Uma colegial desperta para a vida num dia de aula
vaga
Vida de uma meninazinha. De cidade pequena. Estreita em tudo.
Qual seria a hora de crescer? Abraçar o palpável e o impalpável. O que
valesse. Sair dessa tristeza e mergulhar
nesse universo desconhecido, que se ia desanuviando aos poucos. Novas imagens.
Gente bonita, diferente. Outro papo.
- Boa tarde! – cumprimentou Cerlândia, sozinha no pátio.
Moça sem modos, morava com os tios. Que mais sabia sobre a
menina, que fora paquera de seu irmão Erasmo, que rompeu o relacionamento por
conta de sua conduta escorregadia? Quando alguém se entusiasmava com ela, ela
logo escapava.
- E aí, menina, que dia vai assumir Erasmo e sossegar o
facho?
- E ele, Gorete, deixou de ser múmia? - respondeu com outra
pergunta, no seu jeito rebelde de ser, segura no seu sorriso em que se
destacavam as covinhas do rosto e seus cachos aveludados de cabelo.
Gorete, que estava de aula vaga, achou foi graça e também se
abriu num sorriso:
- Que mais? – deu corda.
- Os caras é que ficam atrás de Tina Charles.
- Quem é essa Tina Charles, menina?
- Da música I love to
love – respondeu com passos de dança e sacudindo os cachos.
Notou que Cerlândia usava outra calça em lugar da do
uniforme, mais cocota, na moda.
- Como é que deixaram você entrar assim?
- Por que você acha que estou aqui fora da sala? – disse e
deu de ombros, como se fosse mais uma das suas.
No outro dia, o sol
sairia de qualquer maneira. Uma portaria de censura à aluna seria baixada no
mural, com cópia encaminhada para casa dos tios dela, analfabetos, coitados. A
sineta do Colégio tocaria na hora do recreio e no final do turno. E à noite, para algumas, como Cerlândia,
haveria Tina Charles no barzinho da praça. Ela já conhecia outros caminhos. Morara em S. Paulo. Não era tão boba.
Falando de S. Paulo, a garota chegava encher de verde os
olhos que já eram verdes. Nesse bate papo, acabou até aceitando ir para S.
Paulo no fim de semana, seu maior sonho,
e até combinaram detalhes.
- Então fica feito o trato pro fim de semana? – Cerlândia quis
confirmação.
Deram-se as mãos como arremate do entendimento. Quando Gorete
ia entrando em sala de aula, ouviu atrás de si:
- Vai nada, você não
tem coragem, Gorete!
Gorete, que não era mais Gorete, viu que sua vida dependia de
uma atitude sua, então resolveu se abrir de vez:
- Eu vou até hoje mesmo, agora!
Juntou livros e cadernos nos peitos e saiu em companhia da
garota. Quando deram por fé, estavam as duas na praça, diante de um
supermercado, comprando uns pacotes de velas, por sugestão de Gorete.
Estrada vencida sem plano, com histórias que iam sendo
contadas, sem pressa, sem nada, em meio a brincadeiras e passos de dança, que
chutavam os seixos. Daí que, muito se falou sobre Erasmo, por quem, sem demonstração
aparente, estava ela apaixonada.
Um friozinho de beira de serra, de gerais, latidos de cães, iam
cortando a prosa que era boa. Podia se ver a cidade lá embaixo com seus
pontinhos de luz, quando Gorete gritou:
- As velas! Temos que parar numa dessas casas e pedir pouso.
Pousaram na casa de dona Neném, que fritou ovos com bastante
cebola:
- Eu não gosto de cebola!
- Deixa que eu cato, Tina - segredou Gorete na manhãzinha.
Depois foi só o ermo. De um lado e de outro. E então um
enjôo, um vazio que ficava e que se produzia por dentro. Nem lembrava da mãe e
do pai, mas agora!... E procurava espiar pelas frestas da vegetação do trecho
íngreme a trilhar. Estavam perdidas, eis a verdade, que entalava Gorete.
Quando num lampejo vermelho, viu que era a camisa de seu
irmão com mais pessoas procurando por ela, então chamou pelo irmão, que veio e
a abraçou, ambos em choro. Gorete tinha alguém por ela, afinal.
O que mais pesou, no entanto, foi Tina Charles, Tina Charles
não, Cerlândia, sem nenhum parente, vendo o demorado abraço de irmãos, por ela
implorar debaixo dos cachos e com humildade de uma criança que foi longe demais:
- Erasmo, me abrace também.
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