segunda-feira, 23 de novembro de 2020

9. Dominguinhos

 


- Duas de Manda Chuva e uma de Cavaleiro Negro num Almanaque Disney?! Trocou com quem?

Ninguém sabia. O que importava era o gibi ali na minha mão. Ia ser devorado lá para dentro. Primeiro, deixar pronto o dever de casa no alpendre, onde costumava, sub-reptício, receber amigos. Todo mundo sabia que o amigo seria expulso logo que algum adulto da casa - a mãe, a tia, a empregada - se aproximasse. Tal o clima de terror, que sempre perpassava uma imagem de suspeito de coisa errada, ainda que não fosse o caso:

- Moleque!

E de moleque só ficava o vulto - “pernas-pra-quê-te-quero”! Era numa dessas manhãs em que aparecia Dominguinhos. Chegava e do mesmo jeito saia. Com sua canhota, que se diziam certeira, e era verdade, como pude testemunhar por várias vezes.

Ele nunca fora de briga, mas por conta das injunções da época, era forçado a isso e levasse lá uma porrada dele para se vê. Chutava, era o nosso Rivelino no time de rua. Ponta esquerda, tinha o canhotaço. E acabou que ficou mesmo só o vulto de Dominguinhos. Desaparecera ao pressentir a aproximação de Luísa, uma tia que, por ser uma adolescente, não recebia o tratamento reverenciado como os demais, mas procurava se impor.

-  Esse moleque não estuda, não toma banho, que vocês querem com ele?

- Gibi emprestado, acudiu Louro, um colega vizinho com quem eu fazia as tarefas.

            Luísa fez um ruummm que indicava suspeita naquela manhã de sol tênue, mas a gente nem queria saber disso. No meio da molecada era um sucesso. Onde se achava revista de Tex que Orlando tanto adorava?

            - Essa novinha de TEX foi Dominguinho que me emprestou, dizia o próprio Orlando especando qualquer reação nossa.

            Ou por outra, alguém dizia:

            - Arranjei com Domingo, cara.

Reparando bem, Dominguinho vinha se firmando como novidade nesse lance de troca de revistinhas.

            - Domingo nem sabe ler! observava Luísa, mordaz, ligada no assunto.

            Tal era o costume entre a turma, que não tivéramos essa conclusão. Normalmente recebia e passava revistas, de um moleque para outro, com estalo indagador quando despertava interesse. Notava-se que aos poucos ia aparecendo nas conversas o nome do companheiro de brincadeira de rua, de outras modalidades, não nessa do círculo de leitura de gibis.  Na linguagem atual, ele vinha bombando.

            A gente sabia que o pai dele, gari, era um alcoólatra, e a mãe uma destemperada prostituta, não tinham esse cuidado com o menino, que foi crescendo com mais liberdade, sujeito aos riscos de sua auto defesa, com resistências de um gato do mato, rusticidade que me faltava na minha pré-adolescência, tanto que isso seria também tomado emprestado do meu amigo Domingos. Ele era um ano mais velho que a gente e não frequentava escola, sem nenhum alarde na época. Era bom em quase tudo, no estilingue, no jogo de gude, como artista de filme, no trapézio de cirquinho, ninguém melhor no esconde-esconde do que ele. Jogava sinuquinha (tinha um), com as bolinhas de gude  azuis de números colados de início, com quem aprendi a usar o taco como se fosse um canhoto.

Era um soldado pronto para a guerra e nisso distinguia-se de todos nós que não estávamos de prontidão. A não ser nas brincadeiras de mocinho e então matava-se com tiros de boca: - tchiééé. O baleado caía morto, conforme o combinado. Só que Davi, meio desaforado, era um bandido apanhado finalmente por Domingo, que fazia papel de um artista que dava ordem de prisão. Davi, se achando o máximo, preferiu ficar no alto do pé de madeira nova sem atentar para o  combinado.

A mão certeira de Dominguinhos numa flechada na testa e, para completar nosso espanto, Davi tombou no chão com sangramento, sem rebuliço algum, e sem saber agora como terminou a brincadeira.

Salvou-me, me livrou de morrer afogado na lagoa, quando fui tomar pé e ele percebeu que eu estava me afogando e no meu desespero me puxou pelo  cabelo, mas o que mais me marcou foi ele entrar no esquema do círculo de leitura de gibis sem saber ler, só para emprestar para nós as revistinhas por puro prazer. E eu adorava Cavaleiro Negro, sem saber que meu verdadeiro herói era ele,  Dominguinhos.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário