sexta-feira, 30 de agosto de 2024

O peru

 

Era numa segunda-feira cedo, quando Edu encontrou um estranho bicho sobre sua mesa de vice-presidente do Patronato de Presos e Egressos.  Achou engraçado o gorgolejo de um peru com o pescoço num providencial furo na caixa de papelão. Era um peru de quintal. Presente de gente de subúrbio, que se adivinhava pelo cheiro característico que punha impregnado todo o ambiente.

         - Deixaram aí de presente para quem tirou o filho deles da cadeia. Um presentão – disse o vigia.

– Pelo que a mulher disse, “é para um dos meninos”-  informou o vigia.

Edu se lembrou de um habeas corpus, que havia impetrado na semana  anterior,  em favor de um garoto implicado com porte de maconha.

- Assine comigo, pra dar sorte, Ayana – pediu na ocasião a uma colega angolana, que, com a  proclamação de Independência de Angola, passou a morar no Brasil e era indicação de Edu para substituição no comando do patronato.

Após pesquisa, acertaram numa jurisprudência sobre modéstia quantidade da erva ser insuficiente para realização do tipo penal. O Ministério Público já tinha emitido parecer favorável ao pedido. Ele tinha que estar lá na hora do despacho do juiz, apanhar o Alvará de Soltura e tirar realmente o menino da cadeia e levá-lo para casa.  Não era dado a essas manhas como o colega Gilberto, que inclusive era costume aparecer em programas de rádio. Sem propaganda, fizera o principal.

- A família ficou muita agradecida, a mãe e a irmã mais velha, até que  esperaram mas como estavam atrasadas foram embora.

- Não foi o Doutor que fez o habeas corpos? Então para quê esperar ´pelo colega?

- É o presidente, né, Sabino.

- Eu sei, ele é mais vaidoso,  gosta dessas coisas, de se aparecer..

 Além do mais, estavam num local de serviços públicos,

- Não podemos receber pelo serviço, Sabino.

- Foi um presente da família do preso, Doutor.

         Gilberto seguiria esse posicionamento do vigia? Ele iria chegar e, como chefe, decidir quanto à questão. Por ele, Edu...

- Com certeza, seu colega nem pensaria duas vezes.

Era a marca de Gilberto. Veio à sua lembrança o dia em que Edu chegou e notou o movimento de umas mocinhas caminhando atrás de Gilberto:

- E essa blusa como fica agora, Gilberto?  - disse a garota dando uns passinhos da porta do banheiro até a mesa da pequena sala.

Edu achou engraçado mas, quando a menina entrou no banheiro para se trocar, chamou a um canto o presidente e falou:

- Por que elas ficam assim atrás de você o dia inteiro, doutor Gilberto?

- Ué, querem ser manequim, Edu.

- E desde quando você entende do ramo, cara?

- Eu tenho uma tia...

- Você toma vergonha na cara, rapaz. Você nem daqui é: é do interior.

Depois como ficaria com essa mentira, só tapeação dele?

- Mas Gilberto, quando elas descobrirem essa mentira?

- Vêm outras, otário.

Era assim o cara.

         Descobrindo-se em estado letárgico, Edu preferiu mesmos a ideia de Sabino, levou o peru para seu apartamento mas também no subconsciente o prenúncio do que seria a vida que se iniciava, inclusive com a tradição das ideias conservadoras de Gilberto, ao negar a nomeação da dedicada Ayana como presidente.

 Quando terminou de embalar na garupa da moto o caixote de papelão com o respiro reservado ao pescoço do bicho, ouviu o gorgolejo do peru e as últimas palavras do excelentíssimo senhor doutor Gilberto ao vigia:

          - Edu só anda na contramão, Sabino – falavam da indicação de nomes para a composição do patronato. - Além de ser uma estudante de outra universidade, uma mulher, que nem brasileira é.

 

 

 

 

          

        

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Monique


 

Ítalo teve a ideia. Criaria os textos e seu parceiro Preto faria os quadrinhos. Não sabiam eles do alcance de tal projeto, nem em que estariam mexendo. No começo, até que se limitaram ao convencional de fotonovelas já lidas. Depois, arranjaram-se de modo novo que embalou a coisa.  Com estilo. Chegava a informação de que a revista caíra em mãos dos garotos da Rua Nova:

- Eles estavam comentando, O enredo é bom. O motorista namorava a filha do patrão e teve que ir embora – falou Nilo, que negociava novidades para aquelas bandas, inclusive da dupla  que Ítalo estava formando com Preto.

            - Falava o quê, Nilo?

            - Só falava da beleza de Monique.  Da bunda da garota, dos cabelos, dos desenhos,

            - Aí é comigo mesmo – disse Preto.

            - Sai fora, Preto; Você vai ficar...  Aliás, vamos  todos ficar no anonimato. Vai ser arte de Tim H.

            - Quem é Tim H.?

            - Eis a pergunta, meu caro – disse Ítalo.

Tim H, ficou então assim batizado.  Preto tanto caprichou na arte dos  desenhos, que se tornara estimulante à criação dos textos. Nesse perpassar, Ítalo via a adolescência  espichada ao infinito da imaginação. Daí ter que elevar a produção caseira, que era de uns dez exemplares.

- Tá ganhado espaço,  competindo até  com a revista Grande Hotel – voz de Nilo,

            - Você fala que pega lá na banca de seu Nelson também, Nilo?

            E a dupla vibrava com as vantagens debulhadas por Nilo na mesa do Café, nas horas em que Preto, por sugestões de Ítalo, rabiscava Monique em mais um evento.  Desta vez, no Rio de Janeiro, em busca da realização de sonhos.

            - Eles querem saber se Monique vai encontrar o carinha da jaqueta ou não – Nilo contava dos leitores.

            De repente uma escuridão,  Preto havia colocado a mãozona dele no papel e tampado o esboço, de maneira que ninguém via mais nada. Antes, Ítalo ainda apanhou com uma olhada a ponta do lacinho do biquíni da garota na praia de Ipanema e guardou dela aquela imagem.    Ia ser a capa da revista. Quando Preto retirou a mãozona do papel, revelou-se ao mundo uma maravilha, na areia da praia de Ipanema, o corpo de Monique sobrando num biquíni bem transado em dia de sol.

            - Porra, meu irmão,- essa dá até pra ler no banheiro! –. gritou Nilo.

            Firmado como prática de costume, a empresa Tim H começou a incomodar gente graúda, quando o professor de inglês se anunciou em sala de aula da sétima série  B, para uma conversa séria,

            - O que esse porra vai querer com a gente?

A  maioria dos alunos, já passada de ano, pouco se dava às preocupações de moral levantadas pela figura exemplar do professor. Mas, ia-se à luta. Todos em silêncio:

-- O  diretor deste educandário,  antes de adotar rígida medida,  me encarregou dessa “conversa” com vocês – o professor iniciava,

A turma, sem uma preparação para tal assombro, mantinha-se quieta. 

- A mãe de uma de nossas alunas achou na sua bolsa em formato de revista um desenho pornográfico – disse e exibiu a bunda bem desenhada de Monique para a turma embevecida.

Uma algazarra iniciou-se e cessou de vez ante os ensurdecedores tapas na mesa aplicados pelo mestre:

- Silêncio! Proponho que o aluno responsável por essa pornografia se apresente para assinar um compromisso de jamais voltar a envergonhar a escola com a fabricação de tal pornografia, sob pena de suspensão de toda a turma por trinta dias.

Era a Censura, respingo da ditadura, que chegava por essas plagas.