segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

 

Cara de Sol, Cara de Lua

 

1.

... e era assim: tinha um Cara  de Sol, tinha um Cara de Lua.

Moravam juntos mas não se viam.

Moravam num matagal perto da rua.

 

2,

Na hora de bom dia, saía de uma moita o Cara de Sol e falava com sua voz de Sol:

 - Bom dia, gente, bom dia!

E tudo em volta brilhava.

 

3.

Na hora de boa noite, saía de uma moita metade da Cara de Lua e com sua voz de vento                                                                                                                                  soprava:

 - Boa noite, gente: psiu!

E tudo em volta se calava.

 

NeiGeorgePrado

domingo, 22 de dezembro de 2024

 Inês

 

Inês possuía uns olhos de mel puro e muitas indagações sobre o universo que a cercava.  Magrinha, cabia num abraço roubado, de poucas resistências, até vir de lá, do portão,  um repelão de Alencar.

            - Ei cara, caia fora! – gritava.

- Que eu saiba, ela não é sua filha e nem irmã, rapaz – dizia Ítalo.

            - Veio morar aqui para olhar os pequenos, e minha tia me recomendou – explicava-se Alencar, mal humorado, de ressaca, parceiro de sinuca no bar da rua, onde gastavam algumas horas do dia.

            Discutiam outros assuntos também, depois tomavam o café e iam para o trabalho. Um garro em Inês, a reclamação de Alencar, como se fosse um irmão mais velho de Inês e não um primo, que economizava com babá, e assim corriam os dias.

 Ítalo conheceu na fonte aquele mel no olhar da garota, ainda trilhando passos na satisfação de suas descobertas de adolescência.  Estava consciente de figurar como participante desse processo. Mas ao tempo que pensava nela com carinho, um vacilo o sacudia - medo de gente doida.

- Não fica mexendo com ela não, que é doida. Está boazinha assim depois ó ,,, - agourava Alencar.

            Precisava confiar naquele brilho que harmonizava perfeitamente com sua pele branca. Isso poderia adiantar bastante de Inês, passando pelas duas frutas frescas depois de uma longa caminhada pelos seus cabelos loiros.  Notou de longe, vestida com o uniforme escolar, uma jovem semelhante a Inês, fora de casa, na rua, na escola. Era a vida em seu estado de latência. Não podia deixar escapar esse fervor.

            Nesse relacionamento, de amassos e apertões, chegaram aos beijos, por vezes escapados da mão pesada do primo Alencar,

            - Pare com isso, que Inês é doida e você vai se arrepender - de novo o agouro.

            Criou-se então o chamego. Mas estranheza alguma haveria entre eles num bate-papo apressado ali no barzinho:

            - Olá, como vai, Inês?

Queixou-se de Alencar:

            - É um grosso, ignorante. Falei que vou contar pra minha tia sobre esse abuso dele.

Ítalo viu o momento certo e jogou:

- Vamos lá! A gente fica mais à vontade.

Acabou entrando no carro, como se fosse uma carona. Nunca foi tão simples conquistar uma moça.  Contudo, somente Ítalo tinha conhecimento do preço dos tapas e empurrões que recebeu nas costas durante aqueles dias. Inicialmente, um reconhecimento por ter participado gradativamente na construção da primavera de Inês. E avançava lentamente na colheita, cheirando, mordendo e apreciando as peças:

- Começar pelos olhos, Inês – Ítalo beijou a pérola do olho como se tragasse longamente.

            Depois de alguns instantes, os dois se acomodavam, juntos na cama, brincando sob as cobertas, ela, pequena; a blusa era removida pelas mãos serenas e ágeis do companheiro. Este jogo perdurou por um longo período, até que Ítalo percebeu que precisava recuar e decidiu por si mesmo, deixando para uma próxima oportunidade.

            - Você não quer, Baby...

Certo dia, ela apareceu no seu ambiente de trabalho de forma inusitada: vestida como se estivesse indo a uma vaquejada fora de época, usando uma camisa junina, calça jeans e botas, tangendo algo com um chicote. Antes que a loucura se consumasse, ciente das advertências de Alencar, tratou de atraí-la para o carro e escapar dali. Com mais tranquilidade, porém ainda demonstrando sinais de indignação, ela dizia horrores do seu primo.

Com ela, Ítalo teve um encontro para ser lembrado como algo inacabado. Contudo, depois encontrou Alencar, durante uma partida de sinuca, que mencionou um instante dessa loucura em que ele foi compelido a agir sob protestos "daquela louca".

- E cadê Inês? - quis saber Ìtalo

- A desorientada retornou ontem para casa dos pais – respondeu Alencar.

 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

 

  

A propósito de não era gente, de Kiu Oliveira

 

Estou escrevendo um livro de autoficção que nem o livro de Kiu Oliveira. Tanto que o primeiro texto BAGUNÇA se encaixaria, no meu caso, quase dentro do procedimento corta/cola,  e determinaria seu rito.

Mas, por ora, vamos de saborear o livro não era gente, cujo lançamento ocorreu ontem (7/12/24) na Câmara de Vereadores, numa solenidade bem comportada. Equipe de convidados, experimentados, para o evento literário. Ninguém nervoso. Uma poetisa representante do Colégio Antônio Batista, de prenome Simone, foi a encarregada da abertura. E, mostrou-se o porquê, declamou poema de sua lavra, numa demonstração de equilíbrio verbal e de expressão corporal. Depois, dando prosseguimento aos trabalhos, o escritor candibense Welington Carlos discorreu sobre o poder da literatura. Destaque-se aí o momento de encanto do cordel de Gil Martins. A que foram chamados, mostraram suas impressões sobre o livro as professoras Beatriz Silva, Geane Pimentel e Taty Marques, que em suas colocações, essa ultima fez um arremate citando Drummond.

Um bom livro começa pela capa, já foi dito alhures.  A começar pela capa, que é um despertar para a leitura, um menino dirigindo seu carro num mundo do poeta Manuel de Barros. A partir do texto BAGUNÇA, ocorre o despertar para a arrancada. Mas aí você já está dentro, passando pelo velório do avô (Sr. Miúdo), com um fundo histórico (nossa história), deixado pela ênfase da sutileza do pincel do historiador Kiu Oliveira.

 O curioso também é a transformação rápida de uma era para outra. O telefone, por exemplo, foi inventado e chegou ao mundo em 1860. Mas em Pilões a coisa foi um pouco mais demorada, levou mais de um século, no final dos anos de 1980 é que veio a se instalar um posto da Telebahia. Esse e mais outros episódios, com rasgos de puro lirismo, do choro ao riso, vão segurando o leitor até o fim do livro. São textos curtos, densos, à semelhança de contos, em que, ao final, sua memória torna-se conhecida na sua integralidade, como um bom corte de tecido, levado à máquina de costura de sua mãe. 

Cabia uma criança nessa jornada. Depois de escavações da memória, o leitor percebe que, a persistir, até cabia mais gente. Com mais essa obra, Kiu se revela um poeta do cotidiano. De sua aldeia, do distrito de Pilões salta para o mundo. É  a força da literatura.

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segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

 

Cara de Sol e Cara de Lua

 


1.

... e era sempre assim, tinha um Cara de Sol, tinha um Cara de Lua.

Moravam juntos mas não se viam.

Moravam num matagal perto lá da rua.

 2.

Na hora do bom dia, saía de uma moita o Cara de Sol e falava com sua voz de Sol:

- Bom dia, gente, bom dia!

E tudo em volta brilhava.

3.

Na hora do boa noite, saía de uma moita o Meia Cara de Lua com sua voz de vento e soprava:

-  Boa noite, gente; psiu!

         E tudo se calava em volta.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

 

Carmem

                        Ítalo estava no segundo ano do ensino médio e retornava de férias à sua cidade natal.  Camisa de malha azul claro, colocada por baixo da calça amarela. Com uma aparência úmida, ele mantinha o cabelo curto, exibindo um penteado com uma nuance de lavanda de marca trim, um costume herdado do pai. Ansiava pelo domingo para vestir sua camisa de malha azul claro, que a empregada já havia preparado no cabide. Como se estivesse à procura de uma namorada, buscava aproximação com uma colega do colégio. Uma menina loira. Ela havia chegado à cidade para estudar e residia com uns tios. No entanto, nas saídas para encontros amorosos, enfrentava uma vigilância rigorosa do primo. Podia ser por encomenda da família, que era muito comum por essas bandas.

                        Carmem possuía reputação de namoradeira. Afoita, ocultava no seu jeito inocente as cinzas de um vulcão em estado de hibernação. O primo era quem tentava apagar esse foco nela.  Até parecia que, com um casaco de frio, acreditasse expulsar nela esses demônios. No entanto, Ítalo estava na paquera e, sem se atinar para esses detalhes, precisava de uma namorada. Até o dia da festa na cidade, quando se apresentaria ao lado dela.  Um movimento adiante. Afinal, era uma jovem senhora, entendimento que ofuscava o lado regateiro da loirinha. Com certeza, enriqueceria seu histórico de rapaz.

                Feito o clique de um papo leve, restava gastar as horas com imagens que marcaram de beijos e abraços num banco da praça.

                        - Arranjei uma namorada para a festa – disse de sua alegria à irmã.

                        - Posso saber o nome?

                        - Lembra daquela lourinha, Carmem, que foi minha colega de ginásio?

                        - Ah, uma lourinha azeda – disse com desprezo.

                        Lourinha cheirosa, isto sim, pensou Italo. Com ela aprenderia a valorizar o beijo de língua, interrompido por uma blusada recebida do moleque, que era primo:

                        - Vamos embora, Carminha – desfechava uma blusada.

                        - Embora pra casa, Carminha, senão eu falo com mãe – desfechava outra blusada.

                        Até que enfim veio para cima de Carmem e deu uma com mais violência que acabou com o que era doce.

                        Durante as férias de 1977, na primeira noite da festa, Benedito, um amigo de infância de Ítalo, recém chegado todo invocado de São Paulo, foi quem lhe apresentou a namorada em um "paulistês" de cortar a respiração:

- Oi, Ítalo, você pode dançar com a Carmem? – disse pousando numa de porreta.

  

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

 

Montes Claros

 

Montes Claros, uma cidade plural. Ítalo guardava da capital norte-mineira uma lembrança inesquecível das suas férias de infância. Ele não se esqueceu, pulava da cama, feliz, e percorria a madrugada numa viagem sem fim, até que, ao longe, nas montanhas, se delineava uma paisagem repleta de pontos luminosos. Era a metrópole. No entanto, agora era revisada para atender a interesses de gente grande. Veio com o irmão, que tinha a tarefa de negociar alguns terrenos que o pai tinha recebido como pagamento de uma dívida. Não estava mais em busca de novidades ou descobertas como antes, mas de outros interesses.   A magnitude do trem de ferro, o sabor do sorvete de coco queimado, o odor de café com leite e pão amanteigado que permeava as manhãs, o cheiro de brinquedos de plástico, a beleza das praças, o ruído do lambe-lambe, a melodia do carro do leiteiro, a encanto do cinema e da televisão, tudo isso persistia na memória de um garoto perdido no tempo. O irmão, Tom, recém-graduado, aspirava a uma ascensão profissional, enquanto ele, já estabelecido, buscava companheirismo apenas.

- Eu soube que o pai já tinha lhe dado anteriormente – disse Tom.

- Não consegui vender na ocasião, agora é sua vez, Tom.

Tom iria à prefeitura para resolver a situação fiscal do terreno. Assinaria um acordo de compra e venda com um comerciante da região. Na rapidez do irmão, ao dialogar com um despachante, tudo se resolvia num tapa. Posteriormente, não fariam nada, revisariam alguns pontos que já não existiam mais.

Ele se concentrou mais nas questões culturais locais do que nas sofisticações modernas. Foi notável a diferença entre eles ao almoçar, em restaurantes com gostos diferentes, mas situados no mesmo calçadão. Um preferia carne de bode, maxixe, pequi e feijão fradinho, enquanto o outro preferia estrogonofe e maionese. Tom finalizou o prato especial no local e aproveitou para visitar o restaurante onde Ítalo, serenamente, saboreava um bode.

- Você agora se rendeu – disse a Tom, aproveitando que ele puxou uma naco de carne do seu prato.

E acrescentou:

 – Pode se servir. Está delicioso o bode – arrematou sorrindo para o irmão branco.

- Também você já fez seus gostos de menino, não é?- disse fitando os pacotes de compras sobre a mesa.

- Comprei livros e discos, chupei um picolé no banco da pracinha Coronel Ribeiro, passeei pela rua Tiradentes, vi um prédio novo no local da pensão de tia Preta – disse Ítalo com nostalgia.

- Essa Praça Coronel Ribeiro parecia que era um mundão, né?

- É. Sentado num banco, engraxei meus sapatos, senão eu não “vim a Montes Claros”.

Depois se voltou com sede:

                        - É, mas estou querendo ir lá à rua das meninas, Tom, senão a gente não veio a Montes Claros.

- Pirilampos? Dizem que o nome é este.

- Então é pra lá que vamos – disse Ítalo para encerrar o papo.

            A cidade, saboreada em seus pontos de remoto desejo, por se encontrar numa

            outra fase, proporcionava uma perspectiva diferente. Ítalo sentia que ainda vibrava no corpo a inquietude de segredos juvenis.

- Vamos lá nas meninas marcar presença senão não viemos aqui, Tom – insistiu Ítalo.

                        Entendia essa sua inclinação para ser o guia, o vigilante, e sabia que logo seria orientado por Tom para satisfazer esse anseio, assim como aconteceu quando recebeu do seu irmão mais velho o picolé de amendoim na infância. Contudo, por outro lado, lhe causava angústia a ideia de ter negado suporte durante sua formação em judô.

            - Que que você está rindo?

            - De quando você recebeu a medalha de bronze no judô.   

            - Ah, época de ginásio, que você nem quis ir comigo e depois fez a maior

gozação?

            - Tenho a maior arrependimento disso, Tom. Você era um menino legal.

            - Coisa passada.                                          

            Achou uma garota do tamanho exato de sua expectativa:

            - Vou querer aquela ali. Tenho que combinar.

- Eu vou combinar pra você. Ela é bonita mas está com um cara que deve ser o namorado.

            Ítalo percebeu que Tom estava com níveis mais altos de álcool, quando

começava a se exaltar, nessa onda de monitoramento.

 

 

 

            - Ela topou, nas tenho que ficar de olho no cara.

            Como se vivesse num clima de terror, sob os seus cuidados. Ele seria o herói

nesse lance de amor contratado.

            - Prazo de validade: uma hora.

            - Suficiente.

            - Então vá lá – deu um tapa nas costas do irmão mais velho antes de Ítalo

envolver a moça num abraço e subir as escadas.

            E Tom, se Ítalo bem conhecia o irmão mais branco, ficaria ali na retaguarda,

dando garantia  e de olho  entre o relógio e o carinha, despachado à porta de saída.