Conto da era FHC
Geração banana
1.
Acabo de saber da prisão de Toledo. Pegou todos nós como na foto dos últimos dias de Pompéia. Um vulcão que tínhamos no quintal de casa, mas que se sabia sine die. Agora essa sensação de que podíamos ter feito algo. Irmanados. A gente sempre com os probleminhas do próprio umbigo. Tivesse reparado bem, como então se vê, o problema de Toledo não era o problema de Toledo. Era nosso. Toledo é que foi homem, foi macho. Nós sim é que nos tornamos uns bananas. Aliás, uma geração de bananas. Tenho vontade de dizer tudo isso a Toledo. Adiantaria alguma coisa? Ele está preso. No fundo todo mundo com inveja da besteira que Toledo fez. Besteira não. Olhe só como somos hipócritas. Se bem que é isso mesmo – a hipocrisia é uma das características do homem banana.
Depois é que fui juntando aqui e acolá do que fez Toledo nesses últimos tempos e dei com essa descoberta tardia. Ele esteve com quase todos da turma. Ele nos procurou, afinal de contas.
2.
Vejo agora na parede a foto do nosso time da época de ginásio. Fico imaginando o que éramos então e o que hoje somos. Toledo, magrinho, cabeludo, como quase todo mundo naquela década de 70. Ele coma fita na testa imitando Douglas do Bahia, que ele tinha visto numa revista Placar lá na alfaiataria de seu Zequinha. Jogava de ponta. Drible e cruzamento. Meio ciscador mas bonzinho de bola. E na escola era um dos primeiros. Em tudo. Até nas malandragens. Não era feito como Miguel, que aparece ao lado, esforçado, todo direitinho, filho de mamãe, desses que carregam os livros para os professores e etc. Foi ser o que na vida? Professor de História, coitado. Na casa dos quarenta e fodido. Miguelão, que já é avô, entrou para o banco. Hoje é gerente. Está bem. Os outros, quase todos, também: um médico, outro engenheiro e outros bem sucedidos no comércio. Só o Toledo.
O que ganhava como professor mal dava para os livros. Certa feita, com muito cuidado para não ofendê-lo, Renato tentou trazê-lo para o comércio. Ganharia muito mais.
- Muito agradecido, companheiro. Não sei viver mais fora de uma sala de aula.
E não sabia mesmo: vivia para os livros e para a escola. Um tipo. Bem que era bonito vê-lo rodeado de adolescentes, passando conhecimentos, dizendo as coisas. O que não se sabia era desse seu radicalismo agravado repentinamente.
3.
Que custava lhe ter dado um pouco de atenção. Gente, ninguém deu ouvido ao Toledo. O bananismo foi geral. Agora eu fico olhando essa foto em que aparece Toledo menino, ginasiano, tomando meu pilequinho burguês de final de expediente e chorando. Eu pergunto: isso vai resolver alguma coisa? Vai? Pode resolver para mim, para me recuperar do bananismo, mas e Toledo? Sacanagem até na dor – me servir de Toledo para curar dos meus males. Por que não lhe fui camarada quando me procurou? Eu só não. Todo resto da turma: Miguel, Renato, João, Gabriel, Besourão e Gonçalves. Um dia que nos encontramos na sauna do clube a conversa foi que Toledo andava meio fraco da cabeça. Fraco porra nenhuma. Fracos estamos nós.
- Ele disse que a contribuição da nossa geração é zero – lembrou Renato.
- Disse também que nada podemos esperar da geração seguinte se não fizermos algo agora – completou Miguelão.
- Ele entende que essa geração de velhos que está no poder é de uma perversidade tamanha e não pensa nas outras gerações. Eu perguntei a ele: “Ô Toledo, mas como eles podem se perpetuar?...”
- Que que ele respondeu? perguntou Gonçalves.
- Ah, ele falou um bocado de coisas. Disse, por exemplo, que nós vamos deixando pelo chão todo o nosso ideal humano à medida que pisamos o tape do poder.
- Feito um círculo vicioso – arrematou Renato.
4.
A televisão agora vai encher o tempo mostrando as mesmas cenas. Primeiro as imagens de como se deu a prisão. Depois um pouco sobre Toledo, sua cidade, o colégio onde lecionava, entrevista com alunos, com o dono do barzinho que ele frequentava, essas baboseiras. Quanto o repórter conclui a matéria vai dando um nó na garganta e a gente não tem como segurar. Deveriam explorar o lado sério, não a maluquice em si, que esta era mero pretexto para o que objetivava Toledo, se bem o conheço. Muitos captaram sua mensagem, mas eu, você, você, você, não os outros, que a mídia tenta controlar tudo. De qualquer sorte, que houve um certo abalo houve. Renato me liga para dizer que a coisa já anda pela internet afora.
- Não sei com quem eles arrumaram, mas dizem que até aquelas poesias que ele andava escrevendo para um livro que nunca publicava aparecem na internet.
Pelo mesmo isso. Já é um começo. Toledo não vai achar de todo inútil o que fez. Falava muito dessa poesia. Da força e do poder das palavras combinadas entre si. Só que ninguém lia poesia senão pessoas como o próprio Toledo.
A irmã dele, Norma, professora do mesmo colégio, é uma das entrevistadas. Diz mais ou menos o que a gente já sabia, mas acrescenta que Toledo vinha acumulando uma serie de aborrecimentos e que a qualquer momento ele chegaria a uma explosão com a que se viu.
Passou mal quando soube de algumas privatizações, dinheiro público cobrindo rombo de bancos privados e empresários cada vez mais ricos. Sofreu com os escândalos da compra de voto no Congresso Nacional, sem contar com as questões antigas que ele carrega, como o da Educação no Brasil.
- Ele chorava quando lia os jornais.
O repórter se apressa:
- O que fazia ele chorar por exemplo?
A câmera focaliza Norma mais em cheio. Emocionada, contida. O repórter renova a pergunta:
- A senhora disse que ele chorava quando lia os jornais. O que o fazia chorar em especial?
- Isso: todas as safadezas que estão fazendo com o Brasil.