O acontecido, essa
camada têxtil, esse véu, essa máscara, essa coisa mais parecida com certa
manhã, ao despertar de sonhos intranqüilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua
cama metamorfoseado num inseto monstruoso, isso não pode ser atribuído à pandemia ou a outra forma de
morrer, que eu estou aqui para contar ou pelo menos tentar.
Quando entrei no mundo kafkiano, só à guisa de introdução,
até bem pouco tempo, não me conformava com essa transformação de Gregor Samsa
sem nenhum protesto das pessoas que o viam prostrado, e em todos esses anos me
mantive calado.
Agora eu vejo meu amigo José Roberto morto e não posso dizer
que ele se encontra nesta situação. Não posso e não devo. Existe uma firmeza
convencional nisso. E é desse segredo que eu quero tratar.
Começo por dizer da visão geral das pessoas, essa de que
estão todas mortas num ponto ou noutro. O sigilo não seria uma mão de uma
espécie de material têxtil, teia de aranha especial, que faz com que a gente
possa ver tudo mas com certas nuances.
Por exemplo, Josefina
não se pinta mais como uma fatal, apesar da crueldade do tempo. Você olha e
diz: quem já foi Naninha? José
Roberto, vistoso de outros carnavais, já chega num jeito cansado de guerra. E a
professora de lingüística, solteirona, ainda é professora e solteira? Ainda
fuma? Sônia ainda é noiva ou saiu fora? Muitas dessas figuras lembradas são poeira
que se assentou, diante do nosso longo silêncio, outras não, vivem sob o véu,
essa camada tênue, que ora pretendo furar.
Ligo para Zé Roberto:
- Morto? Eu? – Zé recusa, nega.
- Você porque não pode ver, Zé, mas é verdade.
- Por causa da minha doença. Eu andei mesmo com...
- Pronto. Corta! – gritei igual a um diretor de cinema.
Com Josefina foi outro papo:
- Me fale então das celebridades, disse ela. Pelé está no
hospital.
- Pelé, também: Rei morto, Rei posto. Roberto Carlos, depois
que Erasmo se foi, eles têm medo do médium pedir parceria nas suas composições.
E por aí a gente enxerga alguma explicação da coisa. Pena não
poder expandir-se ao pó e se saber do destino da professora de lingüística nem
do corpão de Sônia, com certeza igualada
a Josefina, que foi maravilhosa.
Assim como não vemos no dia-a-dia o escorrer das estações do
ano e o crescimento da barba, damos de invadir a grama de nosso quintal e encontrar
figuras kafkianas de verdade e não figuras de linguagem. Assim é
a vida. Tudo no seu devido tempo. Baixemos o véu e sosseguemos o facho.