sexta-feira, 29 de setembro de 2023

DORA

 

1.

 

- Uns 150 km! – gritou o moço da borracharia.

Edu gravou na mente a informação, porque naquele ermo não havia placas e ele tinha que retomar a estrada principal. Mentalizar também que na vida, mar de utilidades e inutilidades, de perdidos, achados e descobertas, tudo se pautava no devido tempo. Sem pressa. Muito chão. Devia chegar lá por volta das oito da noite. 

            A vida lhe aparecia arreganhada, por um ângulo, mas não iria deixar-se conduzir por aí. Calma. Estava presenciando uma mudança. Democracia acima de tudo. Nada desses métodos autoritários. Isso estava sendo ultrapassado.  Dizia o momento político do país, nas fachadas dos muros de ontem as frases de combate de sempre, depois de mais de vinte anos de uma Ditadura Militar, de difícil desgrude. Quando se pensava haver superado trecho de lama, descobria-se na bainha da calça um respingo. Fazia lembrar canção de Chico  Buarque de Holanda: “A gente vai levando ”.

            Numa breve retrospectiva, logo no segundo semestre, tentara um concurso público para a polícia federal e nele deixou de assinalar alternativa correta que envolvia questão de hierarquia. Nem pensou:

- Não nasci para soldado - e assinalou uma outra, bancando o democrata de esquerda, que combinava melhor com a barba.

Até que mais adiante, se descobriu no bolso uma ordem de um famoso deputado federal para um contrato de estagiário.

- Todo mundo? E os outros? – perguntava ao colega, estagiário remunerado.

.- Não, os outros são voluntários – dizia o colega Ramon.

- Então não quero. Só porque fui indicado por influência política?

E não aceitou mesmo, tendo o papel se desmanchado no bolso, com o “autorizo” do deputado. Ramon chegou a comentar

- É bom não está precisando, velho, mas era o ideal. Se outros ficaram de fora você não tem culpa. É revoltante, mas é assim que anda.

Graças a Deus – pensou Edu, visualizando a estrada em frente. Interessante esse sentimento de que não havia uma paralisação para se ingressar no jogo, que já estava ocorrendo. E ele ainda com uns lampejos desses.

.- Loucura, olhe a bola! – gritava alguém de uma antiga peleja.

Tinha que se sacudir por vezes. Deixar assentarem as idéias para uma melhor organicidade. Conter, domar a fera que existia dentro de si. Saber entrar:

- Toca! – tabelava com a experiência que iria aos poucos acumular.

O desenho era esse. Competia a ele, em respeitos às regras, dar realidade ao idealizado e pronto. Vencidos os desvios, retomara a estrada principal e nem se dera por isso, entretido que estava. A serra que avistava ao alto era sinal de chegada, antes de clima alvissareiro, agora nem tanto,

2.

 

Amanhecera o dia com cara de trabalho à espera, tendo que acompanhar o caso de um rapaz tonto acusado de “espiar” lavadeiras  na lagoa. O pai dele já estava à porta. Era um trabalhador rural a final de contas. Primário, bons antecedentes, com os requisitos de liberdade provisória e não havia certeza de que estava masturbando no momento de flagrante. Conversara com o delegado, que pareceu acolher mais a origem do defensor que o argumento jurídico de relaxamento da prisão.

- Seu pais são pessoas maravilhosas, Doutor. Dona Matilde me ligou mais cedo.

 Ficou entendido, de leve, haver levado um a zero da família. Sua sombra de poder era enorme. Saíra com o cliente até lá fora, onde os pais dele o aguardavam numa charrete.  Em vez de ganhos, gastou ali explicações para conforto moral de pai e filho, ambos assustados. Correu os olhos em volta em busca do moço com seu carro, um cara que lhe arranjaram de companheiro naquela diligência.

- Aqui, Doutor.

Ele acenava de um barzinho, para onde trouxera o carro, já lavado e lustrando ao sol da manhã, como menino de banho tomado.

- Ficou novo em folha – disse.

- Edvaldo, Doutor – respondeu apresentando-se.

- Oxi, você não é um que esteve envolvido num caso de rapto de uma menor?

-  Ah, o Doutor lembra disso? Faz tempo.  Era uma namorada. Na época, os pais dela eram contra. Mas já casamos, Doutor, e até separamos.

- Diziam que você era perigoso, violento, essas coisas todas... – Edu ia puxar o fio da meada de um passado mas se conteve.

- Diziam muita coisa, né, Doutor?

E foi da prosa com Edvaldo que Edu acabou por fazer um apanhado da conjuntura. Não podia entrar em campo e perguntar a que horas começava a partida. A política local estava fervilhando. Queria avisar que entraria, mas, inconsciente, já estava fazendo parte. A notícia da soltura de um lavrador da cadeia corria em detalhes pela cidade. que o novo advogado falou isso e aquilo para o delegado aceitar. Não tinha essa de ir atrás desmentindo, passava-se adiante.

- Amanhã temos que comparecer na Fazenda Pau de Ferro para fazer um acordo na distribuição de água à comunidade local – lembrava a sua agenda o secretário improvisado.

- Dizem que a votação de lá vai melhorar pra nós – retornava Edvaldo.

Na realidade, só iria tomar por termo um ajuste amigável (já conversado entre as partes) para por fim a demanda judicial e acalmar os ânimos dos moradores. Muito importante o termo. Um dos presentes guardava uma folha amarela. Um texto datilografado, que demonstrava como foi acordado à época.

 E outros episódios dessa ajuda compulsória à atividade profissional foram surgindo mais adiante. Perguntado por seu pai como ía a advocacia, respondia que pegara um inventário e que se maravilhou quando viu o cliente debulhando pacotes de dinheiro sobre a mesa;

- É, meu filho, saiu daqui.

Referia-se ele ao empréstimo que fizera a um fazendeiro naquela manhã. Percebia Edu que com mais essa subia para dois a zero o placar de decepções que carregava.

3.

              Vinha-lhe um vazio e o pensamento de até quando sua carreira iria seguir assim, guiando-se com essa rodinha de proteção. 

            - Deixe essa preocupação pra gente e não pra você, Edu – ouvia de seus colegas nos meios forenses.

Isso ia avolumando na sua cabeça, que já não aguentava mais. Outro dia fora surpreendido por seu parente vendedor lhe entregando um documento de veículo, capacete e uma chave de motocicleta, nem mais nem menos.

- Oxi, Geraldinho, se explique!

- Você não gostou?

O sacana tinha chegado com a moto, depois de algumas peripécias, na frente de sua família, que teceu elogios. E ele de imediato soltou uma das suas:

- Quem gostou mesmo foi Edu, mas disse que não tem o dinheiro.

O velho comprou na hora e fez com que ele viesse trazer o presente. Aí o placar já estava nas alturas, que ele tinha que driblar até o avô, querendo lhe dar o dinheiro para comprar o anel de formatura, a que, infelizmente, não pôde comparecer.

À noite, foi policiar adversários numa da regiões na zona rural, quando de um matagal surgiu Edvaldo na garupa de uma moto:

- Psiu! Doutor, eu posso jogar essa pedra no pára-brisa de uns adversários que estão ali pedindo voto.

Edu viu o tamanho da pedra e pensou nas conseqüências nefastas que poderiam resultar:

- Pelo amor de Deus! De jeito nenhum. Não faça isso.  Deixe eles.

Edvaldo só esperava o estalo de uma autorização para fazer uma desgraça e acabou recebendo dele um não. Era um democrata e não ia chancelar tal conduta, mas ficava feio na foto para eleitores como Edvaldo.

Ao se dirigir para o bar, naquela noite, agradeceria a Deus pelo que  deixara de fazer. Havia um clima de guerra, mas a notícia de que tradicionais adversários políticos teriam sido atingidos com uma pedra, em combate na compra de votos, não seria bem recebido pelo povo. Para o inferno a questão eleitoral, o ferimento seria na consciência da pessoa de formação cristã. Com ele, Edu, estava encerrado essa prática.

Pesaria, no entanto, o fato de ele ter passado a mão numa garota, que rondava os escurinhos da boate e que ele, Edu, descobrira sozinha no ponto de bala:

- Vamos sair daqui, garota? ´- propôs envolvendo-a num abraço.

        Não sabia Edu que essa garota, que coroava sua noite de rei davi,  era, na realidade, Dora, a ex-mulher de Edvaldo, que se despedia da cidade e viajaria para o Sul no dia seguinte.

 

 


segunda-feira, 11 de setembro de 2023

A sorte

 


 

Escolheu apanhar a nota menor, porque, caso descoberto o furto, perpassaria a ideia de “coisa de menino”, apenas, como se fazia então, e ele não estaria dando cheiro na parada.

Era o que estava diante de si e o desafiava: aquelas duas notas, uma de cinco e outra de um mil cruzeiros. A de Tiradentes, cédula vermelha, que lhe fazia tremer e acelerar o coração, era alta. Após ponderações, escolheu a de Pedro Álvares Cabral. Compraria umas balas doces, sacos de pães, bolachas, sorvetes, guaraná e ainda sobrava muito, que teria que esconder num monte de alvenarias lá no fim da rua ou ir reservando para apostas no jogo. Pronto, ficaria um bom tempo sem aporrinhações. Serviria de lenitivo, não mais estaria sujeito ao nervosismo da mãe, depois que sua irmã chegara para casa com filho para criar.  A mãe, que o pegara ainda bebê do parto de uma lavadeira alcoólatra, mudara completamente, do amor para o temor, e vivia achando jeito de repreensões e surras, instadas por ciumeiras de Deodata. Principalmente quando a mãe, apesar de estampada moral, nas suas atividades como ajudante de serviços de partos, tomava umas pingas a mais.

Ia-se conduzindo sob o clima da rigidez infernal, o que o tornava negligente com os estudos, mas, sem muita palmatória, pelo menos alcançara a suficiência das primeiras letras. Daí que surgiu um garoto, o Tom, que pegava bem no gol do time de adultos. Chegou a substituir o goleiro da seleção local. Conquistara com facilidade o carinho dos torcedores, de quem ouvira seu nome ser gritado: “Espalma, Tom! Vai nela, Tom!” -  até que os ventos da maldade virariam contra na sua varredura.

Tudo porque inventara de entrar no jogo de Pif Paf no lugar mais conhecido na cidade. Era moleque que tentava ser gente grande, inclusive no valor das paradas. Ele achava muito bonito. O cigarro queimando no cinzeiro, enquanto erguia-se o copo de bebida. Quem tinha essa pose, como sua, algo marcante, era seu Alceu.

- Bati – dizia e descansava as cartas na mesa.

Com estilo, dava um derradeiro trago no continental, atirava fora a bagana e puxava o bolo de dinheiro para perto.

 

Depois de frustradas tentativas por carregar pouco dinheiro, agora era a vez de Tom. Mas quanto mais rezava para perder mais ganhava, ganhava de monte; pagava tudo do bom e do melhor. Saía porção de salsichas, azeitonas, quitutes e sardinhas:

- Patrocínio de Tom! – gritavam.

- Bati com essa carta aí – falava baixinho para não frisar adversário derrotado.

Aí tinha que levar as mãos e apanhar como rodo a dinheirama. Diabos, devia era assobiar alguma canção! Mas a imagem que lhe vinha era de medo... do cinturão da velha mãe falando para endireitar-se se queria virar homem.

Naquela toada, deixava ainda de ser vigilante. Nem esse descuido lhe arranhava mais a sorte. No baralho, tinha que estar aceso. ”Está ligado, mano”, como eles diziam. Juntara dinheiro. Fosse um outro, nada aconteceria de estranho. Tinha que dar um jeito. Já escurecia ou era impressão sua? Alguns foram desistindo, até que, assim reduzido o número de participantes, seu Alceu deu um murro na mesa:

- Não adianta, hoje o dia é do menino -  e resolveu pôr fim à peleja.

Após pagamento das despesas de bar, o menino arrumou por maior as cédulas e formou uns pacotinhos, que lhe iam estofando os bolsos.

Saiu com a ideia de passar no monte de alvenarias e esconder os pacotes de dinheiro, senão, ainda que já rapaz, seria alvo fácil das maldades em casa.

Quando se aproximou, foi surpreendido pela polícia, que não deu tempo de ele fazer o drible.

- Pegou uma nota de mil cruzeiros – o delegado explicava a mãe de Tom.

- Natalício, a vítima, disse que Tom só pegou essa nota de mil. Ah, deixou de levar a nota de cinco mil cruzeiros, que estava junto com a outra na mesa, debaixo do rádio de pilha – completava a autoridade.

- E uma banda de melancia chupada – acrescentou um acompanhante da diligência.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Rosa

 


 Edu olhou para as curvas de Rosa e deixou-se perder por um momento de sonhos. Rostinho agradável, de bem desenhado corpo, era uma pequena que, superado o recente divórcio, para um possível relacionamento pedia bons tratos.

 - Mas já está na fase de carência – adiantava sua prima, colega dela de trabalho, ninguém melhor nas informações – e arrematava:

- Descompromissado, de preferência, mas um pouquinho de discrição é melhor.

            Edu se apresentava como candidato natural, enfronhava-se, por vezes, em avançar o sinal, em gestos de simpatia pela boa piada. E Rosa, em igualdade de comportamento, se escondia e voltava a aparecer em lampejos incendiários. Um jogo que só eles entendiam de regras e hora de acabar. Era menina perdida que se achava de graça, espontânea. Para uma saída, ao que se cuidava. Isso tinha que ser captado assim em meio ao marasmo. Sem saber, Edu, em seus movimentos, também sentia que brilhava na passarela dos trintões.  Foi nessa fogueirinha de papel que fizeram o trato de darem uma esticada à cidade vizinha no fim de semana.

            - Quem mais? – quis ela saber.

            - Só nós. Cada um no seu carro, encontramos o pessoal lá. Passo pra te apanhar – combinou Edu.

            Ela sorriu quando Edu disse “só nós”, como houvesse uma complacência entre eles ou aplicação de golpe em alguém, agora por mero zelo, porque já não devia a fdp nenhum – pensou e até ensaiou um passo de dança no ritmo da música ambiente que tocava. Edu achou a dança de uma fofura impar. Então cumprimentou com estampa de alegria o corpinho se mexendo dentro do vestido. Bem que aquela escultura podia estar passando por suas mãos.

Estavam numa mesa de bar principal da cidade, com Rosa sentadinha no colo, quando apareceu um amigo ao pé de ouvido segredando:

            - Melhor sair, que está chegando uma turma que te conhece.

Mas Rosa exalava tanta calma e serenidade, que encobria o susto que ele viesse a sofrer. Também ele gostava de bancar esse lado seu, na distribuição de felicidade,

- Qual é o segredo? – perguntou Rosa, com uma molhada de língua na sua orelha.

Respondeu com um beijo mas, num repente, passou a mão em Rosa e pegou a estrada. Ligou o som e ficou de namoro como garotos tardios. E assim, gastaram as horas da tarde num namoro com o reaquecimento de Rosa, que vibrava:

- Precisava - dizia ao escurecer.

-  Alguém já lhe disse que você se parece com Sônia Braga quando era nova? -  perguntou Edu..

- Você acha?

Edu encostou o veículo num trecho fora da pista. Ao percorrer com a mão por entre a blusa e tocar os seios, sentiu que uma espécie de Hulk estourava em suas calças. O que estaria sucedendo? Também os anos em desuso não deixavam de causar reação nesses moldes. Teve que livrar de roupas que mais enervavam Hulk, para pôr nas coxas de Rosa, que recuou primeiro para poder pegar de mão e conferir com apreço o revoltoso. E, molhada, Rosa deu destino certo ao recém conhecido.

- Que pau, Edu - disse montando de cavalinho.

            Depois, viria na sua mente que um amigo farmacêutico, mais cedo, lhe oferecera um produto de amostra grátis:

            - Tome, experimente você em suas andanças e depois me fale.