguém alegando coisas e cobrando dele o impossível por isso. Vi um homem barbado chorar, que não deu tempo de pensar.

- Pra você me levar no aeroporto de moto, pode ser? De lá, vou pro Rio de Janeiro.

- Você é maluco, Robson? Quem vai pagar a passagem?

- O avião é da FAB, cara, não pago nada.

Marquei de apanhar, fui e apanhei um cara pronto,  mochila às costas. Fiz a viagem mais longa de moto até então. Imagem de cima para baixo mostraria o cinematográfico da dupla na pista, deixando a grande cidade para o passado, como página virada do caderno que Robson não levava consigo. O pai dele ligou para minha casa e só me perguntou se eu dava notícia de Robson, tendo desligado normalmente quando contei a verdade sobre a viagem. Dias depois apareceu Rose, colega de turma, e revelou-se uma bomba: escondia uma barriga de três meses e meio de gravidez.

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domingo, 5 de fevereiro de 2023

 

Ítalo

 Diante do oceano de inutilidades e achados maravilhosos, Ítalo perdia-se em autoconhecer-se. Talvez lá encontrasse a flautinha do presépio de seu Orlindo - velho comerciante que guardava a encomenda com esmero havia anos, desde sua visita a Bom Jesus da Lapa, no ano de mil e novecentos e...?

Ítalo era um menino de hábitos urbanos periclitando pela roça, lugar de vegetação vária, caminhos íngremes, riachos, córregos, grotas e até cachoeiras.

Por isso, na fazenda do pai, confiava sua segurança ao menino filho do vaqueiro. Assim, terminada a talhada de melancia, cuidavam de ir pelos campos abertos em frente, com mata fechada mais ao fim e prosa infantil de perguntas e respostas:

- Ali tem gado brabo?

- É só rodear o curral e passar beirando a cerca que não tem não.

-  Tem pé de umbuzeiro do outro lado?

- Tem. Nós vamos até lá.

Ítalo imitava a destreza do menino ao pular cerca, abrir cancela, tirar o pau da porteira, dar mergulho rápido no córrego e se refrescar. Só faltava carregar também um estilingue no pescoço. Sim, simpatizava com Neném. Ainda mais que ele acertou uma pombinha, de longe, numa só estinlingada. Tirava umbu de vez no lugar de difícil acesso:

- Esse! – apontava com o indicador Ìtalo.

- Tome! – ofertava Neném.

Brincaram um bocado. Na lagoa, pegando corrida no mergulho, chupando frutas, entre os carneiros que havia pelos prados, até  o escurecer ao cair da tarde, quando, com o berreiro dos bichos e farfalhar das árvores, chegava aviso de ir embora.

-  Vamos, Neném!                       

E Neném encabeçava, seguia comando do seu futuro patrão, a quem dera fruta no ponto de morder, umbu inchado e maduro, e com quem disputara mergulho no córrego.

Mas agora, nessa tarde, no caminhar de volta, notava que Neném ia ficando meio recanteado.

- Vamos pelo fundo, Neném, que a gente pega a estrada adiante e acaba conhecendo mais a mata e acha outros umbuzeiros,

Neném se manteve calado mas firme como se tivesse passado o posto de comando e ficado de prontidão para eventual socorro. Pelo menos esse foi o entendimento de Ítalo, que mais ousado ainda se tornou.

- Vamos por aqui, que tem uns pés de umbus  e árvores bonitas.

Saltaram a cerca e caíram numa mata sem uma nesga de sol, na qual foram adentrando tangidos por um enxame de abelhas. Longe, ouvia-se um berro do gado recolhido no curral perto da casa. Havia nesse berro prenúncio de uma noite iminente e fria. Conseguindo se desvencilhar das abelhas por entre árvores que faziam ofuscar a capoeira, Ítalo ergueu-se à procura do companheiro, que, para seu espanto, chorava. Como a um neném;  o estilingue esquecido no pescoço mostrava  que ele era apenas um meninão com medo de escuro sem nenhuma magia.