Montes
Claros
Montes Claros, uma cidade
plural. Ítalo guardava da capital norte-mineira uma lembrança inesquecível das
suas férias de infância. Ele não se esqueceu, pulava da cama, feliz, e
percorria a madrugada numa viagem sem fim, até que, ao longe, nas montanhas, se
delineava uma paisagem repleta de pontos luminosos. Era a metrópole. No
entanto, agora era revisada para atender a interesses de gente
grande. Veio com o irmão, que tinha a tarefa de negociar alguns terrenos que o
pai tinha recebido como pagamento de uma dívida. Não estava mais em busca de
novidades ou descobertas como antes, mas de outros interesses. A magnitude do trem de ferro, o sabor do
sorvete de coco queimado, o odor de café com leite e pão amanteigado que
permeava as manhãs, o cheiro de brinquedos de plástico, a beleza das praças, o
ruído do lambe-lambe, a melodia do carro do leiteiro, a encanto do cinema e da
televisão, tudo isso persistia na memória de um garoto perdido no tempo. O
irmão, Tom, recém-graduado, aspirava a uma ascensão profissional, enquanto ele,
já estabelecido, buscava companheirismo apenas.
- Eu soube que o pai já
tinha lhe dado anteriormente – disse Tom.
- Não consegui vender
na ocasião, agora é sua vez, Tom.
Tom iria à prefeitura
para resolver a situação fiscal do terreno. Assinaria um acordo de compra e
venda com um comerciante da região. Na rapidez do irmão, ao dialogar com um
despachante, tudo se resolvia num tapa. Posteriormente, não fariam nada,
revisariam alguns pontos que já não existiam mais.
Ele se concentrou mais
nas questões culturais locais do que nas sofisticações modernas. Foi notável a
diferença entre eles ao almoçar, em restaurantes com gostos diferentes, mas
situados no mesmo calçadão. Um preferia carne de bode, maxixe, pequi e feijão fradinho,
enquanto o outro preferia estrogonofe e maionese. Tom finalizou o prato
especial no local e aproveitou para visitar o restaurante onde Ítalo,
serenamente, saboreava um bode.
- Você agora se rendeu
– disse a Tom, aproveitando que ele puxou uma naco de carne do seu prato.
E acrescentou:
– Pode se servir. Está delicioso o bode –
arrematou sorrindo para o irmão branco.
- Também você já fez
seus gostos de menino, não é?- disse fitando os pacotes de compras sobre a
mesa.
- Comprei livros e
discos, chupei um picolé no banco da pracinha Coronel Ribeiro, passeei pela rua
Tiradentes, vi um prédio novo no local da pensão de tia Preta – disse Ítalo com
nostalgia.
- Essa Praça Coronel
Ribeiro parecia que era um mundão, né?
- É. Sentado num banco,
engraxei meus sapatos, senão eu não “vim a Montes Claros”.
Depois se voltou com
sede:
- É, mas estou querendo ir lá à rua das
meninas, Tom, senão a gente não veio a Montes Claros.
- Pirilampos? Dizem que
o nome é este.
- Então é pra lá que
vamos – disse Ítalo para encerrar o papo.
A
cidade, saboreada em seus pontos de remoto desejo, por se encontrar numa
outra fase, proporcionava uma
perspectiva diferente. Ítalo sentia que ainda vibrava no corpo a inquietude de
segredos juvenis.
- Vamos lá nas meninas
marcar presença senão não viemos aqui, Tom – insistiu Ítalo.
Entendia essa sua inclinação para ser o guia,
o vigilante, e sabia que logo seria orientado por Tom para satisfazer esse
anseio, assim como aconteceu quando recebeu do seu irmão mais velho o picolé de
amendoim na infância. Contudo, por outro lado, lhe causava angústia a ideia de
ter negado suporte durante sua formação em judô.
-
Que que você está rindo?
-
De quando você recebeu a medalha de bronze no judô.
-
Ah, época de ginásio, que você nem quis ir comigo e depois fez a maior
gozação?
-
Tenho a maior arrependimento disso, Tom. Você era um menino legal.
-
Coisa passada.
Achou
uma garota do tamanho exato de sua expectativa:
-
Vou querer aquela ali. Tenho que combinar.
- Eu vou combinar pra você. Ela é bonita
mas está com um cara que deve ser o namorado.
Ítalo
percebeu que Tom estava com níveis mais altos de álcool, quando
começava a se exaltar, nessa onda de
monitoramento.
-
Ela topou, nas tenho que ficar de olho no cara.
Como
se vivesse num clima de terror, sob os seus cuidados. Ele seria o herói
nesse lance de amor contratado.
-
Prazo de validade: uma hora.
-
Suficiente.
-
Então vá lá – deu um tapa nas costas do irmão mais velho antes de Ítalo
envolver a moça num abraço e subir
as escadas.
E
Tom, se Ítalo bem conhecia o irmão mais branco, ficaria ali na retaguarda,
dando garantia e de olho
entre o relógio e o carinha, despachado à porta de saída.