sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Aula vaga

 

Uma colegial desperta para a vida num dia de aula vaga

 

 Ela não estava atrasada. Pegou o par de tênis devidamente escovado. Ajeitou-se, por fim, no uniforme. À saída, um toque alheatório de lavanda.  Costumes. Podia desaparecer um mundo de coisas, menos sua marca, seu tchan, seu bland, melhor dizendo. A presilha no lado esquerdo do cabelo castanho.  Um chiclete tutti frutti, que até o portão do Colégio seria mascado, depois cuspido fora. E isso tudo era mais um dia que passava em sua vida. Banho tomado, fresca, com seu aroma, saía para o Colégio naquele início de tarde, que prometia nenhum desfecho, senão dentro de uma normalidade que se avizinhava canhestra.

Vida de uma meninazinha. De cidade pequena. Estreita em tudo. Qual seria a hora de crescer? Abraçar o palpável e o impalpável. O que valesse.  Sair dessa tristeza e mergulhar nesse universo desconhecido, que se ia desanuviando aos poucos. Novas imagens. Gente bonita, diferente. Outro papo.

- Boa tarde! – cumprimentou Cerlândia, sozinha no pátio.

Moça sem modos, morava com os tios. Que mais sabia sobre a menina, que fora paquera de seu irmão Erasmo, que rompeu o relacionamento por conta de sua conduta escorregadia? Quando alguém se entusiasmava com ela, ela logo escapava.

- E aí, menina, que dia vai assumir Erasmo e sossegar o facho?

- E ele, Gorete, deixou de ser múmia? - respondeu com outra pergunta, no seu jeito rebelde de ser, segura no seu sorriso em que se destacavam as covinhas do rosto e seus cachos aveludados de cabelo.

Gorete, que estava de aula vaga, achou foi graça e também se abriu num sorriso:

- Que mais? – deu corda.

- Os caras é que ficam atrás de Tina Charles.

- Quem é essa Tina Charles, menina?

- Da música I love to love – respondeu com passos de dança e sacudindo os cachos.

Notou que Cerlândia usava outra calça em lugar da do uniforme, mais cocota, na moda.

- Como é que deixaram você entrar assim?

- Por que você acha que estou aqui fora da sala? – disse e deu de ombros, como se fosse mais uma das suas.

 No outro dia, o sol sairia de qualquer maneira. Uma portaria de censura à aluna seria baixada no mural, com cópia encaminhada para casa dos tios dela, analfabetos, coitados. A sineta do Colégio tocaria na hora do recreio e no final do turno.  E à noite, para algumas, como Cerlândia, haveria Tina Charles no barzinho da praça. Ela já conhecia outros caminhos.  Morara em S. Paulo. Não era tão boba.

Falando de S. Paulo, a garota chegava encher de verde os olhos que já eram verdes. Nesse bate papo, acabou até aceitando ir para S. Paulo no fim de semana, seu maior sonho,  e até combinaram  detalhes.

- Então fica feito o trato pro fim de semana? – Cerlândia quis confirmação.

Deram-se as mãos como arremate do entendimento. Quando Gorete ia entrando em sala de aula, ouviu atrás de si:

- Vai nada,  você não tem coragem, Gorete!

Gorete, que não era mais Gorete, viu que sua vida dependia de uma atitude sua, então resolveu se abrir de vez:

- Eu vou até hoje mesmo, agora!

Juntou livros e cadernos nos peitos e saiu em companhia da garota. Quando deram por fé, estavam as duas na praça, diante de um supermercado, comprando uns pacotes de velas, por sugestão de Gorete.

Estrada vencida sem plano, com histórias que iam sendo contadas, sem pressa, sem nada, em meio a brincadeiras e passos de dança, que chutavam os seixos. Daí que, muito se falou sobre Erasmo, por quem, sem demonstração aparente, estava ela apaixonada.

Um friozinho de beira de serra, de gerais, latidos de cães, iam cortando a prosa que era boa. Podia se ver a cidade lá embaixo com seus pontinhos de luz, quando Gorete gritou:

- As velas! Temos que parar numa dessas casas e pedir pouso.

Pousaram na casa de dona Neném, que fritou ovos com bastante cebola:

- Eu não gosto de cebola!

- Deixa que eu cato, Tina - segredou Gorete na manhãzinha.

Depois foi só o ermo. De um lado e de outro. E então um enjôo, um vazio que ficava e que se produzia por dentro. Nem lembrava da mãe e do pai, mas agora!... E procurava espiar pelas frestas da vegetação do trecho íngreme a trilhar. Estavam perdidas, eis a verdade, que entalava Gorete.

Quando num lampejo vermelho, viu que era a camisa de seu irmão com mais pessoas procurando por ela, então chamou pelo irmão, que veio e a abraçou, ambos em choro. Gorete tinha alguém por ela, afinal.

O que mais pesou, no entanto, foi Tina Charles, Tina Charles não, Cerlândia, sem nenhum parente, vendo o demorado abraço de irmãos, por ela implorar debaixo dos cachos e com humildade de uma  criança que foi longe demais:

- Erasmo, me abrace também.


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