sábado, 15 de junho de 2013

A vez que me tornei herói

A vez que me tornei herói


Num dos seus encantados versos, o poeta Manoel de Barros lembra que o quintal de sua infância é maior que o mundo. Sempre trouxe comigo entendimento parecido, principalmente quando às vezes passo próximo a nossa antiga casa, com o seu minúsculo espaço, o mesmo muro, o mesmo pé de manga, talvez ali dentro o mesmo menino a brincar na sombra, como se tudo resumisse àquele universo. Da alma criança é que brota a grandeza das coisas, que há de marcar como tinta indelével vida afora.

Feita esta, digamos assim, breve exposição de motivo, passemos a relatar a vez que me tornei herói para o resto da vida. E venho procurando manter como posso esse título. Naquela época, a antena parabólica, objeto quase inacessível, podia ser adquirida através de consórcio entre amigos. Assim é que, contemplado, consegui instalar uma em minha residência. Maravilha. Não propriamente para mim, que não sou muito de televisão, mas para a mulher noveleira e os baixinhos da Xuxa.

No dizer do poeta Castro Alves, “passaram-se anos, séculos de delírios, prazeres divinais, gozos do empíreo, mas um dia volvia aos lares meus”, foi quando surgiu a dor-de-cabeça da tal “manutenção”. À saída para o trabalho, a recomendação da mulher:

- Veja se arruma um técnico para consertar a imagem da televisão, que tá cheio de chuvisco, e os meninos reclamam na hora do desenho animado. Não esqueça.

Com tanta coisa para fazer, ia eu lá me lembrar de achar o tal técnico?! Acabava sempre voltando para casa sem resolver o problema, para depois receber outro sermão. Até que um dia, não mais aguentando essa cantilena, me acudiu a imagem de um colega de infância, que vivia a cutucar aparelhos de rádio e que por ultimo, segundo informação, era um competente especialista em Guanambi, onde já não era mais conhecido por Juarez de Dona Judite mas sim Juarez Soares. Descobri seu telefone, bati o fio, e daí a minutos - olhe Juarez de Dona Judite (pois assim sempre o tratei; coisa de menino) chegando num fiatizinho branco. Quis lhe mostrar o aparelho de TV na sala mas ele só fez me pedir uma cadeira e uma varinha, e do lado de fora mesmo se ajeitou, cutucando num copinho que havia na parabólica e derrubando na grama um inchu de maribondo.

-  Pode ligar o aparelho.

Quando liguei a TV, as crianças ansiosas, foi como se, após tempos acostumados com a imagem em chuvisco, encontrasse uma tela de cinema. Juarez de Dona Judite, que agora era Juarez Soares, me cobrou caro e se despediu. O caro, no entanto, se tornou barato diante da felicidade dos meninos e da mulher noveleira.

Calma. Até aí não se pode falar que nascia um herói, pois que mera obrigação de chefe de família. O herói apenas iniciava a sua gestação. Tornei-me herói no dia em que fui até a casa do meu Tio Dedê  e ouvi a sua queixa:

- Moço, a mulher tá para me matar por causa da imagem da TV e eu já não sei mais para onde rodar essa antena parabólica para encontrar a posição certa até que deixei no mesmo lugar.

A mulher veio da cozinha:

- Já falei pra ele, Nei, pra chamar um técnico, e ele é teimoso, fica é tentando consertar sem saber.

Lembrei-me de Juarez Soares e, mais que de pressa, falei firme na voz:

- Quem vai consertar essa porra sou eu. Gê, me dê aí uma cadeira e uma varinha.

Logo a mulher prontificou tudo, para o muxoxo de meu tio em meneio negativo de cabeça:

- Oh meu Deus...

Subi na cadeira pensando “se não tiver a casinha de maribondo no copinho da antena eu tou frito, vou ter que improvisar uma das minhas brincadeiras”. Principalmente porque os meninos dele, Filipão e Lalá, me olharam com brilho nos olhos como se eu fosse um salvador da pátria, de forma que não podia falhar.

Não deu outra. Meti a varinha e o inchu de abelha caiu  igual a uma frutinha madura.

- Pode ligar a TV, Gê – ordenei com autoridade.

Só meu tio ainda achava que era uma de minhas palhaçadas costumeiras, quando de lá de dentro vieram os meninos para me abraçar como se eu tivesse feito o gol mais bonito em pleno maracanã.

Virei um herói naquela casa. Venho acompanhando o crescimento dos meus dois primos que, aliás, me tratam por tio. Filipão estuda medicina. Larissa Leão Dantas se prepara para o vestibular e ainda toca violão e canta, como uma Nara Leão, mas artisticamente adotamos apenas Larissa Dantas. Sempre que nos encontramos recebo aquele abraço de herói. Isso nunca vai apagar. Manoel de Barros tem razão. (Um beijo, garotos)



Um comentário:

  1. Bravo!! Texto lindo, você sabe como ninguém transformar o cotidiano e o causos em poesia. Tio, você também é meu herói! beijo enorme
    Cacá

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