sexta-feira, 29 de março de 2024

Arlete

 


 Ainda na fase de escarafunchador de inutilidades de quintal e achados maravilhosos, Ítalo acabou por descobrir algo interessante. Tanto que essa descoberta lhe deixou marcas. Como o caso de uma nubente que era para ficar hospedada na casa dos pais de Ítalo só enquanto se resolvia com a família o dia do casamento. Até lá, aguardava-se como nubente. Era um passarinho doméstico, de tentativas agrestes em voos além de suas cercanias de habitat.

A garotinha, que sonhava com florestas e lobos, passava os dias sentadinha. E quando Ítalo saía do banho para a escola, costumava de início receber dela uma fixação nos seus trejeitos de menino. Depois, como fosse de prêmio, resolvia aplicar beijo na boca. Atitude de quem, em rápido olhar certificador, precisava com urgência de tal providência. O queixo de Ítalo era imobilizado pelas mãos de alfazema suíça. Exalado o cheiro, era liberado com um empurrãozinho de “corras”. Garantido em negócio estranho, de língua invadindo a outra boca, tomara aquilo como segredo que ele haveria de manter com Arlete. Ninguém dizia nada, só cumprimento de uma formalidade de instinto.  Mas Ítalo sentia que era errado.

- Eco, gosto de cebola! – dizia e ameaçava cuspir.

 Mas aquele molhado de língua se mexendo na intimidade o punha fora de tempo. Ficava expulsando da lembrança o gosto ruim, para apreciar só o beijo associado ao perfume. Tinha que contar para alguém, gente grande. Só que isso quebraria o segredo imposto pela tácita vulnerabilidade da nubente. Ela que andava alegrezinha às pampas. Arlete tomava banho de tardezinha e se aprontava diante da penteadeira, esperando na janela um noivo que nunca dava as caras. No mais, entocava-se no quarto de visita e, por vezes, aparecia à sala, para atender às satisfações prestadas sobre a estranha hóspede:

- Aí o pai resolveu deixar aqui até completar a idade e se resolver – explicava o pai de Ítalo em conversa na sala com amigos

- Mas vai casar? – quis saber o amigo.

- Tem plano: o pai do moço deu a palavra – respondeu o hospedeiro.

 O amigo meneou a cabeça:

- Tão novinha!

- Essa meninada de hoje não espera mais não – concluiu a mãe de Ítalo, em apoio.

A especulação sobre a menina passava incólume, deixava de incomodar. O pai de Ítalo tornava-se responsável. Assim, abafava mais a necessidade férrea de contar o ocorrido. Coisa de gente grande. Além do mais, para alcançar a nobreza do perfume,  tinha que tolerar  a fealdade da cebola. Segredo era sagrado e ponto.

Então não havia mais quarto de visita na casa, pois já se falava em quarto de Arlete. E ela saía mais da janela. Sem timidez, vinha para as calçadas, apreciar a criançada nas cantigas de roda.

Ítalo, que passava a se considerar importante, comparado aos demais, sentiu-se no auge ao ganhar um demorado beijo de cebola, às vésperas de uma certa manhã. Nesse dia, não houve despedida, a família de Arlete, às voltas com um jipe alugado para apanhar a noiva, fez manobras e pegou a estrada. Arlete foi levada com a primeira réstia de sol e o louro na mureta ainda gritou o nome dela.

 

 

quarta-feira, 20 de março de 2024

Sônia

 

 

Passou o curso de graduação cantando Sônia, que um dia, no final, resolveu lhe dar asa, e aí o que fazer com aquela estátua de deusa? Deu nela só uns amassos apressados, por causa de um sentimento de transitoriedade que carregava, quando não era provisório, era um “adeus” apenas.

Muito gastara para atrair para seus braços essa garota. Desde o segundo semestre que ela caíra na sua rede de preferência. Gastara não só o tempo, como tudo que oscilava em volta, sapatos, sorrisos, sonhos, trajes, penteados, perfumes e cabeça:

- Dizem que é manequim – saía conversa na roda de colegas.

 - Isso é verdade porque ganhei dela um cartão de endereço, número de telefone, com seu nome, e embaixo profissão, grafado em vermelho manequim - dizia Beto para exibir prestígio.

- Dá uma moral da porra, né, bicho? – enalteciam os colegas.

- E tesão. Me dava tesão - dizia Beto, ainda tímido mas aceso.

- Sem foto, cara: era só letra – diziam os da objetividade.

Mas tinha a imaginação, e imaginava o corpaço de Sõnia em suas (suas!) mãos. Nesse corpo se podia nadar de braçadas, dado o espaço. Tinha um rosto, com aqueles óculos de grau, bonitinho apenas,  mas de menina pronta para receber adulações.

- É gente boa, mas quem beira ali cai do cavalo. Ela tem um noivo, cara, que vem pegar na escola. Todo dia.

Isso só fazia aumentar o ódio contra o rapaz. Sônia andava sempre com Tânia a tiracolo. Quisesse algo mais era com ela que tinha que tratar, que ria ante as investidas de garotos como Beto, motivo até de um estudo, que ele fazia, em separado.

Notou que o humor de Tânia variava ao sabor da sua protegida. Por vezes, tornava frouxa a vigilância empreendida. De forma que, de posse desse entendimento, Beto volvia-se em esparsados distanciamentos. Isso era sentido na conduta de boa vizinhança das duas garotas. Que até, passado o calundu, permitia tomar umas cervejinhas com colegas em volta. E era um momento de festa, com Beto, tirando umas lasquinhas, aos olhos cúmplices de Tânia,. Aprendera, durante esse período, a conduzir-se respeitando os limites. Trocavam os cigarros. Dava a ela dos seus, de marca “Charme”, que ela gostava. Fazia poemas e os escondia nos bolsos:

- Esse não. Está verde. Deixe amadurecer – dizia.

- Deixe ver assim mesmo, Beto – ela pedia.

- Não - ficava em suspense.

E o tempo ia passando.  Até que enfim, mandou recado por Tânia:

            - Hoje vocês podem ficar... até mais tarde.

            E era uma festinha de ensaio da formatura. Foi um corre-corre nessa labuta de preparação, de abanar a cauda feito um cãozinho. Dançaram tão agarradinhos, que não passava uma mosca, com direito a uma enxurrada de beijos e um início de lubrificação.

  Cheio de expectativa para quando retornasse às aulas (ele agora tinha uma namorada certa), quando apareceu Tânia com aquela história, que foi um balde de água fria:

            - Eles reataram.

quarta-feira, 13 de março de 2024

Pepita

 

 

Chegou despejando sobre a mesa pacotes de compras e sua inseparável pasta notebook–executiva. Acima do Box, lia-se Crevettes – frutos do mar. Estava escolhido o local para arrancho. Modo de dizer para quem fazia tempo não tinha esse prazer de estar na capital, pronto para, dever cumprido, tomar umas e se preparar para retorno à vida pacata do interior. Ficaria em companhia dos chopes, saboreando uns livros recém-adquiridos, para completar a situação de batida em retirada.

 – A volta dos que não foram – Beto riu ao lembrar brincadeira de menino.

Tinha um resto de noite para bestar. Que viesse mais o que fosse que ele, Beto - Cansado de Guerra, traçaria. Afinal, desincumbira-se de dura missão, ao trazer na pasta o protocolo de entrega do esforço efetuado nos últimos dias. Resultado de trabalho sob pressão salvo por uma jurisprudência recentíssima do TJ do Paraná, pescado na internet de perdidas noites de sono.

- Outro chope aqui, tio – pedia como em comemoração.

Iria aguardar decisão do tribunal. O decisium que juntara em sua sustentação fora inédito. Com certeza, um golaço de Beto, por isso, como se dizia então, iria para galera,

- Pode ir que olho pra você – disse a mulher de vestido amarelo, vizinha, solícita, quando viu que ele erguia para ir ao caixa renovar a taça.

            Agora que ele, saído do mergulho dos livros, dava conta do ambiente que mudava com o movimento de pessoas no shopping. Mas tinha que estar vigilante, diante das conversas de golpes num lugar como aquele. A mulher abriu um sorriso para explicar a ele sobre vacilo de fregueses e aproveitamento de uns moleques, mas que ficasse tranquilo que ela estava ligada. Mostrava experiência.

         - Mas os serviços de segurança têm melhorado com a política adotada pela direção. Tinham que resolver a parada com esses “trombadinhas”, afinal.

            Queria encompridar a conversa, por isso Beto disfarçou fingindo mergulhar nos livros. E ela, feito uma tia divorciada, atrás de manter uma prosa receptiva, às respostas de ‘hunhum”, “hanhã’, não se recolhia facilmente. Resolveu então encarar a “tia” no seu vestido amarelo. Para começar, não gostou do cabelo, mas acabou por aceitá-lo por ser “penteado de tia”. E por aí, além do vestido, seguiu também o estilo de tia na bolsa, nos óculos, no timbre de voz, meio nasalada, que no proceder não deixava de soar carinhoso.

            Sem causar espanto, outro cenário se formava: aparecia barulho de jovens nas mesas ao lado. Daí a minutos um silêncio de revezamento substituía a algazarra. E o bate papo, tocado a chope, ia-se estendendo no avançado das horas.

            Até que hora de ir embora, dera início aquela sessão de grude por parte dela:

- Você vai ficar onde?

- Vou de táxi – disse.

- Ótimo, a gente pode dividir um táxi?

O que pretendia essa tia maluca? A resposta ela deixava na sugestão que  imediatamente apresentou:

- Você me deixa por aqui mesmo na orla e pode seguir.

A caminho do estacionamento não havia espaço para ponderações, de forma que num ímpeto estavam bem abancados com vento de janela batendo no rosto, suavizando o calor, como dois namorados, pela orla, em ajuste de tempo atrasado. Mas logo iria colocar um fim naquilo, cada qual tomaria seu destino. Estava aguardando resultado da apreciação do tribunal. Ah, estava liberado, na verdade, podia mais – pensou e deu aprofundado afago na “tia” perfumada.

- Vamos numa comida chinesa ali – apontou um shopping na avenida.

De mãos dadas, em cenas de namorados, puseram-se rumo ao majestoso prédio. Sobre o ocorrido entre eles nada se dizia. Era um encontro de desembocados desejos, de segundas intenções. Era uma troca de presentes e agrados. Quando estavam se sentindo assim no paraíso, ninguém conhecido para arrastar a pessoa para a realidade, eis que Beto avistou um vizinho de infância.  Quebrado o encanto? Que nada, foi até lá cumprimentá-lo com a naturalidade que exalava da “tia”. A pressa com que andava o amigo foi o socorro de Beto, que até já tinha elaborada resposta a possível pergunta.

Para acalmar a fervura, chegou a falar com a “tia” em pegar um motel de saída e finalizar aquele encontro com chave de ouro, que ele estava aguardando uma decisão importante do tribunal.

Ela falava muito num tal Carlos Eduardo ou Paulo César. Ora compreensivo, liberal, ora ciumento, machista. Comentários de leve sobre problemas conjugais. No final, não se sabia tratar de marido ou de amigo íntimo dela.

Foi “tia” também no leito, no cuidado com o parceiro, no uso de calcinha tradicional, peça de soutien comum, aliás tudo sem segredo ou novidades do modismo de lojas, mas havia certo exagero no grude em querer servir. E lá vinha caso do compreensivo ou machista Carlos Eduardo ou Paulo César.

Fazia muito tempo que Beto vira tanto pelo em volta do monte de Vênus. Reacendeu clima de adolescência. Achou de bom tom utilizar os dedos para afastar a “moita” que se formara na região alvejada. Não se falou em hora nem podia, que o casal Romeu e Julieta revisitado dormia, sem preocupações.

Despertava mais cedo quando sentiu atracado pela “tia”. Parecia que o mundo acabava. Era o grude:

- Você vai para onde, Beto?

Beto viu o monte de Vênus e quis utilizar os dedos pela derradeira vez. Então voltaram para arrematar e dar por encerrado o ato no. 03. Mais que ligeiro, Beto se recompôs rumo aos seus, quando ouviu a “tia” choramingar, que ficasse mais um tempinho, que estava cedo, que todo mundo dormia ainda, como se ela não tivesse para onde ir.

Pois a “tia”, nessa peleja de grude, acompanhou-o até o edifício, onde ele se arrumaria para viagem de volta:

- Pare aqui! – Beto conseguiu se desgrudar da companheira.

 E o táxi seguiu em frente com ela no seu penteado de “tia”, com seu vestido amarelo e dona de uma gruta onde Beto buscou abrigo por duas vezes.

 

sábado, 9 de março de 2024

Lu

 

 

 

Cantarolava no silêncio da noite apareceu a Margarida olê olê olá, mas ninguém aparecia nem mandava recado. Ficou por ali bestando. Até que de uma brisa veio um cumprimento numa voz desconhecida:

-  Boa noite.

Uma enxurrada de perguntas percorreu-lhe o corpo, deixando na cabeça uma sensação de comportas esvaziadas. Com sua coreografia de folhas, uma normalidade de vento espalhou-se à toa. Então descobriu-se de banho tomado e assumiu o frescor em volta:

- Noite de ficar enfiado nos cobertores – disse dirigindo-se ao carro.

- Falando sozinho, cara? – era, de novo, a  voz .

- Conversas ao vento, bem que a gente podia ir matar esse friozinho num motel.

Para sua surpresa, saiu daquele aconchego extra:

- Só se você esperar um pouco...

Ao virar-se, topou com um macacão verde, trajando de frentista:

- Menina, você não tem medo de trabalhar nesse horário num posto de gasolina não?

Ela passou a dar explicações de modo apressado. Tinha vencido seu horário mas teve que substituir um colega e coisa e tal.

- Já estou quase pronta e vamos lá curtir esse frio – disse, toda segura no negócio, e foi resolver-se no serviço.

- Eu aguardo,... – gritou distanciando-se para o bar.

- Lu, pode me chamar de Lu.

 Era uma garota bem formida. Ficou imaginando Lu fora do macacão verde e do cheiro de graxa, que não chegava a encobrir sua feminilidade. Ao contrário, impunha um toque de mulher trabalhadora e de respeito. Dava um outro blend. Só para quem entendia como ele.

   - Rindo sozinho?

Disse o que estivera pensando dela:

- Daqui a pouco. É só você me esperar.

Então ele voltou para sua bebida.  Enquanto curtia o friozinho, esperando Lu,  tomaria um “rabo de galo”. Nada melhor para animar e criar um clima. O que lhe traria Lu de novidade? Foi até lá abastecer um carro e, com pouco, estava Lu de volta.

- Vamos, criatura! Já passei o comando. Deixe me trocar ali.

Ela foi logo e voltou sem o uniforme.

- Me leva daqui.

Aboletou a garota no carro e se arrancou para o motel.

Após refeição leve, levantou-se mordendo um cigarro e foi para cama. Com tranqüilidade, corpo imerso nos cobertores, ficou assuntando Lu embalar o resto de comida com o devido cuidado e apanhar uns chocolates como novidades, como quem colhe da árvore frutas maduras. Encarou a garota que a dois passos do leito, na pura tentação, caminhava evolvida na toalha:

- Eu posso lhe pedir uma coisa, Lu? Dispa esse uniforme.

E Lu estava sem o macacão, mas entendia. Diziam, e ela confirmava, que era mãe e tinha uma filharada pequena. Justificava assim aquela sua destemperança. Mesmo com a conversa de um conhecido:

- Filho dela mesmo, só um: o resto é um cordão de irmãozinhos que a mãe deixou.