terça-feira, 22 de setembro de 2020

Aquela destreza (I)

  

Se alguém me perguntasse como estava dizia que estava bem, como resposta normal a esse tipo de pergunta, maneira fácil de encobrir um problema. A verdade, porém, é que, grosso modo, a considerar meu caso de per si, não podia estar a dizer-me normal. Também não podia dar-me como meio morto, como forma de queimar esperança e ter que gastar maior tempo com explicações de natureza espiritual ou científica. Porque, afinal, sem querer agarrar-me a ideia de entrincheirar-me como vítima digno de pena e permanecer nessa minha morte acabou, segundo alguns mais próximos, por ser-me, ao contrário,  um presente. Certo privilegio de espírito?

Onde estava a minha destreza para as coisas? Meu ímpeto, meu rompante, minha indignação? Meu jeito de cavalo solto, num levanta e sai, pronto para qualquer parada? Como se tivesse que começar a escrever mas com a mão esquerda mal acostumada. Na verdade, tudo estava em contramão, enviesado, de meio dia para a tarde.

Os dedos, quanta importância dos dedos para mim, exímio datilógrafo, para o gasto, agora na doce suavidade de um teclado. O som tirado de um violão descolado, sempre comigo. Os dedos bonitos já não obedeciam com presteza a ordem do cérebro. Na ânsia de ver de pronto o texto, como se distribuía antigamente, por anos, saindo agora de jeito truncado. Aí tinha que reiniciar (verbo muito em uso) e tome-lhe interrupção que irritava quem estava acostumado com aquela perfeição de texto. De vez em quando, vociferava com razão:

- Vou ter que começar de novo com o asdfg, asdfg, asdfg, é?

Inventei de manuscrever e descobri que não sabia, desaprendera completamente. Outro o estilo, que não tinha paciência de colocar em prática. Era no antigo, insistia,  e aí errava, atrasava, acabava  interrompendo,  teclando uma espécie de “pause”.

- Dr. Luiz e esposa, seus primos, vieram para uma visita.

Fazer o quê? Tinha agora que desempenhar o papel de enfermo que recebe visitas. Ficamos um bom tempo até que talvez por meu comportamento incompatível com a de um enfermo tivesse levado o casal forçosamente a se despedir cedo.

- Estou frequentando umas sessões de fisioterapia, por ora.          

Aí falou-se muito da importância desse ramo da medicina, ao cabo do que  ficaram pescando coisas no ar, até que resolvi me  abrir:

- Desculpe, mas eu não sei fazer esse papel de doente não. Não levo jeito.        Só faltei dizer “ô mulher, me acode aqui!”

Após agradecimento de praxe pela visita, dirigi-me à esposa, sempre na cola para as emergências e “panos quentes”:

- Agora fale que estou proibido de receber visitas. Não sei fazer esse papel.

- Bicho do mato! fui chamado pela mulher, que se irritara com o comportamento do doente.  – Você devia era dar graças a Deus. Mal-agradecido! completava finalmente a companheira.

- Veja se para com essa ideia de falar que está morto, Deus castiga.

- Prefiro a primeira, que eu devia dar graças a Deus, porque se quer uma explicação para minha morte eu lhe dou agora. Na vida a gente tem que se preocupar com a saúde física, mental e espiritual, as três, não é?  Bem, aí a seguinte ponderação: sou de longevidade, considerando o grupo familiar pelos dois lados. Portanto tenho maior probabilidade de desencarnar em idade avançada, sem ter que pagar, espero, por faltas em vida passada mas por abusos no exercício de meu livre arbítrio, que foi o período de extravagância com uso do álcool, considerado suicídio, de forma que o AVC me deixou assim meio torto para o resto de vida. Porque, segundo Kardec, em seu livro de minha cabeceira, A GÊNESE, “As doenças, as enfermidades, a morte, que daí podem resultar, provêm da sua imprevidência, não de Deus”.

- Não sinto mais o paladar cem por cento, prosseguia eu: não consigo correr, com arrancada, nem me levantar do chão sem uma mão de apoio, concluía meu chororô.

- Lembrei que outro dia caí fazendo caminhada no entorno da Lagoa do Mocambo. Bom que uma moça, que vinha passando, me deu a mão. Mas  outro dia, cinco horas da manhã, me apertei e aproveitei que ainda estava escuro e, seguro no poste, fiz na rua perto de um terreno baldio. Que tristeza ficar olhando, procurando um canto. De oura feita, quis me virar para reerguer, com dificuldade tamanha, escondido num resto de construção do largo da lagoa, em tempo de ser flagrado. A partir desse fato mudei de atividade física para passeio de bicicleta em vez de caminhada e fico enxergando todos com a estampada ideia de fim de mundo no rosto.

- Fim de mundo?! Então você me vê velha, não gosta mais de mim. É isso, estou feia. Vá procurar outra.

- Não. Calma. Não é bem assim. Você tem efeito contrário: te vejo ainda menina. É com relação as outras pessoas: “Quem já foi Naninha?” é assim que olho e logo me pergunto dentro de mim. Tia Mena, olhei pra ela outro dia, ela sorrindo, e eu sofrendo dentro de mim.       

 - Por quê?

- Está ficando velha, eu vi a velhice em ação, se acentuando nela... Ia dizer “é uma pena”, mas é a vida. Temos que conviver com essa fase e encontrar outros confortos. Já você, você é uma coisa minha que eu vejo da forma que eu quero, entende? Inseparável. Una. Meu ego prevalece sobre qualquer outro entendimento. Inda te vejo de uniforme bem engomado, chupando um picolé de groselha, a caminho do portão do colégio, num início de tarde. Impregnada de primavera. Mas e os outros? abrem-se as cortinas para tanta luz de realidade que dá para você apanhar um cisco no chão, uma agulha no palheiro. Compreendeu?

Ela pareceu engolir em seco:

- Mas você não pode ter esse comportamento...

- Meu comportamento pode parecer estranho, mas não de um acabrunhado. Compreendeu? Quero o equilíbrio espiritual, respeito e cuidado com o corpo físico, que eu não tinha. Longe de mim acompanhar essa sombra. Devemos procurar cumprir essa nossa vida buscando a luz. O que eu quero dizer é que com essa minha conduta, me declaro ciente de minha conduta anterior. Meu princípio vital sofreu um abalo. Daí essa minha visão. A começar, essa destreza que já não tenho nos dedos da mão, encerrei fazendo movimento com os dedos.

 


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