As meninas
internas – naquele uniforme de calça marrom, camisa branca de gola polo e tênis
(só encontráveis nas lojas Leão de Ouro), eram decentes. Além de decentes, prendadas
e bonitas. Que mais! Com direito a pose, mas sem se importarem com o exercício
desse direito – ausência que antes de qualquer coisa dava nelas mais encanto.
Tocavam guitarra, dançavam balé. Quem se entrosava com elas fazendo número de
dança no teatro, que ficava no térreo do prédio, como figurante, nos eventos
culturais, era Paulo - uma maneira de a
gente também estar próximo delas e poder sonhar. Como só havia três meninos na
turma, Paulo tinha que ser colega chegado. E viva Paulo, que dava notícia delas
para gente.Do tipo assim: que elas eram órfãs, de outro Estado, uma delas até era
sobrinha de irmã Catarina, nossa Orientadora Educacional do SOE. Nada mais que
isso sabíamos.
Ela,
a preferida, de nome humilde, Marilene Andrade, era branca dos cabelos negros, de
róseo rosto com pontinhas ligeiramente perceptíveis de espinhas. Leve, numa
magreza normal de ginasiana bem cuidada, o que podia ser notado facilmente na
hora de dar a saída de bola no jogo de vôlei. Com estilo, no short marrom desenhando um bronzeado
normal, ia para o saque. Erguia-se e levantava com classe de bailarina a bola
para a colega fazer belas cortadas e acrescentar pontos no placar. Depois, nos
saltos de contentamento, caminhava de volta para o saque no fundo da quadra. Classe.Sempre.
E a gente na torcida curtindo, enquanto aguardava a vez de enfrentar o time
vencedor, no quem ganhar chama.
A
gente tinha mais era que ficar assim, na torcida, sem pisar a sério o chão da
realidade, naquele ano de 1976, para que tudo não se conduzisse de forma
inexorável, uma manhã sucedendo a outra, o mesmo cheiro matinal de café com leite
e pão francês. Melhor que ficássemos
pelo resto de vida só acompanhando o jogo: o saque de Marilene, a cortada de sua
colega, cujo nome me foge, mas não me foge o contrabaixo que ela tocava legal
com Marilene. Elas tocavam brincando, sem fazer qualquer esforço. Sentavam
juntas, andavam juntas afinal. Era mais forte, como se fosse irmã mais velha,
mas de mesma jovialidade estampada. Deviam ter o entendimento comum. Suas notas eram as mesmas, acima de oito,
nove, geralmente dez, variavam de forma imperceptível.
A sobrinha de
irmã Catarina, que não tocava nenhum instrumento, foi quem chegou a nos dar ousadia, mas era do
tipo sem segredos nem encantos. Minha câmera
invisível parecia filmar o movimento delas duas pela manhã, desde a fila que se
formava para cantar o Hino Nacional
- obrigatório - até o acesso as salas de aula, no primeiro
andar. Mas vez por outra o acesso era para entrar no teatro do colégio, aberto
para alguma apresentação ocasional ou periodicamente para fazer a avaliarão da
unidade, através de uma espécie de vestibular simulado. Minha câmera invisível acompanhava
nesse dia um evento cultural, em que as meninas tocavam violão e um coral cantava
uma canção de Doriival Cayme, um drama do pescador em Suíte de Pescador:
Minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar, meu bem querer
Se Deus quiser quando eu voltar do mar
Um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar
E a Deus do céu vamos agradecer
Adeus, adeus
Pescador não esqueça de mim
Vou rezar pra ter bom tempo, meu nêgo
Pra não ter tempo ruim
Vou fazer sua caminha macia
Perfumada com alecrim
Não
precisa dizer que o adolescente, vindo do interior, viu ali o máximo de
apresentação artística e carregaria por toda vida aquela dor: a mulher do
pescador, que vinha até a beira do palco para entoar o adeus, adeus, e os “pescadores” (meia dúzia de garotas bailarinas)
indo até a outra margem do palco. Antes desse número, houve apresentação de um sapateado
com Paulo (filho de português) e uma garota de outra turma, que era espanhola (tocava violoncelo, diria Paulo depois),
e nós dissemos que era namorada de Paulo, tanto era nosso o desejo adolescente
na garota. Confesso aqui uma traição: mal tivemos essa prosa, Paulo acabou se
apaixonando pela espanhola e, por tabela, todos nós mergulhamos também nessa
penumbra da paixão, e Paulo me encarregou de fazer depois uma carta para a
garota, em que pude derramar todo meu amor por... Marilene(cuja conduta
exemplar me influenciaria dali para frente).
Aconteceu de eu ter de fingir de
paixão pela espanhola e escrever essa carta para a garota
por encomenda de Paulo, que era um pouco mais amadurecido, e ia cortando os excessos dos meus arroubos juvenis ao passar a limpo o
texto. Creio que foi assim, sob esse amor platônico, que iniciamos aquele ano
letivo de 76, que vinha grafado
clandestinamente no muro do colégio recém pintado.
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