segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

 

Cara de Sol, Cara de Lua

 

1.

... e era assim: tinha um Cara  de Sol, tinha um Cara de Lua.

Moravam juntos mas não se viam.

Moravam num matagal perto da rua.

 

2,

Na hora de bom dia, saía de uma moita o Cara de Sol e falava com sua voz de Sol:

 - Bom dia, gente, bom dia!

E tudo em volta brilhava.

 

3.

Na hora de boa noite, saía de uma moita metade da Cara de Lua e com sua voz de vento                                                                                                                                  soprava:

 - Boa noite, gente: psiu!

E tudo em volta se calava.

 

NeiGeorgePrado

domingo, 22 de dezembro de 2024

 Inês

 

Inês possuía uns olhos de mel puro e muitas indagações sobre o universo que a cercava.  Magrinha, cabia num abraço roubado, de poucas resistências, até vir de lá, do portão,  um repelão de Alencar.

            - Ei cara, caia fora! – gritava.

- Que eu saiba, ela não é sua filha e nem irmã, rapaz – dizia Ítalo.

            - Veio morar aqui para olhar os pequenos, e minha tia me recomendou – explicava-se Alencar, mal humorado, de ressaca, parceiro de sinuca no bar da rua, onde gastavam algumas horas do dia.

            Discutiam outros assuntos também, depois tomavam o café e iam para o trabalho. Um garro em Inês, a reclamação de Alencar, como se fosse um irmão mais velho de Inês e não um primo, que economizava com babá, e assim corriam os dias.

 Ítalo conheceu na fonte aquele mel no olhar da garota, ainda trilhando passos na satisfação de suas descobertas de adolescência.  Estava consciente de figurar como participante desse processo. Mas ao tempo que pensava nela com carinho, um vacilo o sacudia - medo de gente doida.

- Não fica mexendo com ela não, que é doida. Está boazinha assim depois ó ,,, - agourava Alencar.

            Precisava confiar naquele brilho que harmonizava perfeitamente com sua pele branca. Isso poderia adiantar bastante de Inês, passando pelas duas frutas frescas depois de uma longa caminhada pelos seus cabelos loiros.  Notou de longe, vestida com o uniforme escolar, uma jovem semelhante a Inês, fora de casa, na rua, na escola. Era a vida em seu estado de latência. Não podia deixar escapar esse fervor.

            Nesse relacionamento, de amassos e apertões, chegaram aos beijos, por vezes escapados da mão pesada do primo Alencar,

            - Pare com isso, que Inês é doida e você vai se arrepender - de novo o agouro.

            Criou-se então o chamego. Mas estranheza alguma haveria entre eles num bate-papo apressado ali no barzinho:

            - Olá, como vai, Inês?

Queixou-se de Alencar:

            - É um grosso, ignorante. Falei que vou contar pra minha tia sobre esse abuso dele.

Ítalo viu o momento certo e jogou:

- Vamos lá! A gente fica mais à vontade.

Acabou entrando no carro, como se fosse uma carona. Nunca foi tão simples conquistar uma moça.  Contudo, somente Ítalo tinha conhecimento do preço dos tapas e empurrões que recebeu nas costas durante aqueles dias. Inicialmente, um reconhecimento por ter participado gradativamente na construção da primavera de Inês. E avançava lentamente na colheita, cheirando, mordendo e apreciando as peças:

- Começar pelos olhos, Inês – Ítalo beijou a pérola do olho como se tragasse longamente.

            Depois de alguns instantes, os dois se acomodavam, juntos na cama, brincando sob as cobertas, ela, pequena; a blusa era removida pelas mãos serenas e ágeis do companheiro. Este jogo perdurou por um longo período, até que Ítalo percebeu que precisava recuar e decidiu por si mesmo, deixando para uma próxima oportunidade.

            - Você não quer, Baby...

Certo dia, ela apareceu no seu ambiente de trabalho de forma inusitada: vestida como se estivesse indo a uma vaquejada fora de época, usando uma camisa junina, calça jeans e botas, tangendo algo com um chicote. Antes que a loucura se consumasse, ciente das advertências de Alencar, tratou de atraí-la para o carro e escapar dali. Com mais tranquilidade, porém ainda demonstrando sinais de indignação, ela dizia horrores do seu primo.

Com ela, Ítalo teve um encontro para ser lembrado como algo inacabado. Contudo, depois encontrou Alencar, durante uma partida de sinuca, que mencionou um instante dessa loucura em que ele foi compelido a agir sob protestos "daquela louca".

- E cadê Inês? - quis saber Ìtalo

- A desorientada retornou ontem para casa dos pais – respondeu Alencar.

 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

 

  

A propósito de não era gente, de Kiu Oliveira

 

Estou escrevendo um livro de autoficção que nem o livro de Kiu Oliveira. Tanto que o primeiro texto BAGUNÇA se encaixaria, no meu caso, quase dentro do procedimento corta/cola,  e determinaria seu rito.

Mas, por ora, vamos de saborear o livro não era gente, cujo lançamento ocorreu ontem (7/12/24) na Câmara de Vereadores, numa solenidade bem comportada. Equipe de convidados, experimentados, para o evento literário. Ninguém nervoso. Uma poetisa representante do Colégio Antônio Batista, de prenome Simone, foi a encarregada da abertura. E, mostrou-se o porquê, declamou poema de sua lavra, numa demonstração de equilíbrio verbal e de expressão corporal. Depois, dando prosseguimento aos trabalhos, o escritor candibense Welington Carlos discorreu sobre o poder da literatura. Destaque-se aí o momento de encanto do cordel de Gil Martins. A que foram chamados, mostraram suas impressões sobre o livro as professoras Beatriz Silva, Geane Pimentel e Taty Marques, que em suas colocações, essa ultima fez um arremate citando Drummond.

Um bom livro começa pela capa, já foi dito alhures.  A começar pela capa, que é um despertar para a leitura, um menino dirigindo seu carro num mundo do poeta Manuel de Barros. A partir do texto BAGUNÇA, ocorre o despertar para a arrancada. Mas aí você já está dentro, passando pelo velório do avô (Sr. Miúdo), com um fundo histórico (nossa história), deixado pela ênfase da sutileza do pincel do historiador Kiu Oliveira.

 O curioso também é a transformação rápida de uma era para outra. O telefone, por exemplo, foi inventado e chegou ao mundo em 1860. Mas em Pilões a coisa foi um pouco mais demorada, levou mais de um século, no final dos anos de 1980 é que veio a se instalar um posto da Telebahia. Esse e mais outros episódios, com rasgos de puro lirismo, do choro ao riso, vão segurando o leitor até o fim do livro. São textos curtos, densos, à semelhança de contos, em que, ao final, sua memória torna-se conhecida na sua integralidade, como um bom corte de tecido, levado à máquina de costura de sua mãe. 

Cabia uma criança nessa jornada. Depois de escavações da memória, o leitor percebe que, a persistir, até cabia mais gente. Com mais essa obra, Kiu se revela um poeta do cotidiano. De sua aldeia, do distrito de Pilões salta para o mundo. É  a força da literatura.

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segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

 

Cara de Sol e Cara de Lua

 


1.

... e era sempre assim, tinha um Cara de Sol, tinha um Cara de Lua.

Moravam juntos mas não se viam.

Moravam num matagal perto lá da rua.

 2.

Na hora do bom dia, saía de uma moita o Cara de Sol e falava com sua voz de Sol:

- Bom dia, gente, bom dia!

E tudo em volta brilhava.

3.

Na hora do boa noite, saía de uma moita o Meia Cara de Lua com sua voz de vento e soprava:

-  Boa noite, gente; psiu!

         E tudo se calava em volta.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

 

Carmem

                        Ítalo estava no segundo ano do ensino médio e retornava de férias à sua cidade natal.  Camisa de malha azul claro, colocada por baixo da calça amarela. Com uma aparência úmida, ele mantinha o cabelo curto, exibindo um penteado com uma nuance de lavanda de marca trim, um costume herdado do pai. Ansiava pelo domingo para vestir sua camisa de malha azul claro, que a empregada já havia preparado no cabide. Como se estivesse à procura de uma namorada, buscava aproximação com uma colega do colégio. Uma menina loira. Ela havia chegado à cidade para estudar e residia com uns tios. No entanto, nas saídas para encontros amorosos, enfrentava uma vigilância rigorosa do primo. Podia ser por encomenda da família, que era muito comum por essas bandas.

                        Carmem possuía reputação de namoradeira. Afoita, ocultava no seu jeito inocente as cinzas de um vulcão em estado de hibernação. O primo era quem tentava apagar esse foco nela.  Até parecia que, com um casaco de frio, acreditasse expulsar nela esses demônios. No entanto, Ítalo estava na paquera e, sem se atinar para esses detalhes, precisava de uma namorada. Até o dia da festa na cidade, quando se apresentaria ao lado dela.  Um movimento adiante. Afinal, era uma jovem senhora, entendimento que ofuscava o lado regateiro da loirinha. Com certeza, enriqueceria seu histórico de rapaz.

                Feito o clique de um papo leve, restava gastar as horas com imagens que marcaram de beijos e abraços num banco da praça.

                        - Arranjei uma namorada para a festa – disse de sua alegria à irmã.

                        - Posso saber o nome?

                        - Lembra daquela lourinha, Carmem, que foi minha colega de ginásio?

                        - Ah, uma lourinha azeda – disse com desprezo.

                        Lourinha cheirosa, isto sim, pensou Italo. Com ela aprenderia a valorizar o beijo de língua, interrompido por uma blusada recebida do moleque, que era primo:

                        - Vamos embora, Carminha – desfechava uma blusada.

                        - Embora pra casa, Carminha, senão eu falo com mãe – desfechava outra blusada.

                        Até que enfim veio para cima de Carmem e deu uma com mais violência que acabou com o que era doce.

                        Durante as férias de 1977, na primeira noite da festa, Benedito, um amigo de infância de Ítalo, recém chegado todo invocado de São Paulo, foi quem lhe apresentou a namorada em um "paulistês" de cortar a respiração:

- Oi, Ítalo, você pode dançar com a Carmem? – disse pousando numa de porreta.

  

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

 

Montes Claros

 

Montes Claros, uma cidade plural. Ítalo guardava da capital norte-mineira uma lembrança inesquecível das suas férias de infância. Ele não se esqueceu, pulava da cama, feliz, e percorria a madrugada numa viagem sem fim, até que, ao longe, nas montanhas, se delineava uma paisagem repleta de pontos luminosos. Era a metrópole. No entanto, agora era revisada para atender a interesses de gente grande. Veio com o irmão, que tinha a tarefa de negociar alguns terrenos que o pai tinha recebido como pagamento de uma dívida. Não estava mais em busca de novidades ou descobertas como antes, mas de outros interesses.   A magnitude do trem de ferro, o sabor do sorvete de coco queimado, o odor de café com leite e pão amanteigado que permeava as manhãs, o cheiro de brinquedos de plástico, a beleza das praças, o ruído do lambe-lambe, a melodia do carro do leiteiro, a encanto do cinema e da televisão, tudo isso persistia na memória de um garoto perdido no tempo. O irmão, Tom, recém-graduado, aspirava a uma ascensão profissional, enquanto ele, já estabelecido, buscava companheirismo apenas.

- Eu soube que o pai já tinha lhe dado anteriormente – disse Tom.

- Não consegui vender na ocasião, agora é sua vez, Tom.

Tom iria à prefeitura para resolver a situação fiscal do terreno. Assinaria um acordo de compra e venda com um comerciante da região. Na rapidez do irmão, ao dialogar com um despachante, tudo se resolvia num tapa. Posteriormente, não fariam nada, revisariam alguns pontos que já não existiam mais.

Ele se concentrou mais nas questões culturais locais do que nas sofisticações modernas. Foi notável a diferença entre eles ao almoçar, em restaurantes com gostos diferentes, mas situados no mesmo calçadão. Um preferia carne de bode, maxixe, pequi e feijão fradinho, enquanto o outro preferia estrogonofe e maionese. Tom finalizou o prato especial no local e aproveitou para visitar o restaurante onde Ítalo, serenamente, saboreava um bode.

- Você agora se rendeu – disse a Tom, aproveitando que ele puxou uma naco de carne do seu prato.

E acrescentou:

 – Pode se servir. Está delicioso o bode – arrematou sorrindo para o irmão branco.

- Também você já fez seus gostos de menino, não é?- disse fitando os pacotes de compras sobre a mesa.

- Comprei livros e discos, chupei um picolé no banco da pracinha Coronel Ribeiro, passeei pela rua Tiradentes, vi um prédio novo no local da pensão de tia Preta – disse Ítalo com nostalgia.

- Essa Praça Coronel Ribeiro parecia que era um mundão, né?

- É. Sentado num banco, engraxei meus sapatos, senão eu não “vim a Montes Claros”.

Depois se voltou com sede:

                        - É, mas estou querendo ir lá à rua das meninas, Tom, senão a gente não veio a Montes Claros.

- Pirilampos? Dizem que o nome é este.

- Então é pra lá que vamos – disse Ítalo para encerrar o papo.

            A cidade, saboreada em seus pontos de remoto desejo, por se encontrar numa

            outra fase, proporcionava uma perspectiva diferente. Ítalo sentia que ainda vibrava no corpo a inquietude de segredos juvenis.

- Vamos lá nas meninas marcar presença senão não viemos aqui, Tom – insistiu Ítalo.

                        Entendia essa sua inclinação para ser o guia, o vigilante, e sabia que logo seria orientado por Tom para satisfazer esse anseio, assim como aconteceu quando recebeu do seu irmão mais velho o picolé de amendoim na infância. Contudo, por outro lado, lhe causava angústia a ideia de ter negado suporte durante sua formação em judô.

            - Que que você está rindo?

            - De quando você recebeu a medalha de bronze no judô.   

            - Ah, época de ginásio, que você nem quis ir comigo e depois fez a maior

gozação?

            - Tenho a maior arrependimento disso, Tom. Você era um menino legal.

            - Coisa passada.                                          

            Achou uma garota do tamanho exato de sua expectativa:

            - Vou querer aquela ali. Tenho que combinar.

- Eu vou combinar pra você. Ela é bonita mas está com um cara que deve ser o namorado.

            Ítalo percebeu que Tom estava com níveis mais altos de álcool, quando

começava a se exaltar, nessa onda de monitoramento.

 

 

 

            - Ela topou, nas tenho que ficar de olho no cara.

            Como se vivesse num clima de terror, sob os seus cuidados. Ele seria o herói

nesse lance de amor contratado.

            - Prazo de validade: uma hora.

            - Suficiente.

            - Então vá lá – deu um tapa nas costas do irmão mais velho antes de Ítalo

envolver a moça num abraço e subir as escadas.

            E Tom, se Ítalo bem conhecia o irmão mais branco, ficaria ali na retaguarda,

dando garantia  e de olho  entre o relógio e o carinha, despachado à porta de saída.        

 

 

 

 

 

domingo, 3 de novembro de 2024

A garota de rua e seus três maridos

 

             

Três estudantes universitários, à procura de um encontro interessante na metrópole, se depararam com uma jovem que parecia estar se perdendo. Confortavelmente, aceitando a carona oferecida pelos seus caçadores. Para um local inesperado. No começo dos anos oitenta, era um lance burguês ter um carro na mão. Ao tomar conhecimento da novidade, Toninho discou o número do colega Ítalo:

            - Hoje, vamos  os três. O pai de Róbson cedeu o carro.

Os três cavalheiros, assim chamados na universidade, se comprometeriam com o programa de fim de semana.  Beberiam na lanchonete habitual, conversariam e, em seguida, partiriam para a noite.

O Corcel II, todo lustroso, com um som bacana. Dentro dele, os rapazes se comportando como caçadores empolgados. Ítalo sorria com a comparação boba que fazia. Com o objetivo de abordar garotas, pelas ruas desnudas, seguiam com o carro num ritmo de carrocinha de pegar cachorro,.

            Vez por outra, Robson, agoniado,  exasperava:

            - Nenhuma.

            - Quando menos se espera é que aparece, cara - disse Ítalo.

            Enquanto se imaginavam maravilhas, a carrocinha rolava no asfalto. Batia uma brisa fresca. Ítalo pôs o rosto para fora do veículo e puxou para si o espírito daquela década de 80.

            - A gente tem que estar preparado. Cada um colaborando com o outro, sem usura, sem essa tara toda, para não assustar a garota.

            - Nem pintou direito a menina, cara.

            - É, mas quem conhece...

            Pelo jeito, tinha que ser o responsável ali -  conjecturou Ítalo. Não confiava muito na maturidade de Róbson, com seus arroubos de rebeldia, tampouco de Toninho, dado a paixões hilárias.  Todos na casa dos vinte, teria que ser ele o cabeça da turma.  

            - Olhe aquele broto... sozinha... Não! não pode deixar não, cara. Pare o carro, Róbson.

            Devagarzinho, a carrocinha acompanhava um Chapeuzinho Vermelho pela floresta dos homens, com um papo levado aos trambolhões, num bombardeio de perguntas, sem respostas. E, ela apanhada assim com aquela alegria juvenil, apenas esboçou um sorriso, como se, de longe, aguardasse por tais manifestos e que a vida poderia seguir de qualquer maneira sem eles.

            - Deixe que eu vou falar com ela e ajeitar, para nós, um programa mais democrático -  disse Ítalo, mais adulto no caso.

            Passados poucos segundos, voltaram abraçados como um casal acostumado. Sem embaraço nenhum, ela entrou no carro.

            - Te apresento o cavalheiro Robson, motorista, e, no banco traseiro, nosso outro cavalheiro Toninho. Vamos fazer um passeio democrático, ok? – disse se acomodando no banco traseiro.

            Foi o bastante para uma arrancada de Robson, invadindo ruas e rasgos da madrugada. Teve que tanger os braços de Toninho:

            - Contenha-se, garoto! Hora de agir com diplomacia, não selvageria.  Primeiro, vamos ver com quem ela quer ficar primeiro. Não é, Baby? – disse Ítalo passando a mão pelos cabelos da morena sorridente. Certo que, tirando o lado efusivo do grupo, ela era tranqüila, nada parecia temer.

            - Puxa prum motel, Robson – disse Ítalo, perscrutador.

            O carro saiu embalado cortando em becos e retomando avenidas como chuva numa enxurrada, até avistar letreiros luminosos em placas erguidas num alto de encostas:

            - É o seguinte: Toninho vai ficar agachado pra enganar o esquema; lá dentro a gente se ajeita.

            A garota nada dizia,  nem sinais de protesto senão fachos de tímida alegria, sempre com gestos afáveis com um  e com outro dos cavalheiros.

            - Abaixe-se aí e fique quieto, Toninho, que vamos passar agora – ordenou Robson encarregado.

            Para os cavalheiros havia o sonho de estar num quarto de motel com uma mulher. Uma novidade boa. Ítalo notou que essa novidade também valia para a parceira, que pediu uma breve pausa.

-  Decerto que é para uma espécie de  “reconhecimento” do gramado, como fazem os clubes no futebol – imaginou Ítalo.

            A musa se acomodou na cama, esticou-se, rolou, se levantou e se virou de costas, chamando com a mão. Os três, com sede no pote, repletos de mãos de carinho, concordaram, de forma implícita, com o costume de ir uma pessoa por vez. Ítalo se divertiu com jogos de abraços e beijos, bolinando nas áreas nobres, prevendo que esse seria o procedimento habitual, que os outros cavalheiros também seguiriam, prontos para agir, num cercado improvisado no quarto.

            Na hora de se despedir da garota, Ítalo lembrou que estava em cartaz o filme de Bruno Barreto, Dona Flor e seus dois maridos, baseado na obra de Jorge Amado, deu beijinhos no rosto dela e voltou para o carro contente.

 

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sábado, 26 de outubro de 2024

Pisando nos cascos

 


       

Seu time ia jogar na cidade vizinha. Ítalo, nos seus treze anos, estava pisando nos cascos, como se dizia então. Sentia-se forte, com preparação de um atleta de pretensões olímpicas. O João do Pulo, inspirador, encheu-lhe os olhos com aquele salto triplo.

Antes de entrar em campo, Ítalo deu uma volta em torno do “gramado” e, com três pulos, olhar de superioridade, entrou na fila acompanhando os demais jogadores.

- Ei camisa 9!  – ouviu de uma garota no meio da torcida.

Eram meninas “caçando” entrada. Falaram dessas torcedoras. Mas que não se empolgasse, que, no fundo, era mesmo deboche.  Os adversários no outro domingo viriam pagar o jogo. Com o treinamento da semana, consideravam-se preparados no entrosamento. Prontos para uma vitória maiúscula. Até o apito inicial, Ítalo se mexia em aquecimento. Logo entraria em campo em grande estilo.

                - Ei camisa 9! – ouviu de novo a garota.

             - Oi – disse Ítalo em fila com os demais.

            Foram passando, mas ainda escutou a provocação de uma das garotas:

            - Vocês vão perder. É uma pena.

            - Vamos ver, menina bonita – devolveu Ítalo num murmúrio.

            Um grupo de quatro garotas ainda fazia algazarra num canto.

            - Como é seu nome, essa do meio?

            Enquanto desfilava com os demais garotos, sõ faltando exibir também as coxas que pareciam arrebentar o calção, notou que elas ficavam brincando ao inventar nomes:

            - Sou eu aqui, seu homem – respondeu a moreninha erguendo o dedo.

           Decerto que era devido ao bigode raspado,  mas se sentia envaidecido com esse tratamento.  Não sabia ela que eram da mesma idade? Era um rapaz, afinal.

Dada a saída, a bola foi para a rebatida da defesa, quando um colega de equipe chegou atrasado e só encontrou os cravos da chuteira do zagueiro. Os dois se estranharam. E quando o atacante levantou-se do chão, sem nem sacudir a poeira, para ir para a luta, Ítalo de forma inusitada e se posicionou ao lado, como quem compra a briga. Tal foi a cena de cinema, que o árbitro nem hesitou e entrou na fita com aplicação de um cartão vermelho: - expulso!  - apitou forte. O time ficou com um jogador a menos e Ítalo, brilho apagado, foi assistir ao jogo retirado, num canto de cerca, sem ninguém por perto.

Havia decorrido menos de minuto de jogo e ele não pôde exibir seu futebol. Na hora do embarque, para completar sua tristeza, descobrira que ele, na pressa, tinha vestido a camisa  6 em vez da 9. Olhou para trás numa tentativa de quem busca algo esquecido, mas numa ventania o carro se arrancou..


sábado, 12 de outubro de 2024

Nice

 

 

Nice era uma loura simples, mas de confortos:

- Nice, você parece aquela cantora do Kid Abelha.

Ela sorria seu sorriso fofo. Aí que ficava mesmo parecida. De origem rural, ela nem conhecimento tinha da artista. Fizera questão de mostrar um vídeo do grupo se apresentando na tv com o charme da lourinha.

- Um encanto – disse Edu. – Não podia ser você, Nice? – brincou à mesa da sua turma de cerveja, enquanto ela, fazendo às vezes de garçonete,  destampava as garrafas.

- Coitada de mim, nem sei cantar, quanto mais...  – disse a garota.

- Aí já é luxo, Nice. Bastava seu charme – disse Edu.

Um sorriso de Nice e fim.

- Você não acompanhava, né, Nice?

- Não. A gente não tinha conhecimento dessas músicas. Ela canta bem, além de ser agradável.

- Ôxe, posição crítica de Nice, rapaz – Edu começou fazendo resenha! – Olhe aqui, gente, o que Nice achou de Paulinha Toller do Kid Abelha – espalhava pelo restaurante conversando com os fregueses do restaurante e apontando para Nice, que ganhou o dia de reconhecimento como artista do rock.

Não levou tempo para, nessas brincadeiras, receber uma refreada da dona da casa. Uma cinquentona, de argolas, que trouxera duas sobrinhas para a cidade, com boas perspectivas. Só que as meninas tinham que colaborar. Assim,  Nice passava a ser mais reservada.

- Imagine se o namorado, um delegado de polícia, pegar Nice nesse relaxo com vocês! – disse a irmã de Nice,

- Delegado, é? – estranhou Edu.

- E regional ainda por cima – informou o garçom entrando na conversa.

- Nice não é pra brincadeira não, cara – continuou o garçom – Daqui

a pouco aparece ele aí numa viatura da polícia civil. .

A partir daí, a prosa passou de crítica musical para atuação policial e outras coisas mais. Inicialmente, ninguém se interessava por essa questão. Posteriormente, a jovem iniciou um processo de recolhimento. A tia xerife era rude, preocupada com o futuro da sobrinha. Essa perturbação também afetava os admiradores. Daquele dia em diante, a turma se reunia para beber, com reservas e sem "liberdades"; Nice entregue a seu namorado de mãos beijadas. Namoro tradicional, sentados na calçada e vez por outra passeando de carro. E ninguém mais marcou presença que se lembrasse do seu nome. No entanto, sempre que ela passava e deixava um rastro de perfume, logo levantava um suspiro geral.

Declarado admirador, acabou se tornando um especialista em Nice. Agora se aventurando numa investigação perigosa, algo que não era de seu agrado. Pelo rastro de fragrância que dela exalava, talvez ocorresse tal envolvimento, no puro instinto.

Isso se tornou normal quando a viatura apareceu para deixar o delegado e, posteriormente, para capturá-lo. A mesa do delegado, previamente organizada para o evento, estava sempre em clima de noivado até que se descobriu que ele estava envolvido com uma jovem de família na capital:

- O nome dela é Susana  e cursa pedagogia – disse Edu, bancando o detetive. - Colega de minha irmã - arrematou, como se vingasse com a fofoca mas com  o devido respeito.

 

 

 

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

 


Bonitinha

 

  

Era bonitinha e nada tinha de ordinária mas era como se tivesse.

 

No barzinho de costume, um toco de garota morena se sobressaía, desaparecendo e reaparecendo com seu pretume de cabelo curto. Pequena estrela durante a mesada de cerveja com amigas. Edu bateu o olho de paquerador. Ela estava perto de uma veterana conhecida que se dirigia ao balcão para pedir mais uma e percebeu o entusiasmo dele

- Não vai me apresentar à pequena? – indagou Edu.

A veterana deu sinal, a garota apareceu toda sorriso, short branco e blusa vermelha, limpinha e cheirosa:

- Olá, faz tempo que andava a sua espera.

Ofereceu o rosto para beijinhos.  Mas ele preferiu aproveitar o pé do ouvido dela e segredar:

- Preciso te ver, Cabelo Preto.

- Também – ela disse.

Notou que ela tinha receio, porque deixara o garoto, patrocinador da farra deles, quase sozinho à mesa. Edu não deu preço as dores do moleque e procurou cercar de atenção a garota. Foi logo aconselhado pelos mais velhos a evitar uma crise climática no local. O enfurnado se achava dono. Edu, ao contrário, mantinha-se inarredável, firme no seu propósito festivo, ignorando as dores alheias. Aproximava-se de uma típica briga de bar. Mas Edu não levava jeito de mocinho. Deixava que o rival destilasse irritação. O velho que tentava conter Edu dizia tratar de um marceneiro, endinheirado de momento. Num vacilo dos contendores, Edu tratou de  encontrar depois com a garota .

 Foi o que ocorreu quando, outro dia, passando pela mesma rua, topou com um capacete que escondia asas de graúna, mas que dele se livrou, para receber recados e voltar para seu esconderijo:

- No posto de gasolina,  daqui a meia hora – disse Edu, passando com o carro rente.

E lá se foi  num rasgado a lambreta com  garota cheirando a lavanda pós banho vespertino.

 Ali, a Graúna encontrou abrigo para sua lambreta e adentrou o carro de Edu sem pressa. Desde então, passou a ser sua dama de honra temporária. Quando Edu estava em um barzinho, sua lambreta chegava.  Assim, ia ele colhendo figurinhas de montar o quebra-cabeça dela, que era órfã.

- Recebi minha casa, com um barzinho, de herança.

Tomou conhecimento de que ela enfrentara problema de menoridade com o Ministério Público..

- Você foi abusada, mas não gosta de falar, é isso?

- Apareça por lá, Edu: comidinha boa, cervejinha gelada e eu – disse para mudar de assunto.

- Quem vai lá?

- A turma da gente e pessoas comuns.

Uma espelunca, soube depois, com infiltrações quando chove. E o negócio era só fiado, que resultava em prejuízo, não mensurado mas de efeito corrosivo.

- Por que você não aluga pra alguém do ramo o barzinho?

- Já aluguei uma vez. Tive que retomar.

Ela precisava de um companheiro forte. Graúna não tinha comando. Inspirava cuidados especiais, no final era uma pródiga. Ela era bonita e tinha tudo para ser comum, mas era uma moça de caráter nobre. E Edu começou a acolher sua visita como uma demonstração de afeto. Por exemplo, enquanto estava em outra cidade bebendo com amigos, ela viajou de moto sozinha para se juntar a ele no final.

- Foram doze cervejas; três foram pagas pela namorada de Edu – contava, confundida, a dona do barzinho.

  

Outro ato de demonstração de afeto de Graúna se deu quando ela apresentou a ele uma amiga, que se sentou à mesa com eles. O dia parecia morrer nas serras ao longe. A garota, desentendida com os pais, aguardava resultado de exames. Viera de outra cidade e ia se hospedar onde senão na espelunca de Graúna.  Edu completou a cerveja dos copos e deu um bico no seu.

- Combinamos, eu e sua amiguinha – disse.

- Ela está grávida, você contou pra ele? – dirigiu-se à amiga.

Edu não esperou reposta e falou:

- Eu acho mais bonita assim.

- Então vamos os três.

                Tudo somado, serviu pata selar uma amizade.