quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Camada têxtil

 

O acontecido, essa camada têxtil, esse véu, essa máscara, essa coisa mais parecida com certa manhã, ao despertar de sonhos intranqüilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso, isso não pode ser atribuído à pandemia ou a outra forma de morrer, que eu estou aqui para contar ou pelo menos tentar.

Quando entrei no mundo kafkiano, só à guisa de introdução, até bem pouco tempo, não me conformava com essa transformação de Gregor Samsa sem nenhum protesto das pessoas que o viam prostrado, e em todos esses anos me mantive calado.

Agora eu vejo meu amigo José Roberto morto e não posso dizer que ele se encontra nesta situação. Não posso e não devo. Existe uma firmeza convencional nisso. E é desse segredo que eu quero tratar.

Começo por dizer da visão geral das pessoas, essa de que estão todas mortas num ponto ou noutro. O sigilo não seria uma mão de uma espécie de material têxtil, teia de aranha especial, que faz com que a gente possa ver tudo mas com certas nuances.

 Por exemplo, Josefina não se pinta mais como uma fatal, apesar da crueldade do tempo. Você olha e diz: quem já foi Naninha? José Roberto, vistoso de outros carnavais, já chega num jeito cansado de guerra. E a professora de lingüística, solteirona, ainda é professora e solteira? Ainda fuma? Sônia ainda é noiva ou saiu fora? Muitas dessas figuras lembradas são poeira que se assentou, diante do nosso longo silêncio, outras não, vivem sob o véu, essa camada tênue, que ora pretendo furar.

Ligo para Zé Roberto:

- Morto? Eu? – Zé recusa, nega.

- Você porque não pode ver, Zé, mas é verdade.

- Por causa da minha doença. Eu andei mesmo com...

- Pronto. Corta! – gritei igual a um diretor de cinema.

Com Josefina foi outro papo:

- Me fale então das celebridades, disse ela. Pelé está no hospital.

-  Pelé, também:  Rei morto, Rei posto. Roberto Carlos, depois que Erasmo se foi, eles têm medo do médium pedir parceria nas suas composições.

E por aí a gente enxerga alguma explicação da coisa. Pena não poder expandir-se ao pó e se saber do destino da professora de lingüística nem do corpão de Sônia, com certeza  igualada  a Josefina, que foi maravilhosa.

Assim como não vemos no dia-a-dia o escorrer das estações do ano e o crescimento da barba, damos de invadir a grama de nosso quintal e encontrar figuras kafkianas de verdade e não figuras de linguagem. Assim é a vida. Tudo no seu devido tempo. Baixemos o véu e sosseguemos o facho.

 

 

 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Aula vaga

 

Uma colegial desperta para a vida num dia de aula vaga

 

 Ela não estava atrasada. Pegou o par de tênis devidamente escovado. Ajeitou-se, por fim, no uniforme. À saída, um toque alheatório de lavanda.  Costumes. Podia desaparecer um mundo de coisas, menos sua marca, seu tchan, seu bland, melhor dizendo. A presilha no lado esquerdo do cabelo castanho.  Um chiclete tutti frutti, que até o portão do Colégio seria mascado, depois cuspido fora. E isso tudo era mais um dia que passava em sua vida. Banho tomado, fresca, com seu aroma, saía para o Colégio naquele início de tarde, que prometia nenhum desfecho, senão dentro de uma normalidade que se avizinhava canhestra.

Vida de uma meninazinha. De cidade pequena. Estreita em tudo. Qual seria a hora de crescer? Abraçar o palpável e o impalpável. O que valesse.  Sair dessa tristeza e mergulhar nesse universo desconhecido, que se ia desanuviando aos poucos. Novas imagens. Gente bonita, diferente. Outro papo.

- Boa tarde! – cumprimentou Cerlândia, sozinha no pátio.

Moça sem modos, morava com os tios. Que mais sabia sobre a menina, que fora paquera de seu irmão Erasmo, que rompeu o relacionamento por conta de sua conduta escorregadia? Quando alguém se entusiasmava com ela, ela logo escapava.

- E aí, menina, que dia vai assumir Erasmo e sossegar o facho?

- E ele, Gorete, deixou de ser múmia? - respondeu com outra pergunta, no seu jeito rebelde de ser, segura no seu sorriso em que se destacavam as covinhas do rosto e seus cachos aveludados de cabelo.

Gorete, que estava de aula vaga, achou foi graça e também se abriu num sorriso:

- Que mais? – deu corda.

- Os caras é que ficam atrás de Tina Charles.

- Quem é essa Tina Charles, menina?

- Da música I love to love – respondeu com passos de dança e sacudindo os cachos.

Notou que Cerlândia usava outra calça em lugar da do uniforme, mais cocota, na moda.

- Como é que deixaram você entrar assim?

- Por que você acha que estou aqui fora da sala? – disse e deu de ombros, como se fosse mais uma das suas.

 No outro dia, o sol sairia de qualquer maneira. Uma portaria de censura à aluna seria baixada no mural, com cópia encaminhada para casa dos tios dela, analfabetos, coitados. A sineta do Colégio tocaria na hora do recreio e no final do turno.  E à noite, para algumas, como Cerlândia, haveria Tina Charles no barzinho da praça. Ela já conhecia outros caminhos.  Morara em S. Paulo. Não era tão boba.

Falando de S. Paulo, a garota chegava encher de verde os olhos que já eram verdes. Nesse bate papo, acabou até aceitando ir para S. Paulo no fim de semana, seu maior sonho,  e até combinaram  detalhes.

- Então fica feito o trato pro fim de semana? – Cerlândia quis confirmação.

Deram-se as mãos como arremate do entendimento. Quando Gorete ia entrando em sala de aula, ouviu atrás de si:

- Vai nada,  você não tem coragem, Gorete!

Gorete, que não era mais Gorete, viu que sua vida dependia de uma atitude sua, então resolveu se abrir de vez:

- Eu vou até hoje mesmo, agora!

Juntou livros e cadernos nos peitos e saiu em companhia da garota. Quando deram por fé, estavam as duas na praça, diante de um supermercado, comprando uns pacotes de velas, por sugestão de Gorete.

Estrada vencida sem plano, com histórias que iam sendo contadas, sem pressa, sem nada, em meio a brincadeiras e passos de dança, que chutavam os seixos. Daí que, muito se falou sobre Erasmo, por quem, sem demonstração aparente, estava ela apaixonada.

Um friozinho de beira de serra, de gerais, latidos de cães, iam cortando a prosa que era boa. Podia se ver a cidade lá embaixo com seus pontinhos de luz, quando Gorete gritou:

- As velas! Temos que parar numa dessas casas e pedir pouso.

Pousaram na casa de dona Neném, que fritou ovos com bastante cebola:

- Eu não gosto de cebola!

- Deixa que eu cato, Tina - segredou Gorete na manhãzinha.

Depois foi só o ermo. De um lado e de outro. E então um enjôo, um vazio que ficava e que se produzia por dentro. Nem lembrava da mãe e do pai, mas agora!... E procurava espiar pelas frestas da vegetação do trecho íngreme a trilhar. Estavam perdidas, eis a verdade, que entalava Gorete.

Quando num lampejo vermelho, viu que era a camisa de seu irmão com mais pessoas procurando por ela, então chamou pelo irmão, que veio e a abraçou, ambos em choro. Gorete tinha alguém por ela, afinal.

O que mais pesou, no entanto, foi Tina Charles, Tina Charles não, Cerlândia, sem nenhum parente, vendo o demorado abraço de irmãos, por ela implorar debaixo dos cachos e com humildade de uma  criança que foi longe demais:

- Erasmo, me abrace também.


terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Desconforto

 

LOGLINE: considerada simples embrecho pela família, sua namorada avisa de sua chegada no feriadão, e isto o levaria a um desconforto.  

 

 

Sempre que convocado, um incômodo se lhe disparava por inteiro. Ora com roupa, ora com falta de grana, ora com nada, incômodo simplesmente. Questão Íntima que, desde há muito, como um assombro, já o perseguia.  Tinha que andar com esse desconforto. Afinal, provisório, calculava-se.  E a coisa ia prosseguindo. Até esse impasse como agora. Que rumo tomar? Ela falou que viria passear no feriadão. Que esperasse. Era doida, era? Como que iriam encarar esse recente namoro? Ainda mais  que a mãe, nas vezes que o tinha visto com ela, nas férias, no interior, tomou-o como simples paquera, com  uma observação, que era uma sentença:

- Essa é moça pra casar.

Como se fosse para ele desocupar, nem passar perto.  Ela,  moça feita, ele nem terminara o ensino médio, moleque. Um avião de moça, graúda, não ia deixar passar para mãos alheias, se era para casar,  pois então... E abraçava aquela beleza de corpo. Como se fosse dele.  Misto de proibido e sagrado. Diferença de idade, casamenteira,  essas conversinhas, sustentava a torcida contra. Como se fosse.

- Gol bonito! - ela vinha para o abraço, invadindo a quadra na hora que fazia um gol, nas tardes de “babas”.

- Obrigado, Tesouro.

Iria chegar. Vinha para casa de uma amiga que também morava na Capital. Ainda bem. Imagine se fosse para ficar na casa deles, ele,  um adolescente, e irmãs, a mais velha de brigas com o marido. Não dava para encarar. Ela na maior inocência. Como iria ser essa vinda? Não adiantavam mais subterfúgios. Era o mundo se acabando:

- Os pais não ligam mais pra ela não?! Ou soltaram a moça assim?!

- E esse povo de hoje obedece a pai? Mas qual, gente!

Era o que se colhia das conversas em volta na casa durante as férias no interior. E essa menina queria conhecer a Capital com o namorado, ôxe. Que maravilha! Que que tinha? Mas ela era moça de curso médio terminado e juventude explodindo pelos poros. Iria enfrentar vestibular, daí a negativa dos seus pais, que via ali uma paquera de verão apenas, sem passar adiante. Imagine, moça pronta, não estavam vendo!

- E bonita, a danada.

Uma pegação do corredor à porta da rua, que ganhavam, mordendo em revezamento uma maçã.

- A vida é assim – dizia a moça graúda entre beijos que levava.

- Se não for, faça de conta – respondia Gustavo.

- Esses meninos... – dizia-se.              

E se dizia mais, a valer, quando avistaram uns aluninhos assustados com um garoto que chegava e, hora de recreio, abraçava a professorinha deles.

Quando a envolvia nos braços,  sentia seu tipo, energia escapando pelos lados, então mergulhava nessa maciez de perdição. Exalava à profundeza, uma conexão antiga. Desse relacionamento, miúdo mas constante, criou-se uma áurea, que só eles enxergavam, e daí um outro mundo.  Deles.  Muito distante.  Eles sabiam, por isso que tocavam o barco ao sabor do vento. A qualquer instante a pausa para esclarecimento, que se fazia silenciosamente e por telepatia.

Como é que receberia essa moça? O que mostraria a ela? Pegaria um cineminha e tal? Alguém telefonaria para a mãe para dizer? As tias com a velha prosa de que o pai cortaria o carro que prometera? O mundo desabando: sua fragilidade escancarada. Como a normalidade iria voltar nos raios de uma manhã explicativa?

Embaraço? Não queria estar presente, como de fato não esteve. Premido pelas circunstâncias, a salvação acabou sendo a viagem que fora forçado a fazer para o interior naquele dia, fugindo do psicopata do cunhado, que andava às voltas com separação da irmã.  

- Você não estava lá, nem suas irmãs, e tinha um homem doido pela casa.

-  Ele fez alguma coisa com vocês?! – gritou Gustavo.

- Não. Nós caímos fora.

Ufa!

 

domingo, 13 de novembro de 2022

Da Lista

 

 

Da lista, que se elaborava como brincadeira de calouros, naquele ano de 1982,  só faltava Dália, uma paquera burguesa. Era de beleza clássica, inteligente, que parecia guardar escrito na testa a palavra. Descobria-se nas notas que tirava nas provas. Ficava sentadinha em dupla com colega, igualmente graúda mas do tipo magra, comportamento que ate inspiravam conversas com insinuações:

- Ali vai ser difícil. Elas não são sapatões?

Eram tranqüilas, do tipo “cabeças feitas”, superiores, e isso era interpretado como burguesismo. Que fosse! Iria experimentar. Começava por colocações procedentes, que fazia e que coincidiam com as dela. Até que chegaram a termo de uma paquera, mas no rito ditado por ela. Ficava assim: assumiram um namorico, de leve, movido pelas afinidades intelectuais e sua estampa de garoto arrumado para o papel. Tanto ele servia que a pretensão parecia pro forma para o caso. Até que, nas despedidas,  fora apanhada de volta do hotel meridian, em que ela trabalhava com o inglês que trouxera dos Estados Unidos.  Daí o avanço delas em comportamento e estudo. Chamou-a para os garros, no playgraund.

- Não fica  de grude como os outros casais. Reservada.

Um dia, voltando do trabalho, rolava no som do carro música nova de sucesso.

 - Acho essa música de Roberto Carlos linda! - comentava ela apoiada em seu ombro.

Quando eu estou aqui

Eu sinto este momento lindo.

Notava que ela o queria mais como namorado que namorar propriamente, queixava-se para o  colega.

- Ela gosta de você, Cara. Porque ela é de outro nível. Claro que não vai ficar nessa de grude.

            Num passeio pela orla, com a coleguinha Lena de companheira, via-se numa situação constrangedora.  A colega se entusiasmou e, quando viu suas mãos entrelaçadas com as de Dália, acabou bebendo além da conta. As mãos se davam por debaixo da mesa,  de maneira voluptuosa, num trato íntimo de antigo entendimento. Aí tiveram que assumir o relacionamento e movimentar na condução de Lena, chorosa,  para casa. Como se fossem eles uns traidores. Ninguém culpado de pensamentos errados de Lena. Mas supor que havia adrede  caso de Gustavo com Dália...

Num namoro na linha do pro forma, na pilastra do prédio dela, ele a surpreendeu com sua excitação de fúria adolescente, batendo firme nas coxas atracadas. Mas não foi isso o motivo do término por ela, que retornou logo depois para encerrar legal, sem alardeios, sem danos. Porreta,  da parte dela.

 


sábado, 12 de novembro de 2022

A libélula

 

 

Como uma libélula, em vôo de galinha, o garoto saiu por aí atrás de um besouro morrinhento, estilo vestiu-uma-camisa-listrada-e-saiu- por- aí. Guiava-se na base do custe o que custar mas acabou deparando com uma moça velha, no dizer da localidade, que muito modificaria seu propósito. Moça que passou da idade de casar. O dobro da idade dele. Ele que era um terceiranista do curso de Letras, pronto para voar,  naquele início dos anos 80.

         Gustavo, cabelo pedindo corte, barba por fazer, bolsa a tiracolo, num estilo universitário. Apresentaram Gustavo a essa moça branca e sozinha. Não, com o charme de um cigarro Carlton entre dedos. Camiseta Hering, cabelos castanhos encobrindo o detalhe do brinquinho,  lábios com discreto batom,  e com certeza algum dinheiro amoitado na bolsa, como uma mulher na esfera de liberada. Ela se mostrava uma fumante habilidosa

         “Ao menos um ruge, para encarar. O nome dela é Ana” – alguém na apresentação lembrava quando Gustavo se acercou como interessado.

Dois beijinhos no rosto de feição agradável e mais alguns esclarecimentos, encaixou-se em dupla com a irmã de um dos poetas do livro de coletânea lançado naquela noite literária do ano de 1981.  Apenas um motivo. Em meio as patricinhas de sempre, ele vibrava com Ana, como um troféu em punho (um brinco brincava de trapézio na orelha, apesar de não ser nenhuma gatinha, livre de assédio).  E no diálogo, ela percebia essa sua ousadia, que antes procurava arrefecer o entusiasmo dele. Isso, nessa busca,  o tirava do rito de aventura adolescente e fazia enveredar pelas águas calmas da probabilidade concreta de sexo, sua obsessão de vida ou morte.. 

“Por que você não acompanha seus colegas? Olhe lá: cada um se armando e cadê você? ” – ela resolveu falar, e ele reparou firmeza no seu timbre de voz.

“Ao lado de você, Ana” – soprou  no ouvido de Dália.

“A gente não pode. Você perde seu tempo,  menino.” – ela falou depois de um silêncio.

Entendia que falava da diferença de idade. Boazinha no abraço, não queria largar essa tia descolada:

“Deixe que eu perca meu tempo com você, Ana: pra mim, é um aprendizado! “ – disse num afago encostando-se mais num abraço.

Entendendo como uma cantada, ela, dominadora, sorriu.

“Vou- me embora pra São Paulo amanhã”.

“Ôxe! Depois que bagunça comigo vai embora?”

“Vou pra S. Paulo e tenho que ir”- disse erguendo-se para o ponto de ônibus,  talvez com medo da cantada.

“Te ligo pra dar um alô”.

Passou o número a ela, que o guardou enfiando o papelzinho no bolso traseiro da calça jeans. Por ora, ficariam assim: ele olhando o rosto alvo mas cansado, cabelos castanhos, e ela olhando um menino com esforço de rapaz comum, moreno e playboyzinho, que procurava diferenciar-se  dos demais nos rasgos de maturidade.

“Você vai me ligar mesmo amanhã?“ perguntou.

Ela  botou em Gustavo os olhos pedintes com convicção:

“Vou”.

“Já é tarde, eu te levo até a Avenida Sete. Meu carro está ali” - falou com mais moral que lhe dava o carro novo.

Acabou cedendo. Foram para o seu Voyage, onde labutaram um bocado, antes de deixá-la na avenida. Foi lá que os corpos se resolveram  num trato mais apurado de masturbação: estalos de fivela, romper de fecho eclair, cós de calcinha, cheirinho de boceta em mãos estudadas; lábios e... grunhidos.

Não podia morrer como uma libélula tonta, num giro de satisfação carnavalesca, dia seguinte a empregada veio dizer que Ana ligara para ele para informar que estava embarcando para S. Paulo.

“Só isso?”

“Ah, pediu pra não te acordar. Deixou um abraço”. 

        C

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Chocolate

 

 


 

“Eu sei que você não empresta pra ninguém, então vumbora ali comigo levar um pessoal.”

Era Hugão, no seu jeito de apressado.  Avistei de longe as duas meninas com bolsas e mochilas,  com quem ele tratava algum negócio: uma, a branca sem encanto no traje mas jovem, Chocolate batido ao leite - fui logo astuciando apelido;  a outra, por ser escurinha, Diamante Negro,  mais caprichada de corpo num short jeans. Em comum, ambas carregavam na pele a nobreza do chocolate. Nhoc.

Firmáramos num papo ali no bar, mas eu sempre de sobressalto com Hugão.  Ele era um vendedor de produtos do Paraguai, muito esperto, aceso com as coisas. Meti-me com ele por causa de uma antena prarabólica de TV, que ele ficou de consertar e eu acabei perdendo o dinheiro, mas ganharia um amigo.

E ele, que não sabia dirigir carro, mas apenas, por incrível que pareça,  motocicleta,  agia com seu jeito de precipitado, mais perigoso: “Pare aqui pra elas entrarem. Vumbora. Vumbora” – dizia as às garotas e virava-se pra mim: “Agora vá direto e pegue a pista, pegue a pista à direita!”

“O que queria mesmo, Hugão?” Seria uma carona para aquelas meninas, conchavo dele nos seus negócios, namoricos ou coleguismo? Iria deixá-las num ponto de viagem, com aquelas mochilas? Meu fusca seguia religiosamente as instruções de Hugão, num ritmo dele, como se guiasse motocicleta.

“Entra aqui! Entra aqui!”

Quando menos esperava era muito de conhecimento aquela estradinha.  Oxente, era um motel! Que queria Hugão ali com as duas garotas? Foi quando caiu a ficha. Mas ele tinha que ter me falado antes.  Hugão numa das suas. Nem sabia qual dos chocolates era minha preferência.  E eu sem entender nada, mas me preparando, se é que podia, diante das circunstâncias,  falar em preparo.

“Anda logo, porra!”

Tinha que eleger uma no seu ritmo. Ambas chocolates. Como podia  em meio a tanta confusão?

Soltei a branquinha e fiquei de olho nas pernas do Diamante Negro que Hugão abarcava adiante, no corredor.

“Ei! Vou fIcar com essa daí, Hugão”, gritei no estalo.

Mais que ligeiro, estilo Hugão, ele  liberou pra mim a garota:

- Ô  porra, veja se decide logo!

Depois falou no meu ouvido:

- Depois a gente faz a troca.

Peguei meu “crocante” e embocamos no quarto. Como última imagem, eu via Hugão bater a porta em frente, arrancando blusa, nos seus atos preliminares, de braços com a barra de chocolate “galac”, que iria saborear lá para dentro. No seu estilo.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

FOLHA


 

pe-da-la-das

pe

da

la

das

 

de

bi-ci-cle-ta

bi         ci        cle       ta

 

 

   le-ve-za

 

le         ve        za

d  e

corpo              e         

alma!

 

 

22/07/22

22/07/22

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Apego

 


 Apego

 

1.

O que me faz apegar à vida

é a possibilidade da poesia

que eu quase pego.

 2.

De outra, eu apanho

Escorregadia, não vai me faltar

 até o seu vazio é uma forma de estar.

3.

Pela fenda do telhado enegrecido

migalhas de vida ao romper dos dias

em  réstia de sol recolhidas.

 

 


14/05/22

terça-feira, 26 de abril de 2022

Pegação

 

               

De namoro mesmo, tudo certinho, civilizado, era só Silvino e Lourdinha, sentadinhos os dois lá atrás; o resto da meninada só na conversa, rosto coberto de cravos e espinhas,  e muita punheta:

            - Gustavo e Sandra também – falou Ronaldo.

            - Respeite a colega, cara! – respondi, tirando o corpo fora do rol dos casais de namorados que estavam fazendo. - Só porque a gente anda juntos, porra – protestei.

            No fundo tinha sentido fazer aquela inclusão, pois a gente, eu, nos meus quatorze e ela nos seus 16 anos, era só na pegação, pelos corredores do ginásio. Além do mais, me preenchia muito o ego. Dava uma moral! Numa renovada aparência, de bigodinho raspado, graças ao barbeador que ganhara de Sandra no amigo secreto. Mas acontece que Sandra, que já era moça feita, como se dizia, era para namoro firme e casamento. Se ela soubesse, eu que ia levar bronca e perder a mamata dos amassos. Por isso sem forçação de barra. Também, que circulasse tal conversa no meio da turma, pelo menos. Sandra me colocou num canto e falou, sem alarde, numa boa, para terminar com aquilo, senão iam pensar que estávamos namorando. Mas enquanto falava, eu ia aceitando uns amassos e uns beijinhos de leve.

            - Tá ouvindo, menino? – dizia espalhando tapas, que eu suportava no desgrude, naquela fresca da tarde.

            - Mas você não vai ficar com ninguém por aí não - falei em retirada.

- Então não seria melhor para depois da quadrilha de S. João? – ela me reacendia.

Combinado não saia caro. Ela explicava  que eu era ainda menino e ela tinha que estar pronta para firmar namoro sério. Depois, me deu um retalhinho de amostra do pano para a confecção de minha camisa.

- Vai ficar uma dupla bonita, Sandra – falou uma colega nossa, dessas de segurar vela.

Sandra era rabuda e sua calça acentuava bonito esse detalhe. Era bom quando, armado,  ela vinha e encostava com o frescor do banho tomado e o toque do almíscar no pescoço, só encostava, só... Tinha que correr às pressas ao banheiro. E ela sabia desse meu segredo, a “desgraçada”.

 

domingo, 20 de março de 2022

Tempo das manguitas

 conto: Um adolescente, tarado por manguita e pela dona do pé de manguita, vizinha de quintal.  Um dia Glauce, a vizinha, sabendo que ele estava só, entra na casa procurando por Vanda, irmã dele.

Havia no nosso quintal todo tipo de manga, mas a que a gente mais desejava, pelo menos eu, era a do vizinho. Uma árvore que se erguia frondosa, sombreava o quintal e o resto da vida. Parecia botar suas manguitas de fora em pontinhos amarelos e rosas.

Ainda era de se acrescentar: com o apetecimento que oferecia a garota da casa, de cabelos cacheados e fartura de coxas nos vestidos curtos que usava.

- Sobram pernas nesses vestidos que essa garota costuma usar, colhia, escondido, dos comentários maldosos ouvidos no Café que sua mãe, boleira, tocava na parte lateral da casa, quando ela passava perto sumindo lá para dentro.

  Ficava em divagações com a mancha rosa na fruta pedindo para ser mordida. Disputadíssima, estava claro.  

- Ela está quase de vez, dizia na ânsia da permuta, passando a manga rosa para as mãos de Preto, o vizinho parceiro, e recebendo  dele as duas tão almejadas manguitas maduras, que iam ser abatidas num só golpe de boca de um adolescente campeão de saúde e viril.

Negócio feito por cima do muro. Só uma vez alguém comentou:

- Você é besta: manga-rosa vale muito mais que duas manguitas.

Não entendiam. Aliás, ninguém. Mas bem que devia receber naquela troca era Glauce, a irmã, com aquelas duas toras de coxas morenas. Isso sim. Mordia-se a manguita no rosado bico e puxava-se o doce nos fiapos entre os dentes. E não adiantava nada -  com pouco aparecia a imagem da menina travessa com seu vestido colado ao corpo. Aí, após chupadelas, entravam os pelos penteados da buceta  de Glauce .

A época das manguitas se avizinhava com essas primeiras frutas, mas as mangas rosas tiravam onda de difícil e demoravam. Os passos de desconfiada de seriema de Glauce ignoravam esse desencontro de produção agrícola, entrando em casa, a pretexto de fazer trabalho escolar com minha irmã.

- Vanda, eu gritava lá para dentro às vezes, Glauce está chamando! Vamos sentar, Gluauce, dizia apontando o sofá,  com  o olho nas bolas e barra do vestido da garota.

Enquanto isso, o rádio de pilha da casa de Glauce, posicionado no quintal, na sombra do pé de mangueira, retransmitia num alvoroço matinal o programa “Belmiro é o espetáculo”, da Rádio Inconfidência. Mais tarde era o papagaio que iria entrar em ação: - Ô Preto. ... Preeeto...

Preto, irmão de Glauce, era meu colega de ginásio, de estudar e tocar juntos alguns acordes de violão, mais umas duas canções. Só isso. O resto era o turuntuntuntumtun de iniciantes.

Por influência dos gibis e das fotonovelas que líamos, a gente em dupla fazia no caderno umas “fotonovelas”, com texto meu e desenhos caprichados de Pretinho. Dava gosto de ver os desenhos em quadrinhos. Curtia no meu quarto, entre pausas de manuseios dos assuntos de aula, até me envolver no sono.

Dia seguinte, às cinco, era acordado para a Educação Física. O sinal combinado era o barulho que fazia no vitrô do meu quarto uma vara de anzol, lá do outro lado: “Chap-chap”. Se bem que mais elegante, naquele mundo ainda de sonhos, seria despertar com Glauce tentando enfiar aquelas pernonas quentes entre as minhas coxas e me dizendo no ouvido:

- Acorde, menino, que não tem Educação Física hoje não.

 E acontecia de não haver mesmo, para ficarmos às sós, numa boa. Seria feriado ou então o professor, solteiro, acordaria de ressaca.

Guardava a impressão de que o dia não se iniciava sem o alardeio do radinho de pilha da mãe de Glauce.  Não pingava um pessoal de costume na calçada para o Café da manhã, crianças não passavam para escola. Não encaixava normalidade nas coisas, mas uma idéia de fim de mundo ainda com final de feira. Tudo acabado e gente perdida, sem ermo, numa imensidão de mar oceano. Cada pessoa encontrada você olhava como se fosse última vez, com despedida de adeuses e lembrança acelerada de pequenos detalhes realizados no tempo de presteza.

 Aproveitava esse entrecho para últimas ações minhas e de Glauce, com aquelas duas alças de vestido escapando em sistema de revezamento. Caía e levantava. Na verdade, essa questão do vestido de Glauce não era propriamente Glauce, antes era mais de formato de corpo. Que era, com olhos de exagero, num estilo sob medida. Muito queixo caído, muita babação. Mas de uma cruzada de perna de Glauce (um escândalo) teria como se esquivar?! Quantas vezes não tivera que correr até o banheiro para amansar o bezerro? Ufa!

Penso em Glauce com tristeza, pela ausência de seu rosto, só coxas e bumbum. Era uma garota que sobrava corpo sob medida, com as alças de vestidos caindo em mantida decência no traje. Parecia não, com certeza ela veio para ser uma espécie de fetiche erótico ou algo assim. Nesse período de puberdade despertava toda uma geração ou era só eu porque estava ali de perto vigilante, como quem espera a chegada do envermelhecido da pontinha da manguita?

O certo, porém, é que por demais marcou minha vida de adolescente um desses dias, como um dia atrás de outro, e aí é que completava esse bordado: até o radinho de pilha da mãe de Glauce tinha feito sua vez tocando uma canção de Raul Seixas, em que ele se declarava feliz por ter conseguido comprar um corcel 73; o papagaio já tinha grasnado o nome de Preto duas vezes, e as crianças cuidavam  de ir para a escola, tecendo a manhã pelas calçadas em frente; quando deparei com uns passinhos de seriema com as duas bolas ajustadinhas falando com voz de formiga Vanda! Vanda!, enquanto o chão ia sendo forrado do açúcar que caía da garota, que se esvaia em tesão e eu ali circunspecto e firme nos meus doze anos, pensei e nem quis mais pensar.

Abracei por trás a garota, que me escapou frouxamente quando aos seus gritinhos elevou-se por instinto de socorro a voz de irmão, lá embaixo e do outro lado:

- Glauce!

 

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Versos intimistas


 

 

6.

Um cheiro que quase se dá e se entrega,

olor de florzinha rocha num arbusto

de quintal.

 

7.

Em longínquo campo, uma flor se ergue e se impõe

mas não se entrega na cor

seu reino, sua glória

flor do algodoal.

 

8.

Seus lábios não dizem o quê

mas nossa música, inaudível, se ouve

tocar.

 

9.

Somos faísca de vida que se escapa

quando se a tem

na palma de mão que mal se vê

esboçar.

 

10.

E daí essa fluência

de poesia

que não se farta, não se cansa

malgrado findar-se o dia.

 

 

7.02.22

NeiGeorgePrado