quarta-feira, 11 de março de 2020

No. 03 - ROUPA NO VARAL



Ao que parece, tudo teve início naquela noite de sobrevoo, momento de transfiguração, em que passara a enxergar o telhado de sua casa, a caixa d”´água  e as roupas do varal, com o detalhe da camiseta do colégio, que, ao se vê distanciando, tremulava como aceno, quando o medo, de estalo, na mesma leveza, fez com que voltasse ao corpo, no aconchego do leito,  um homem viajado, de revirar o mundo em segundos.
- Você foi abduzido, cara! ponderou Thelma ao final do relato de Flávio.
_ Mas eu fiquei com medo e acordei logo. O momento em que eu flutuava fora do corpo...
_ Esse é o ponto, pince, aperte a tecla pause e tente recobrar        .
_ Me vi afastado do corpo com o pessoal que se anunciava como amigo. Conversamos em silêncio.
_ Como assim?
_ Por dentro, decodificando tudo, ao modo de Ìsis. E eles não acharam ruim quando eu quis voltar. Entenderam e deixaram. Foi rápido, então praticamente esqueci quando acordei, como de um sonho qualquer.
Thelma disse, corrigindo-se, que o caso era de uma quase abdução, que não fora dessa vez.  Ele guardava dentro de si que Ísis viera para prestar aquele auxílio, como em missão, conforme dissera antes de partir.
_ Concordo porque eu estava em desespero naquele dia que marcamos para conversar, quando ela me chamou para levar um papo.
_ Pois eu já estava calmo antes, tanto que cheguei em grande estilo, inspirado e me deparei com aquela garota, ela tão bacana, não é?
Enquanto mantinha esse diálogo, Flávio percebeu que o pai se aproximava deles:
_ Está velho, eu vi isso no rosto dele, depois pelo corpo como um todo, nada mais se salva da crueldade do tempo. Notei que ele está murcho, sua voz está murcha, suas músicas estão murchas... e a partir dessa visão saí pelas ruas e vi muita gente murcha...Meu Deus, e eu que tinha ainda na cabeça o eterno moço bom, Roberto Carlos... pois Roberto Carlos está velho, meninos e, cá para nós, falou meio em segredo, ficando feio.
O pai de Flávio falava com conhecimento de causa. Era dessa geração  que fez  “carreira” de fã com a turma da jovem guarda e, do outro lado da moeda, da MPB, música engajada,  tropicália, e falava de seus ídolos com entusiasmo mas agora se manifestava sobre o assunto meio borocochô.
_ Quem já foi Zunga? Menino que toda mãe queria ter. Leia o artigo daquele jornalista, que também foi um político sacana, não desses sacanas de hoje em dia, mas como é mesmo o nome dele?
Lá depois de algum tempo, vinha seu Félix lembrando do jornalista;
-  Lacerda... Carlos Lacerda! Em artigo brilhante, ele fala do sucesso do menino Roberto Carlos...
-  Marcou toda uma época, seu Félix, mas o tempo é realmente cruel. Tudo tem seu tempo, como se diz. Não se pode banhar na mesma fonte. E olhe que hoje o tempo é em ritmo de internet. As coisas parecem ficar velhas logo, descartáveis.... Não há segredos nem sortilégios. Roberto Carlos já se deu por demais... Alguém tem que dizer isso a ele..., Thelma, de outra geração, deu seu parecer.
Flávio, que também curtia Roberto Carlos, achou que sua data de validade, se é que assim pode se considerar, chegara a termo, e silenciosamente ficou lembrando de um verso que lera alhures: Chega um dia em que o dia se termina, antes que a noite caia inteiramente. Mas como valeu a pena ir até ali, como a copa de 70, os gols de Jairzinho e Pelé, tudo emoldurando-se em quadros, que ficam: É A VIDA, pensou finalmente em dizer e disse para encerrar o papo.       

Verão de 2020.



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