quinta-feira, 20 de agosto de 2020

O novo professor de Português

 


 

               

 

 

                                                                                                          Elzeni Cunegundes Nunes Jorge

 

Teríamos um novo professor de Português na escola. Meio de semestre, houve uma mudança repentina pelo fato de o anterior ter-se mudando de cidade. Era missionário, foi enviado pela igreja a outra região. O novato seria um advogado, filho de um influente político da cidade, mas se formara na capital e havia retornado à cidade há pouco. Jovem ainda, pelas informações que me passaram. Eu não o conhecia. Seria um engomadinho com linguagem empolada, metido a intelectual, logo pensei, revirando os olhos. Não me fazia muita diferença, visto que o anterior também era meu antagonista. Explico. Não nos dávamos bem por vários motivos, e o primeiro era o fato de ele manter o hábito horroroso de assediar as alunas. Fazia vistas grossas nos erros das provas em troca de um sorriso meigo, uma carícia nas mãos... como era uma adolescente “nariz empinado”, nunca cedi. Isso afetava meus brios, primeiro porque Língua Portuguesa sempre foi minha matéria preferida. Redação era meu forte, até ganhei uma medalha de bronze (e não ouro, que afronta!) num concurso de redação oferecido pelo colégio uns dois ou três anos antes. Segundo porque era nojenta essa conduta. Ainda que fosse outra matéria (Matemática, meu fraco), eu jamais cederia, não fazia parte dos meus princípios. Lembro-me de uma vez em que ele aplicou uma prova com todas as questões objetivas e eu gabaritei. Valia 10 e ele me deu 8. Fui questionar, ele não levou a sério. Tentei de todas as formas requerer minha nota por direito, mas não recebi apoio. Procurar a secretaria seria a solução, se eu contasse com um suporte e informação suficientes, mas meus pais nunca se interessaram em se envolver com nossa vida escolar, mantendo o costume arcaico, de quando os professores eram autoridades máximas e o aluno tinha que ser subalterno em todas as circunstâncias. Anos 90, ninguém se importava muito com defesa de direitos. Resultado, fecharia o ano com 38 pontos totais em Língua Portuguesa, quando o total eram 40 pontos e, para “passar direto” (sem precisar fazer prova de recuperação), eram necessários apenas 28 pontos. Quando eu ia reclamar com alguém, já ouvia a frase: “Mas para que você quer tantos pontos?”. Para efeito de vaidade, ora bolas! Eu sempre me jactanciei por fazer 40 pontos praticamente todo ano em Língua Portuguesa. Era esplêndido ouvir a sequência de admiração das pessoas: “nossa, como você consegue?”; “ai, que inveja!”; “me empresta um pouco da sua inteligência!”. Os mais despeitados diziam: “Não sei pra que você quer 40 pontos, se 28 são suficientes para passar”. Sentia-me o máximo!

                Sexta-feira, terceiro horário, ele entrou tranquilamente na sala. Alguns alunos estavam ansiosos, outros curiosos, outros indiferentes. Eu não me encaixava em nenhum desses grupos, apenas falava comigo mesma: “O senhor vai ter o resto do ano letivo para conquistar minha confiança”. Não quis emitir minha primeira impressão, mas a verdade é que eu fui com a cara dele logo à primeira vista. Mas não iria demonstrar tão cedo, muitas águas ainda deveriam rolar. Após a apresentação inicial, que foi bem sucinta, asseverou:

                __ Tarefa de sondagem, antes de darmos continuidade à matéria de Português. Cada um de vocês vai me produzir um texto, tema e estilo livre.

                Ouviu-se um levantar uníssono de protestos, uma miscelânea de vozes e reclamações acerca de “ser pego de surpresa”, “não ser bom em redação” (nunca entendi por que 90% das pessoas carregam esse conceito desde os primórdios da vida escolar), “não sei por que não começa logo com a matéria” e por aí afora. Eu permaneci quieta à espera de mais esclarecimentos sobre a tal tarefa de sondagem, mas minha massa cinzenta já começava a elaborar a sinopse do conteúdo.

                __ Lápis e papel na mão – ele continuou sorridente.  – Vocês têm a aula toda para produzir esse texto, pode ser dissertativo, narração, descrição... podem usar a imaginação à vontade, tá? Vamos lá!

                As contestações foram minguando, os mais espertos já se colocaram a postos para a escrita, os mais relaxados ainda foram abrir suas mochilas e procurar os cadernos. Eu já estava com caderno e caneta em mãos desde a entrada do novo professor. Fechei os olhos por alguns minutos e pensei: “vou narrar um conto, em primeira pessoa, com narrador personagem”.

 

                Caminhava apressadamente por entre as vielas escuras da mata densa. Era noite sem lua e o céu ainda estava bastante nublado. A respiração estava ofegante, acelerei ainda mais os passos ao perceber que alguém me seguia. Senti as pernas tremeram, onde encontraria socorro? Quanto mais eu andava, mais a estradinha se estendia à minha frente. Para onde eu estava indo mesmo? Para casa?

                Parei um pouco para ter certeza de que meu subconsciente não estava me pregando peças, fazendo-me delirar. Vi um vulto e desesperei. Gritei, mas mesmo diante da aproximação do perigo, minha voz não saiu. As pernas estavam cada vez mais pesadas, e minha solução imediata era procurar me camuflar por entre as árvores, auxiliada pela opacidade noturna. Quem estaria me perseguindo? E sob qual justificativa? Senti um líquido grosso e morno escorrer pelo antebraço, mas mesmo sem conseguir visualizar, impedida pelas trevas, sabia que era sangue. Precisava encontrar um abrigo, mas onde?

                Um pássaro estranho e grande voou baixo, atravessando meu caminho. Recuei por instinto, mas sabia que meu algoz estava cada vez mais próximo. Parece que todas as bestas da mata se uniram para assistir minha desventura, visto que dos dois lados do caminho, por entre árvores e arbustos, dezenas de pares de olhos brilhavam na escuridão, mas estranhamente tornavam o cenário ainda mais escuro. Além de assustador, claro.

                Senti vontade de chorar, mas as lágrimas insistiam em não vir. Os pés descalços farfalhavam sobre as folhas ressequidas, ferindo-se constantemente nos espinhos e arbustos, mas a dor me era quase imperceptível. Sentia, também, um frio quase insuportável. E nesse cenário estarrecedor, deparei-me com a presença abrupta da velha Júlia, nossa antiga vizinha. Ela agitava os braços freneticamente e falava um amontoado de palavras que eu não compreendia. Mas ela não havia falecido há anos? Céus, será que morri e não percebi? Não, eu estava vivíssima, podia comprovar isso pelo frio intenso sobre a pele mal coberta pelo vestidinho de viscose, o ardor no corte recém-adquirido no antebraço, decerto pelo atrito nos galhos de alguma árvore espinhenta, e a respiração ofegante, simultânea ao aceleramento cardíaco.

                Não consegui entender as palavras da velha senhora, que acabou ficando para trás, mas logo percebi que se tratava de um aviso: logo à frente estava um abismo ainda mais escuro que a negritude que me envolvia. Gritei, mas minha voz não saía. Não poderia retroceder, meu algoz estava a poucos metros de me alcançar. Desconhecia aquele lugar e não entendia como havia ido parar ali. De repente senti algo me puxando para dentro do abismo, gritei novamente e dessa vez o som do meu grito irrompeu por todo o ambiente, produzindo ondas quase insuportáveis de vibração nos meus tímpanos. Fechei os olhos, a morte parecia inevitável.

                Num piscar de olhos tudo mudou. Abri os olhos e me deparei com o teto do meu quarto, precariamente iluminado pelos raios da lua cheia que penetravam entre os vãos da persiana. O grito ainda ecoava no silêncio do quarto.

 

                Minha tarefa de sondagem estava pronta. Revisei apressadamente a ortografia, passei o texto a limpo e coloquei o nome e a identificação da turma no final da página, fiquei sem saber como criar um título, então deixei sem. A sirene tocou, indicando o final da aula. Entreguei a folha diretamente nas mãos do professor, que seguiu para outra turma. O danado saiu ileso do primeiro dia de aula, sem trabalho nenhum. Mas eu gostei da estratégia dele.

                Passado do fim de semana, retornamos às aulas. Não estava ansiosa acerca da avaliação das atividades, na verdade nem me lembrava mais dela. O horário da aula de Português naquela segunda-feira era o último. O professor iniciou a aula devolvendo a atividade corrigida. No meu texto não havia nenhuma marcação em vermelho, como de costume. Na primeira linha que deixei vaga ele acrescentou em tinta preta, com letra de médico, um título: “Pesadelo”. Achei meio pobre e “lugar comum”, mas não reclamaria jamais. Seria falta de ética e até de educação.

                Após a entrega de todas as atividades ele iniciou seu discurso de avaliação geral do desempenho da turma.

                __ Desculpando-me a sinceridade, vocês estão péssimos em matéria de produção de texto.

                Feriu-me tais palavras. Tudo bem que não havia feito grande esforço para produzir meu conto, mas merecia um pouquinho de consideração ao menos pela ausência de erros gramaticais. Não iria contestar, não queria deixar a marca de aluna rebelde nesses primeiros momentos. Ele continuou seu sermão:

                __ Vejo que dois podem ter sido os motivos desse desempenho tão negativo. O primeiro certamente é a falta de interesse da parte de cada um, e o segundo a ausência de conteúdo literário. O brasileiro lê pouco, vocês estão seguindo essa estatística. Com isso já pude entender que precisamos trabalhar muita leitura e produção de texto no decorrer das nossas atividades.

                A turma continuava em silêncio, mas ninguém reclamou. Afinal, todos estavam convencidos de que ele tinha razão. Eu não via interesse por parte de nenhum dos demais em ser bem sucedido na matéria de redação. Senti-me um pássaro raro, uma ambiciosa. Antes que o desânimo me abatesse, ouvi uma ressalva:

                __ A bem da verdade, só há um texto em toda a turma que salvou todos vocês do fiasco. Texto muito bem produzido, linguagem clara e total ausência de desvios gramaticais – olhando na sua agenda, completou. – O texto de uma tal de...

                Ouvi meu nome, não com surpresa, mas com satisfação. Meu ego inflou-se. E como era de costume, ouviu-se um ressoar de “Ah, pra mim não é surpresa”, “Ficaria surpresa é se o dela também fosse péssimo” e “Já sabia que estava faltando alguma palavra acerca do texto dela”. E foi assim que o novo professor de Português conseguiu meu respeito e admiração, tornando-se no decorrer dos anos seguintes, um dos maiores incentivadores da minha doce tarefa de escrever.


Nenhum comentário:

Postar um comentário