MINICONTO
Segredo
(Recomendação: para ler, ouvir antes
a música Tudo passará, de Nelson Ned)
De repente pareceu dar-se conta de onde
estava. Mal abriu os olhos, o clima já lhe era adiantado pelo som que tornava aquele
instante da madrugada grafado no seu íntimo como uma fotografia antiga, talvez pelo
embalo dos versos da canção, que se repetiam como que tudo próximo e distante: Mas tudo passa/tudo passará/e nada fica/nada
ficará.
Zé, seu amigo, se encontrava sentado no chão, de óculos escuros,
apesar da noite entrada a tantas, e uma das raparigas lhe servindo com um garfo
pedacinhos de tira-gosto, que ele, mesmo dormindo, mastigava - um instantâneo
fotográfico em que já se deixava entrever o acontecido de um dia qualquer no
tempo, na vida.
Virou-se e se descobriu também no colo de
uma delas no chão da sala. Ergueu-se procurando ver-lhe melhor o rosto. Era de
um rosto sofrido, mas que ainda não chegava a ser como a do poema “O Retrato”,
de Cecília Meireles. Era de uma beleza que não se mostra, que só ele via. Ela
ensaiou um sorriso típico de mulher da vida, mas diante do jeito que supunha
estranho com que ele a olhava, voltou a ficar séria, neutra, depois quis
fugir-lhe do abraço. Segurou-a levemente pelos ombros e, em estado de
flamância, novamente a fitou nos olhos. Então ela entendeu que ele estava vendo
essa sua beleza que não se mostra e que de tão escondida ela nem julgava mais
ter. Seus olhares tinham agora uma linguagem comum. Aí ele a beijou num suave e
prolongado afago, e ela, abraçando-o em resposta, chorou como se pedisse desculpa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário