Era numa segunda-feira
cedo, quando Edu encontrou um estranho bicho sobre sua mesa de vice-presidente
do Patronato de Presos e Egressos. Achou
engraçado o gorgolejo de um peru com o pescoço num providencial furo na caixa
de papelão. Era um peru de quintal. Presente de gente de subúrbio, que se adivinhava
pelo cheiro característico que punha impregnado todo o ambiente.
-
Deixaram aí de presente para quem tirou o filho deles da cadeia. Um presentão –
disse o vigia.
– Pelo que a mulher
disse, “é para um dos meninos”- informou
o vigia.
Edu se lembrou de um habeas corpus, que havia impetrado na
semana anterior, em favor de um garoto implicado com porte de
maconha.
- Assine comigo, pra
dar sorte, Ayana – pediu na ocasião a uma colega angolana, que, com a proclamação de Independência de Angola, passou a morar no
Brasil e era indicação de Edu para substituição no comando do patronato.
Após pesquisa, acertaram
numa jurisprudência sobre modéstia quantidade da erva ser insuficiente para
realização do tipo penal. O Ministério Público já tinha emitido parecer
favorável ao pedido. Ele tinha que estar lá na hora do despacho do juiz,
apanhar o Alvará de Soltura e tirar realmente o menino da cadeia e levá-lo para
casa. Não era dado a essas manhas como o
colega Gilberto, que inclusive era costume aparecer em programas de rádio. Sem
propaganda, fizera o principal.
- A família ficou muita
agradecida, a mãe e a irmã mais velha, até que esperaram mas como estavam atrasadas foram
embora.
- Não foi o Doutor que
fez o habeas corpos? Então para quê esperar
´pelo colega?
- É o presidente, né, Sabino.
- Eu sei, ele é mais
vaidoso, gosta dessas coisas, de se
aparecer..
Além do mais, estavam num local de serviços
públicos,
- Não podemos receber
pelo serviço, Sabino.
- Foi um presente da
família do preso, Doutor.
Gilberto
seguiria esse posicionamento do vigia? Ele iria chegar e, como chefe, decidir
quanto à questão. Por ele, Edu...
- Com certeza, seu
colega nem pensaria duas vezes.
Era a marca de Gilberto.
Veio à sua lembrança o dia em que Edu chegou e notou o movimento de umas
mocinhas caminhando atrás de Gilberto:
- E essa blusa como
fica agora, Gilberto? - disse a garota
dando uns passinhos da porta do banheiro até a mesa da pequena sala.
Edu achou engraçado
mas, quando a menina entrou no banheiro para se trocar, chamou a um canto o
presidente e falou:
- Por que elas ficam
assim atrás de você o dia inteiro, doutor Gilberto?
- Ué, querem ser manequim,
Edu.
- E desde quando você
entende do ramo, cara?
- Eu tenho uma tia...
- Você toma vergonha na
cara, rapaz. Você nem daqui é: é do interior.
Depois como ficaria com
essa mentira, só tapeação dele?
- Mas Gilberto, quando
elas descobrirem essa mentira?
- Vêm outras, otário.
Era assim
o
cara.
Descobrindo-se
em estado letárgico, Edu preferiu mesmos a ideia de Sabino, levou o peru para
seu apartamento mas também no subconsciente o prenúncio do que seria a vida que
se iniciava, inclusive com a tradição das ideias conservadoras de Gilberto, ao
negar a nomeação da dedicada Ayana como presidente.
Quando terminou de embalar na garupa da moto o
caixote de papelão com o respiro reservado ao pescoço do bicho, ouviu o gorgolejo
do peru e as últimas palavras do excelentíssimo senhor doutor Gilberto ao
vigia:
- Edu só anda na contramão, Sabino – falavam da
indicação de nomes para a composição do patronato. - Além de ser uma estudante
de outra universidade, uma mulher, que nem brasileira é.