sexta-feira, 9 de abril de 2021

NA GODELA


Estranhava as cozinhadinhas que minha Irmã mais velha fazia, nas brincadeiras de bonecas com as amigas. Em vez de fazer de conta ela fazia de verdade. Cozinhava feijão, arroz e cortadinhos de mamão verde, em panelas pequenas, às vezes, por algum descuido mas sem reclamação, com cheiro de fumaça, minha preferência. Todo mundo sabe como era. Quem comia mesmo eram as donas das bonecas e convidados, como eu no caso, que ficava só ali, na godela.

Olhe que eu me viciei. Era uma comidinha sem fartura, que depois, para valer, vinha o almoço da casa. Mas não dispensava. Interrompia a brincadeira com os carrinhos de plástico para uma pausa: convidado para uma cozinhadinha. Quando era de minha irmã Nora..., era de tirar o chapéu. Era lorde, ou chique, como se dizia então.

Tinha um caixote de carrinhos de plásticos. Muito orgulho:

- Pega esse (que tinha as rodinhas de tampas de borrachas de frascos de injeção), é macio, uma beleza, e entregava o caminhãozinho à criancinha mais pobre que a gente, sempre de bico, que ficava só apreciando e nunca acontecia de roubar.

E muitos outros, que apareciam, pegavam um carrinho para brincar. No fim da tarde, hora de tomar banho, havia um garoto encarregado de receber os carros e dar baixa nos empréstimos.

Um dia era aniversário de uma boneca, minha irmã mandou distribuir o bolo mediante apresentação de um presente. Eu, no faz de conta, comi um pedaço de bolo de verdade, mas morri de rir quando minha irmã lamentou o presente entregue à Ereca, empregado de mãe, que saiu correndo com o seu pedaço de bolo:

- Por que, Nora? Tão bonitinho!  - eu disse a ela..

 Acontece que o sacana tinha enrolado num papel não um presente novo mas uma ursinho já velho e esquecido,  apanhado nos pertences dela.

Hoje considero minha irmã, ex-nuticionista do Hospital Roberto Santos, bom que se diga, uma boa cozinheira.

- O melhor arroz fumacento que já comi. Tem gosto de infância, Nora.

 

 

quarta-feira, 7 de abril de 2021

SEGREDO

 

 

         Entre brincadeira e falar sério, a propósito de algum lance dessa trivialidade, ela falou em lhe dar, dar mesmo,  e que podia escolher o local escrevendo com o dedo indicador sobre a farinha de trigo polvilhada na banca da cozinha.

 Escreveu, na esperteza que julgava ter de um menino de onze anos de idade, mais que ligeiro:

          - No “corredorzinho” (que havia lá entre as casas dela e dele).

          - Que corredorzinho? quis ela saber.

         Ele indicou com uma olhar além da janela.

         - Na cama, seu bobo... escreveu ela, segura nos seus dezessete anos, que só faltavam saltar do corpo.

         E assim foi, quase toda tarde, depois de deixar pronta para o fermento a massa do bolo. Pegava uma moeda e lhe entregava dizendo:

         _ Então vai ali em seu João e compra dois cigarros soltos, de marca Mistura Fina, pra mim, que estou te esperando no quarto.

          Logo estava de volta com os cigarros, ele, letárgico, ela, estirada na cama,  acendia um e  entre chupadas apressadas no cigarro:

- Você não vai contar pra ninguém não. Se eu sonhar que você contou pra alguém eu te mato, viu? dizia e então completava num baixo tom de voz: - Vem!

Fumava, que ele não sabia que o seu gemido, nessa confusão, vinha dos tragos do cigarro ou o que era. Vez por outra gritava. 

Gritava  baixinho, para disfarçar, só podia.