segunda-feira, 20 de maio de 2024

Geisa

 

Logline:  Ainda um menino, já deixado para trás o candeeiro aceso ao lado da cama, ele teve seu correio de sonhos suspenso por descuido moleque. Haveria tempo para uma virada?

  

 


Ítalo reviveu a experiência de correspondência com garota ideal, por ocasião de sua adolescência. Época de complementação ginasial, de cercado de prédios, de barulho de cidade grande, de telhados escuros de casario antigo e de tédio de um menino assombrado com o mundo. Que nas horas de folga - quando resolvia um problema de matemática - apanhava o violão e batia um rock Ninguém para aplaudir, voltava para a escrivaninha. Lá fora carros para lá e para cá, sem destino. Pessoas também. Vez em quando abria a porta do quarto para dar esporro nos meninos, na sala, cada um na sua;

- Vou fechar a porta, pra fora os dois.

De volta para encontrar o valor de “x”. Era um ato solitário, para quem se sujeitava ao sacerdócio, Preferia então os livros da coleção Trópico - Enciclopédia Ilustrada, da Editora E.P.- MALTESE, achava um mundo de conhecimento ali, mas estava superada, a professora tinha dito reservadamente.  Esse pessoal tinha mania de falar em livro superado. Concordava em parte. Não podia jogar fora José Mauro de Vasconcelos, autor de Doidão e Meu Pé de Laranja Lima, só porque a professora falou aquilo. Além dó mais, era coleção completa, que a mãe tinha comprado fazia pouco tempo.

Muito apegado a essas coisas, ia se desfazendo delas aos poucos. Uma coleção monstro de gibis o espreitava da estante, cada vez mais ocupada por livros didáticos. Do guarda-roupas não se podia dizer que guardava roupas mas uns molambos entremeados de umas poucas  domingueiras, de novidades vencidas. Também nem inventava de sair. Era o sacerdócio e a mesmice. Um pouco de fita cassete de Roberto Carlos. A janela na sua exploração lato sensu. Era até uma possibilidade de comunicação, além da nesga de sol, torre da TELEBAHIA e do acinzentado visual urbano.. No exercício de liberdade íntima, a pessoa tinha que ter a confiança de alcova. Ali seu santuário, adiante a biblioteca, mais adiante sua quadra de práticas esportivas, seu palco e sua passarela.

Esse tempo todo e nem um sinal dela. No momento havia em disputa umas três garotas: a empacotadora de pão, uma branca, de uniforme verde, gente boa, mais duas colegas, Marilene, que tocava instrumentos de cordas, dançava balé, jogava bem no vôlei e basquete e aluna de 8 a 10,  e Nívea, pequena, bonitinha, de olhos verdes, cabelo de presilha, aluna nível médio..  Em silêncio, como competia a um adolescente.

Não se sabia ao certo como caíra-lhe à mão um binóculo infantil, desses de Zorro, bom para bisbilhotar janelas ao longe e focar um rosto de mulher. Devia ser do irmão mercenário, que iria cobrar aluguel do artefato. Mas foi de utilidade revolucionária. Aí. Ítalo passou a agendar a vez do aparelhozinho. De manhã e final da tarde eram reservados para tal caça. Até que, em meio a paredes em labirinto, saiu-se livre numa frincha por onde andava o sol de mãos dadas com a brisa, e se encaixou em cheio numa garota tomando os primeiros raios de sol. Para completar, com um aparelho de som por perto e agarrada à leitura de um livro. Cena de filme.

Criou-se então costume novo com alteração no plano de estudo. Dia de sábado, por exemplo, esperava a saída de umas duas amigas para então começar a paquera. Aprendera rápido a usar bem os gestos. Num dia em que terminara uma apostila de matemática e tomara um vinho em comemoração, acabou por declamar, usando seu palco, um trecho do poema de Castro Alves para ela:


Oh! eu quero viver, beber perfumes

Na flor silvestre, que embalsama os ares;

Ver minh’alma adejar pelo infinito

Qual branca vela n’amplidão dos mares

        Ítalo achou a namorada que faltava. E usou uma tábua de compensado para ser erguida no alto com seu nome e endereço numa cartolina nela afixada. Erguia um tampo de madeira diante do janelão. Assim, em resposta, recebeu de Geisa uma carta com letra de música de Vinícius e uns coraçõezinhos articulados em vermelho.

Tinha que corrigir os meninos na sala. Mas, como quem mexe com menino acaba molhado, recebeu logo a cobrança:

- Ei! Meu aluguel de binóculo venceu e você fica só curtindo ele.

- Depois acerto tudo, Tom. E você, me ajude a erguer essa tábua aqui na janela, depois eu explico – pediu ao primo, sem mais camaradagem.

Era a tábua uma estrovenga, ruim de movimento, mas ele segurou-a no alto enquanto Ítalo cuidava do binóculo.

Queria explicação. A explicação foi um pé na bunda do primo.

- Pra fora, todos os dois.

Não podia dar vacilo, que os meninos, no quarto, iriam revirar guardados seus  Em decorrências desse detalhe, trazia o quarto, seu reduto, trancado à chave. Tanto que se apegara àquele espaço físico onde acrescera à sua imagem uma barba bem desenhada, rescendendo a lavanda. Pós.

Valorizava muito a carta (lida e relida) enviada por Geisa. Que era fofa, de short, no telhado. Eram namorados e pronto: tinha uma garota. Passou então a trocar correspondências e  cuidar do visual. Diferente.

Chegou até a compor uma canção para Geisa. Ítalo tinha necessidade de mostrar pra ela mas não encontrava jeito. Pensou em mandar uma fita com a gravação, mas não ia ser legal e desistiu da ideia maluca. Depois se viu pagando com agrado os meninos.

- Sentem aí e ouçam, se não é linda.

Mas Ítalo acabou por dormir de toca, como se dizia, ao permitir negligentemente que a porta ficasse só no trinco e o primo entrasse e fizesse a presepada pelas suas costas, num dia em que se maravilhava olhando de binóculos. Geisa se irritou e em protesto deu ao namorado cartão vermelho para nunca mais.

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