Para Dr.
Robério Alves Neves
Início do
segundo ano primário. Aglomerado de alunos no corredor de acesso à sala de
aula, naquela manhã de 1970. Um menino, chorando que fazia um horror, sendo
arrastado pelo braço da mãe me chamou logo atenção. Causou-me estranheza,
na verdade. Fiquei meio envergonhado por ele.
- Oxe, como é que
chora se está indo para escola?! pensei dentro de meus sete anos de idade. Mas
ao tempo que me achei assim com minha responsabilidadezinha me achei também com
certa inveja: - Ué! E podia chorar assim! Menino maluco! fotografei dele essa
imagem, com os detalhes da mãe arrastando o moleque de cabelo
loirinho pelo braço, que dava seu showzinho logo cedo.
E esse menino
loirinho iria para minha turma. Com quem fui pegando um pouco de rusticidade ao
longo dos estudos que desenvolveríamos pela frente. Em andar pelas
ruas, jogar biroscas, pegar luta, tomar banho nas barragens escondidos dos pais
e saber manejar o estilingue (pelo que nunca fui de tomar gosto). Escondido dos
pais! Descobri que os pais dele eram velhos. Pudera! Aí era fácil de
driblar. Não eram como os meus.
Tomando banho num fim
de tarde, um vento batendo solitário, longe de casa, mas preocupado, e alguém
falava:
- Olhe sua mãe aí,
cara.
Você pensando em
brincadeira de menino, quando menos se esperava era sua mãe mesmo, com uma
sandália na mão aproximando para pegar para bater. E você ia lá imaginar que
sua mãe estava ali no meio do mato?
Quanto à maluquice,
que parecia ser o charme dele, tirava isso para lá. Depois a gente foi aos
poucos se conhecendo a ponto de estudarmos juntos para a prova de admissão, num
só livro, à luz de candeeiro que amanhecera numa cadeira perto da cama. Esforço
infantil que resultou contemplado com nota cinco para ambos e com advertência
do diretor do ginásio, nosso vizinho:
_ Vocês passaram,
você e Rock, mas me prometam não fazer a prova final da escola.
Ninguém iria lembrar
daquela professora chata. Esse é o termo: chata. Nessa ocasião, minha briga
particular passou a ser com Rock, ele tirara nota 5,0 e eu 5,2. Era
ligeiramente melhor.
- Quem é Orlando
Prado Martins?
Antes que a gente
pensasse nalgum possível mal feito de Orlando, o diretor completou:
- Diga a ele que meus
parabéns! Primeiro lugar: 8,5.
Mais um na incipiente
turminha de ginásio, que formaríamos a partir dali, do primeiro ano ginasial,
ao lado de Paulo de Nonô, o cara (ficou com esse apelido porque
brigava fácil e como um não podia falar o nome do outro...).
Mas, no segundo ano,
tivemos uns cadernos tipo brochura, de capa mole, com detalhes de atletas de
Olimpíadas comprados na venda de Possidônio. Bonzinho para escrever. Então
comprei uns dois na conta de pai. Num gesto de imitação de menino, ele resolveu
levar um também, aproveitando a presença do pai, que acabou enfiando a mão no
bolso e pagando os caderninhos. Foi quando observei que o pai dele, ao
contrário do meu, era velho, mais relapso, por isso que ele vivia mais solto.
Mércia, filha de um
homem rico, era nossa namoradinha. Nossa não. O máximo que aconteceu foi de eu
passar a mão pelo cabelo arrumado dela. Mércia era namorada dele. Minha
irmãzinha tinha dito qualquer coisa sobre ela preferir Rock. Oxi, não sabia
Mércia que ele era maluco e andava com estilingue no pescoço! ‘Descobri que
Mércia era maluca também, filha de um negociante raparigueiro que deixava a
garota nas casas de conhecidos da cidade e a apanhava num opala verde no fim de
tarde, depois de haver aprontado em bebedeiras nos bares em dia de feira.
Na casa de Rock tinha
um sofá em que ele guardava as suas revistinhas de zorro a pato Donald.
- Cuidado!
A gente desencostava
do sofá perguntando:
- Com quê?
E ele:
- Cuidado com a
machadinha!
Eu sempre procurava
descobrir que porra de machadinha era essa. E ele “cuidado com a machadinha”,
ia passando e dizendo “cuidado com a machadinha”, que até hoje tenho essa
sede de saber.
Já no início da
adolescência, na turma da sétima série, descobrimos que Rock era pisciano, o
que explicava mais ou menos a sua maluquice, quando, numa confusão de sala de
aula, o professor, não habituado a resiliências, mormente com adolescentes, um
dia apertava nossa turma:
- Faça o seguinte: ou
aparece quem cuspiu no caderno do colega Rock ou todo mundo vai levar suspensão
por três dias
O professor de
inglês, além de pastor da Igreja local, era do Sul, de costumes e linguagem
diferentes, meio xarope, considerava-se, e não ia voltar atrás.
Rock, numa confusão
de meninos, de sacanagem, se queixara: “alguém cuspiu em meu caderno, professor!
”
O professor bem que
tentou resolver, dando uma chance, mas quem é que queria se queimar perante a
classe, para o professor se sair numa boa?
- Se não revelar o
nome de quem cuspiu no caderno do colega Rock a turma toda entra em suspensão
por três dias.
Estimulava a delação.
Eu podia ser tudo, menos idiota de dizer “sou eu professor, livre a turma
disso”, e Rock, com cara de “se arrependimento matasse”...
- O professor, acho
que foi um passarinho desses que cagou na folha do caderno, deixe isso pra lá,
disse olhando para o teto da sala, onde havia pardais.
Mas o professor não
era da região, tinha outros costumes, então a turma B da sétima série
ginasial de 1975 provou sua solidariedade ao colega e tomou uma suspensão de
três dias.
Nessa ocasião, completaria
meus catorze anos e, para o ano, iria estudar em Salvador, levando comigo o
carinho desse gesto de apoio da minha turminha ginasial mas eu queria mesmo era
saber da machadinha do sofá da casa de Rock.