domingo, 29 de outubro de 2023

O calcanhar

 



 

Melhor presente que lhe podiam ter arranjado. O problema era o aperto no calcanhar de aquiles. Não se podia acolher acusação de culpar apenas pela proximidade de suposto agressor. Não houvesse ninguém por perto, ela nomearia culpado objeto inamovível.  Sempre assim. Forma fácil de se colar às costas o termo responsabilidade.  Bem sabia a porta que prendia o dedo ou o telefone com notícia desagradável.

- Você me irrita.

Não tirava a trava dos olhos para descobrir que o problema que também morava com ela era ela própria. Nunca dizia, em sua defesa, nada nesse sentido. Achava ter demorado muito para apontar nela essa falta. Enquanto, por outro lado, corria a adrenalina. E aqui merecia também uma digressão. Esse suposto agressor já carregava consigo um tipo de complexo de profundo medo. Daí, após tortuoso percurso, essa tardia descoberta.

 Agora como saber portar-se diante dessa nova realidade? Andara como que pisando em ovos, se policiando, com receios de recaídas ou verdades ocultas se revelando, quando nem pretendia enfrentá-las. Para alcançar êxito, iria pelas beiradas. Por exemplo, não mais deixar ventilar assunto, que morreria ali mesmo. Só nos gestos, em complacência, manteriam entendimento mútuo desse disfarce,

Ser irritada implicava, por lógica, que alguém praticara a ação. No caso dela, se  ele discordava dos conceitos que ela guardava das coisas, era ele que praticava a ação. E ponto final, não importava que ele nem sequer tivesse deixado de exercer esse direito de ação.

Descobrira também, como prêmio de maturidade,  nesse processo de convivência, a sensação de haver alcançada a nobre compreensão das coisas.

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