Verão
de 81
Lugar: Salvador/Bahia. Época:
verão de 81. Poder-se-ia acrescentar a ocasião: Festa do Rio Vermelho.
Todo mundo estudante, a
gente mal podia chegar ao Farol da Barra. Mas a festa era no Rio Vermelho. E
naquele dia havia chegado uns amigos. Estudantes em Belo Horizonte. Mas da
cidade de Candiba. Inclusive parentes. Questão de honra. Poderíamos, quem sabe,
ser depois bem recepcionados em Belo Horizonte. O entusiasmo falava mais que o
bolso. Assim, curtir aquela festa não era coisa de muito sacrifício. Morávamos no
Campo da Pólvora. Naquele dia, apareceu também no apartamento o amigo Léo. Era
da Marinha Mercante. Vez por outra, estando seu navio em Salvador, costumava
nos fazer uma visita. Apesar de carioca, tinha certa afinidade com a família por
ter avós Candibenses. Coisa do tempo antigo. Sissi de tia Morena, esperto, teve
a idéia:
- Bicho, Léo tá aí.
-
E daí?- perguntei.
- Temos moral, pô. É só você
pedir o carro emprestado a sua tia na presença de Léo, que a gente vai curtir
no Rio Vermelho.
Minha tia era Edna, que
morava conosco. O carro era um fusquinha que ela havia adquirido naqueles dias
com a ajuda de Osvaldo Dantas, seu pai, e a poupança que mantinha após o
emprego recente.
- Você é maluco, Sissi?!
Nem se Osvaldo Dantas mandar.
Malandro velho. Sissi foi
firme:
- Vai por mim, porra; Léo
tem a maior moral quando vem a sua casa.
Resultado: um fusquinha se
dirigia ao local da festa com toda turma. Estávamos eu, Sissi, Lucivaldo, Léo e
Bié, e toda recomendação de tia Edna.
Gente, carros, luzes e
barracas; o som rolando naquele verão de 81. Por recomendação de Sissi
resolvemos deixar o carro um pouco distante do local, numa ruazinha enladeirada
(nenhuma novidade em se tratando de Salvador). Quando prosseguimos o resto do
caminho à pé, inda voltei para trás e verifiquei que o bichinho estava ali bem
estacionado e seguro, numa rua aparentemente morta.
Antes de escolhermos a
barraca da cervejada, Sissi, o entendido, lembrando-se da recomendação de tia
Edna, disse que eu era meio simples e que era melhor deixar a chave do fusca na
tiracolo de Léo. Aliás, tiracolo naquela época ainda era moda. Eu também tinha
a minha. Como todos apoiaram Sissi, eu não quis contrariar e dei a chave do
fusca a Léo. E toma-lhe cerveja. Som, cores, o tempo fluindo sob o toque mágico
da festividade do verão.
Foi ainda com o escuro que
procuramos voltar para casa. Subimos a ladeira e constatamos felizes que o
nosso carrinho se encontrava no mesmo local. O problema foi a chave. No meio da
festa, todos cervejados, Léo havia se despedido e fora pegar um táxi até o porto,
pois o navio sairia naquele horário. Culpamos Sissi, filho da mãe; a chave
deveria ter ficado comigo mesmo.
- Faz ligação direta,
porra – disse e se dirigiu à padaria que se abria em frente para tomar mais uma
cerveja.
Foi uma trabalheira. Era impossível
abrir a porta travada com o vidro suspenso e quebra vento fechado. Mas o santo
dos boêmios veio em socorro. Forçamos um pouco o vidro e conseguimos enfiar o
braço e abrir a porta. Pequeno dano. Lucivaldo improvisou uma chave de fenda:
uma tampa de garrafa amassada. Bié já dormia na sarjeta ao lado. E acordou num
grito ao ouvir o ronco do motor. No momento a gente tinha feito a ligação
direta e acionava a ignição com um palito de picolé. Sissi pagou apressadamente
a cerveja e veio correndo com o sorriso escancarado. Todos no fusca, não
pudemos romper mais que um metro. Naquela operação mecânica a direção ficara
travada.
Sissi voltou para a cerveja. Bié se ajeitou
no banco traseiro e começou a roncar e peidar. Saímos eu e Lucivaldo à procura
de um mecânico. Vasculhamos inutilmente as ruas do Rio Vermelho: as poucas
oficinas e encontravam fechadas. Retornamos. Sem graça, sentamos ali na calçada
vendo o sol invadir o dia, até que na casa ao lado saiu um rapaz ainda
bocejando.
- Ô amigo – gritou Lucivaldo,
– sabe onde podemos arrumar um mecânico?
- Qual é o problema? Eu
sou mecânico. Olhe a placa aí ó – e apontou. Era no local em que se encontrava
o fusca e a gente nem tinha dado por isso.
Entregue o caso ao mecânico
para destravar a direção do carro, fomos, no horário em que se toma café com
leite e pão ajudar Sissi a esvaziar mais cervejas. A essa altura a cidade já
retomava a sua rotina normal de trabalho.
Serviço bem feito, ligação
direta o fusca estava pronto para seguir viagem de volta. Lá teríamos que dar
uma explicação a Edna. Mas isso Sissi tirava de letra. O chato foi ter que
deixar as carteiras de identidades com o mecânico, pois o dinheiro curto Sissi
tinha estourado na padaria com cervejada.
Ensaindo o discurso que
devia ser feito para explicar a Edna a questão do fusca, Sissi tocou a
campainha. Nós mais recuados. Quem vem abrir a porta do apartamento? Quem?
Sonia Braga? Caetano Veloso? Não. Quem veio abrir a porta foi Léo. O filho da
mãe havia perdido o navio e no mesmo táxi retornara e ali encontrava tomando
café da manhã com os meninos, Dedê e Juninho, pois tia Edna já estava no seu
trabalho.