quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Selinho

 

 


Magda, aluna de faculdade de tempos pretéritos, agora dona de estabelecimento de ensino médio, pediu carona ao seu antigo professor, com selinho de despedida nos agradecimentos. O selinho caracterizava-se pela sua rapidez, quando a pessoa se erguia, com a pontinha da língua, voltando da boca, como autor do gol. Tinha que recordar o decorrido nesse ínterim.

 Muita adrenalina para chegar até ali. Carregava alguns detalhes sobre Magda Marcelina que poderiam definir a incógnita Magda Marcelina. Ou pelo menos arranjar pinceladas importantes para imagem. Mas tudo nela era de prestígio ou de influência zero. Meio oito ou oitenta. Via-se que era uma mulher graúda, dessas que abraçavam seu direito e não arredavam o pé.

 Parecia ter sido menina precoce, de ver satisfeitos seus desejos ao vislumbre de berros reivindicatórios. Lembrou-se dela adolescente abrindo uma mochila de livros quando fora colega de sua prima vestibulanda. Tinha uma caligrafia graúda, de bom visual, que punha de sobressalto o então leitor desavisado. Recolheria de plano tímido desejo.

Tempos depois, ela também se sentaria, atenciosa, na frente na sua sala de aula na faculdade, e estaria irredutível nas lides trabalhistas de empregados não fosse acenada para uma composição amigável. Olhara bem para Magda nesse período, num ela sorria leve ao perscrutar uma tolerância do professor na questão de avaliação, noutro notara seu jeito ardiloso de manipular provas dos autos.

Era uma mulher resolvendo os abacaxis sem marido a tiracolo. Por ocasião dos processos, o jovem preposto da empresa impunha a Magda uma performance de comando. Ou talvez carregasse o detalhe nas duas argolas em destaque, que acenavam  independência de divorciada.

Na estrada o silêncio de ambos falava mais alto. Tratamento respeitoso, lado a lado, desencontros de vidas, conhecimento e reconhecimentos profissionais.  Sem esforço, até que, adiante, no ponto de parada, teve que se inclinar para abrir a porta para a empresária Magda Marcelina caronista escapar e, livre, voar, quem o saberia para onde.

Acabou cedendo um beijo ou a um beijo. Quando menos se esperava, aquele boca a boca com Magda.  Ninguém para impedir, apartar, pisar os freios inibitórios. Nenhuma testemunha. Funcionamento ligth dos elementos internos. E ela saiu como se se esperasse pela realização do ato ou não tivera tempo de posar de estranheza, que não era de seu feitio. Um amor devido para aquele momento. Dívida que fora se acumulando daqueles pequenos encontros circunstanciais, agora com elegância em erupção.

Com o selinho, deram-se por entendidos. Em tamanho e charme.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Gisele

 


      

     

Naquele início dos anos 90, para lembrar um ex-colega, estava todo mundo transando e só ele estava na mão.

- Literalmente – gostava de acrescentar à mesa de amigos.

- Porque você quer – disse Vanda, uma das garotas cobiçadas por ele.

Escamoteava sempre, feito peixe fresco tirado do anzol. Não podia esperar grandes coisas dessa menina Vanda. Beto foi chamado de lado. Ela lhe segredou que já estava com outro, que Beto devia ficar com Gisele, que tinha queda por ele desde menina.

- Vou falar para ela te encontrar lá, tá?

Beto engoliu em seco a pergunta que faria sobre como transportar Gisele. Acabou recebendo dela todo o combinado, que muito o surpreendeu.

Nem mais sabia de Gisele, que era garotinha e mancava de uma perna. Agora se apresentava assim, bonita, aos olhos de entusiasmo de Vanda, que ninguém dava pelo defeito físico. Trabalhão enorme conduzir-se em meio às pessoas, cuidado aqui e acolá na passagem, “com licença’, “com licença”, “desculpe”, “desculpe”. Muito se constrangera na época de ginásio, nas vezes que, por imposição de professores, era tirado para dançar com ela. Questão de direitos humanos, esse beabá todo, que, como bom garoto, teve que tolerar e servir de exemplo.

- Você precisa ver agora!

Sim, mas Gisele via Beto e se acomodara diante do desligamento por parte dele, mais volvido pelos ambientes das “gentes sérias”. E se passasse gente da turma e os reconhecesse? Como ficaria ele com essa garota manca em contraste com seu jeito hábil e viril? Seria um escândalo, que retornaria com outros moldes, mas que podia ser evitado não fosse essa sua tara. Depois, Vanda não estaria  metendo-o numa fria? Ela era amiga de Gisele, não ia fazer tal presepada. Mais que ligeiro, Beto tinha que ir ao encontro dessa nova Gisele. Então virou o copo de cerveja e avisou ao garçom:

- Essa rodada é minha! – disse e saiu como que em busca de um prêmio, descoberto debaixo de sete chaves.

 Para completar, um besouro da luz viajou em sua direção. Afastou-o com um safanão e entrou no carro acreditando ter-lhe ocorrido uma mensagem naquele instante. Algo apanhado no ar, como trilhar pela cautela. Seria refrear seu ímpeto, sob pena de se queimar nas chamas frias da desilusão.

Foi chegar e correr para o abraço num estado de fúria, os dois se desejando, palavras escapulidas na pressa, na ânsia do desvencilhar de coisas estranhas ao ato. Não precisou pronunciar sequer um A. Mãos e pernas se comunicaram em afagos e esfregações, como se reencontrassem após longa ausência.

Aquele encontro com Gisele foi de romper a bolha, com um mulheraço gemendo nos seus braços, sem que se desse por encoberto defeito.


segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Garota da calçada

 


 Sua presença conversando com os cabelos, em frente à sua casa, por volta das cinco da tarde, quando Edu passava pelo quarteirão fazendo bicicleta, era talvez a única certeza do dia. Não dizia nada, apenas apreciava a garota em seu ritual lúdico e ia se dando por satisfeito, até que um dia estranhou a sua falta. Após essa frustração, sem esse facho de alegria juvenil, partiu para colher do casal vizinho do lado informações a respeito dela:

- Cadê uma menina que brincava aqui todo dia nesse horário?

- Foi embora. A família levou de volta pra roça.

“Filhos das putas!” – pensou Edu. Levaram também a tessitura de um cotidiano de rua, que se sabia triste, de um tipo especial, mas que figurava no cenário. Agora destemperava o instante.

Apenas para se situar, nem sabia da classificação da doença. Também não queria ciência por perto, mas aquela arte de expressão corporal, sem a qual não se realizava o romper de vida.

 Depois, ao formular perguntas sobre a menina da rua, passaria a ser tomado por andar na solidariedade com  “doido”. Alguns foram até solícitos, outros nem tanto. Em resumo, a garota era de uma “família de malucos”. Encobria-se qualquer discussão:

- Por que ela ficava como se falasse com a ponta do cabelo? – perguntava Edu.

- Um sestro, não? – justificava um dos moradores.

Após ter vagado costumeiramente pelas ruas de bicicleta, sentiu-se incomodado por aquela ausência. Estando ela na calçada de casa, aproximou-se um dia com um princípio de papo:

- Por que você não veio ontem, hein?

Ela não respondeu, porque não era costume lhe prestarem assunto. Edu também não esperava por resposta. O importante era ela ali, no quadro vespertino. Até que deu de querer ir na zona rural atrás dela. Não esperava causar a celeuma que se instalou pelos cantos.

- Um chefe de família, aposentado, cuidando desses assuntos, sem utilidade alguma, é não ter o que fazer– ouvia-se no diário como uma cantiga.

Droga, só falou com seu jardineiro:

- Como é mesmo o nome dela?

Pelo menos o nome, para guardar. Nem isso.