1.
- Uns 150 km! – gritou o moço da
borracharia.
Edu gravou na mente a informação,
porque naquele ermo não havia placas e ele tinha que retomar a estrada
principal. Mentalizar também que na vida, mar de utilidades e inutilidades, de
perdidos, achados e descobertas, tudo se pautava no devido tempo. Sem pressa.
Muito chão. Devia chegar lá por volta das oito da noite.
A vida lhe aparecia arreganhada, por um ângulo, mas não iria deixar-se conduzir
por aí. Calma. Estava presenciando uma mudança. Democracia acima de tudo. Nada
desses métodos autoritários. Isso estava sendo ultrapassado. Dizia o
momento político do país, nas fachadas dos muros de ontem as frases de combate
de sempre, depois de mais de vinte anos de uma Ditadura Militar, de difícil
desgrude. Quando se pensava haver superado trecho de lama, descobria-se na
bainha da calça um respingo. Fazia lembrar canção de Chico Buarque de
Holanda: “A gente vai levando ”.
Numa breve retrospectiva, logo no segundo semestre, tentara um concurso público
para a polícia federal e nele deixou de assinalar alternativa correta que
envolvia questão de hierarquia. Nem pensou:
- Não nasci para soldado - e
assinalou uma outra, bancando o democrata de esquerda, que combinava melhor com
a barba.
Até que mais adiante, se descobriu
no bolso uma ordem de um famoso deputado federal para um contrato de
estagiário.
- Todo mundo? E os outros? –
perguntava ao colega, estagiário remunerado.
.- Não, os outros são voluntários
– dizia o colega Ramon.
- Então não quero. Só porque fui
indicado por influência política?
E não aceitou mesmo, tendo o papel
se desmanchado no bolso, com o “autorizo” do deputado. Ramon chegou a comentar
- É bom não está precisando,
velho, mas era o ideal. Se outros ficaram de fora você não tem culpa. É
revoltante, mas é assim que anda.
Graças a Deus – pensou Edu,
visualizando a estrada em frente. Interessante esse sentimento de que não havia
uma paralisação para se ingressar no jogo, que já estava ocorrendo. E ele ainda
com uns lampejos desses.
.- Loucura, olhe a bola! – gritava
alguém de uma antiga peleja.
Tinha que se sacudir por vezes.
Deixar assentarem as idéias para uma melhor organicidade. Conter, domar a fera
que existia dentro de si. Saber entrar:
- Toca! – tabelava com a
experiência que iria aos poucos acumular.
O desenho era esse. Competia a
ele, em respeitos às regras, dar realidade ao idealizado e pronto. Vencidos os
desvios, retomara a estrada principal e nem se dera por isso, entretido que
estava. A serra que avistava ao alto era sinal de chegada, antes de clima
alvissareiro, agora nem tanto,
2.
Amanhecera o dia com cara de
trabalho à espera, tendo que acompanhar o caso de um rapaz tonto acusado de
“espiar” lavadeiras na lagoa. O pai dele já estava à porta. Era um
trabalhador rural a final de contas. Primário, bons antecedentes, com os
requisitos de liberdade provisória e não havia certeza de que estava
masturbando no momento de flagrante. Conversara com o delegado, que pareceu
acolher mais a origem do defensor que o argumento jurídico de relaxamento da
prisão.
- Seu pais são pessoas
maravilhosas, Doutor. Dona Matilde me ligou mais cedo.
Ficou entendido, de leve,
haver levado um a zero da família. Sua sombra de poder era enorme. Saíra com o
cliente até lá fora, onde os pais dele o aguardavam numa
charrete. Em vez de ganhos, gastou ali explicações para conforto
moral de pai e filho, ambos assustados. Correu os olhos em volta em busca do
moço com seu carro, um cara que lhe arranjaram de companheiro naquela
diligência.
- Aqui, Doutor.
Ele acenava de um barzinho, para
onde trouxera o carro, já lavado e lustrando ao sol da manhã, como menino de
banho tomado.
- Ficou novo em folha – disse.
- Edvaldo, Doutor – respondeu
apresentando-se.
- Oxi, você não é um que esteve
envolvido num caso de rapto de uma menor?
- Ah, o Doutor lembra
disso? Faz tempo. Era uma namorada. Na época, os pais dela eram
contra. Mas já casamos, Doutor, e até separamos.
- Diziam que você era perigoso,
violento, essas coisas todas... – Edu ia puxar o fio da meada de um passado mas
se conteve.
- Diziam muita coisa, né, Doutor?
E foi da prosa com
Edvaldo que Edu acabou por fazer um apanhado da conjuntura. Não podia
entrar em campo e perguntar a que horas começava a partida. A política local
estava fervilhando. Queria avisar que entraria, mas, inconsciente, já estava
fazendo parte. A notícia da soltura de um lavrador da cadeia corria em
detalhes pela cidade. que o novo advogado falou isso e aquilo para o delegado
aceitar. Não tinha essa de ir atrás desmentindo, passava-se adiante.
- Amanhã temos que comparecer na
Fazenda Pau de Ferro para fazer um acordo na distribuição de água à comunidade
local – lembrava a sua agenda o secretário improvisado.
- Dizem que a votação de lá vai
melhorar pra nós – retornava Edvaldo.
Na realidade, só iria tomar por
termo um ajuste amigável (já conversado entre as partes) para por fim a demanda
judicial e acalmar os ânimos dos moradores. Muito importante o termo. Um dos
presentes guardava uma folha amarela. Um texto datilografado, que demonstrava
como foi acordado à época.
E outros episódios dessa ajuda
compulsória à atividade profissional foram surgindo mais adiante. Perguntado
por seu pai como ía a advocacia, respondia que pegara um inventário e que se
maravilhou quando viu o cliente debulhando pacotes de dinheiro sobre a mesa;
- É, meu filho, saiu daqui.
Referia-se ele ao empréstimo que fizera a um fazendeiro naquela
manhã. Percebia Edu que com mais essa subia para dois a zero o placar de
decepções que carregava.
3.
Vinha-lhe um vazio e o pensamento de até quando
sua carreira iria seguir assim, guiando-se com essa rodinha de proteção.
-
Deixe essa preocupação pra gente e não pra você, Edu – ouvia de seus colegas
nos meios forenses.
Isso ia avolumando na sua cabeça, que já não aguentava mais. Outro dia fora surpreendido por seu parente vendedor lhe
entregando um documento de veículo, capacete e uma chave de motocicleta, nem
mais nem menos.
- Oxi, Geraldinho, se explique!
- Você não gostou?
O sacana tinha chegado com a moto, depois de
algumas peripécias, na
frente de sua família, que teceu elogios. E ele de imediato soltou uma das
suas:
- Quem gostou mesmo foi Edu, mas disse que não tem
o dinheiro.
O velho comprou na hora e fez com que ele viesse
trazer o presente. Aí o placar já estava nas alturas, que ele tinha que driblar
até o avô, querendo lhe dar o dinheiro para comprar o anel de formatura, a que,
infelizmente, não pôde comparecer.
À noite, foi policiar adversários numa da regiões
na zona rural, quando de um matagal surgiu Edvaldo na garupa de uma moto:
- Psiu! Doutor, eu posso jogar essa pedra no
pára-brisa de uns adversários que estão ali pedindo voto.
Edu viu o tamanho da pedra e pensou nas
conseqüências nefastas que poderiam resultar:
- Pelo amor de Deus! De jeito nenhum. Não faça
isso. Deixe eles.
Edvaldo só esperava o estalo de uma autorização
para fazer uma desgraça e acabou recebendo dele um não. Era um democrata e não
ia chancelar tal conduta, mas ficava feio na foto para eleitores como Edvaldo.
Ao se dirigir para o bar, naquela noite,
agradeceria a Deus pelo que deixara de fazer. Havia um clima de
guerra, mas a notícia de que tradicionais adversários políticos teriam sido
atingidos com uma pedra, em combate na compra de votos, não seria bem recebido
pelo povo. Para o inferno a questão eleitoral, o ferimento seria na consciência
da pessoa de formação cristã. Com ele, Edu, estava encerrado essa prática.
Pesaria, no entanto, o fato de ele ter passado a
mão numa garota, que rondava os escurinhos da boate e que ele, Edu, descobrira
sozinha no ponto de bala:
- Vamos sair daqui, garota? ´- propôs envolvendo-a
num abraço.
Não sabia Edu que essa garota, que coroava sua noite
de rei davi, era, na realidade, Dora, a ex-mulher de Edvaldo, que se
despedia da cidade e viajaria para o Sul no dia seguinte.