sábado, 18 de dezembro de 2021

Crônica da reinauguração da minha (in)dependência

 


     Resolvi fazer uma inauguração da reforma do meu escritório, no quintal de casa. Apareceram convidados. Digo apareceram porque, com filhos e netos morando em outra cidade, uma mulher que não fica em casa, não havia previsão certa de fãs. Assim, contentei-me com os acontecimentos naturais (lato sensu).

Sua excelência Negão, gato preto mais descolado do planeta, adentrou o recinto e ficou sobre uma almofada. Apareceu sua mãe Bruce (com sua mala de carregar filhotes), acompanhada do imão de Negão,  Beiija, que é branco, confundia-se com a mãe. Sem contar os novatos, Rildo e Rita, jovens gatos sensação do momento. Para pirraçar, Tiagão, um cachorro salsicha,  basset, posto para fora, mas soberano na sua arredia insignificância, com suas filhas cadelas de incestuoso relacionamento.

Nova tinta, novo piso, teto de gesso, estante com livros arrumados, mesa perto da janela lateral, que  achei de abrir, com direito ao  frescor da manhã de domingo e farfalhar de folhas; canteiro com terra fofa aguardando a grama, que  ainda não viera mas a esposa mandara mensagem para dizer que estaria a caminho.

Programado para breve o funcionamento de um serviço de café, espaço para uma máquina de preparo do nescafé e o chá mate leão como opção.

            Numa manhã assim, de calma, dava até para aparecer um vendedor de tapete, de nacionalidade portuguesa, como já ocorrera, e de novo falar admirado:

            - Lá para nós, daria para morar uma outra família.

Bom, não sabe ele que na verdade mora uma família. Acabo de criar minha (in)dependência habitacional. Ligo meus computadores e me conecto com o mundo. Viagem no tempo e no espaço. Escreverei minhas crônicas, meus poemas e lerei meus livros. De vez em guando minha mulher dará suas graças, como agora, nesta manhã, trazendo a grama que faltava. Saio na janela para ver e ergo o grito, de há muito guardado no peito, antes que a chuva faça sua saudação:

 - Independência ou morte!

sábado, 4 de dezembro de 2021

O café


1.

Aos cinqüenta e tantos anos,

depois de cachaçadas e raparigagens,

desci de meu cavalo alto.

 

2.

Arriei  malas

assentada poeira das imensas (in)certezas

de dias idos e vividos,

 

3.

para assoprar com você a xícara

do café de Barra da Estiva

tantas vezes apressadamente engolido

sem o mínimo de atenção devida.

 

sábado, 27 de novembro de 2021

Quando morre uma parte de mim

 



Meus companheiros de infância, queria todos vivos. Um mora aqui, outro acolá, mas vivos, que a hora que a gente quiser se reúne. Amigo de infância é mais que parente. É parte da gente, ainda que esteja distante, casou, ficou velho, imprestável, mas ainda palpita num último sopro de vida.

È uma falta, como parte. E nós sentimos. No final, o que enterram de nós é só um pouco do que restou. E há aqueles com quem nem chegamos a relacionar mas sabíamos da sua existência. Mesma coisa. Hoje me chega a notícia de que um AVC pegou Roberto de Preta desprevenido.

Para quem não sabe, ele se chamava Roberto Carlos, homenagem ao cantor, que fazia grande sucesso na época. Roberto não fizera sucesso nenhum, senão nas pequeninas coisas da sua vida diária. Trabalhador braçal, mas dado também a uma roda de pandeiro e violão. Era irmão de Diquinho, cabeleireiro dos bons, criado por Zefa Parteira; de Dalva, menina criada por Virgulina. Ambos filhos de uma Lavadeira, Preta Rosa Pé de Onça, que, na verdade, se chamava Carmelita Rosa de Jesus.  O pai dele era Zé Mocó.

Era meu companheiro de infância. Nunca brincamos juntos, nem ele me deu algum trabalho. Mas sabia de sua existência.

         Tchau, Roberto.

 

Candiba/BA, 27/11/2021

NeiGeorgePrado

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

FRUTA AMOITADA

 

 1.

Era tanto o desejo calado sobre a garota

que ela amadureceu meio moça

como fruta amoitada

descoberta no quintal.

 

2.

Viver de acordo com as estações do ano

se faz calor, ponha o short;

se faz frio, um agasalho com todos os aparatos

de um lord.

 

3.

A gente vai vencendo todas as intempéries

segura no ritmo

não descarrilamento da primavera

 

4.

que você foi um dia...

(flores se abrindo)

preservação de segredos

nossos.

16/11/21

sábado, 23 de outubro de 2021

A Revolução das Coisas

 


         O autor da matéria que aqui se pretende tratar seria, é claro, também de nome George, mas não o Orwell, esse é o da Revolução dos Bichos. Como já se disse, existe uma revolução, não muito silenciosa, mas revolução das coisas.

É, a coisa. Repararam numa impressora quando resolve encrencar e não imprime nem a pau? Pois bem, ensaio para uma revolução iminente. Quando você consegue ajustar, que acende a luzinha e espera esfregando as mãos para zás... ela imprime mas um bocado de descarrego. Tive uma impressora, dessas, rebeldes, que era um horror. Panfletária. Tinha que desligar a tomada da parede para parar com a panfletagem. Gastava meu papel.

Outra, bem inamovível, replicar uma dor à porta que você mesmo havia batido e pressionado seu dedo. Minha mulher. Ela perde um bom tempo com essas inutilidades: brigando com as coisas inamovíveis, como se por vingança resolvesse. Compreendi que nesse caso pode ser aplicada a lei de talião, “dente por dente”. Se a porta, ao ser movimentada, prendeu seu dedinho, você pode revidar com um “de com força” nela. Pronto, ficamos quites. Pois bem, chega um dia que o dia é das coisas ... coisas inamovíveis, que sejam.

         Além disso, existem os fantasmas. Como uma luz (lâmpada) da sala, desde há muita apagada, resolve, sem mais nem menos, ficar acesa e iluminar inesperadamente, quando você nem dava mais ousadia a ela, nem ”ligava”. A geladeira que só pegava no tombo. O automóvel. É, automóvel treiteiro. Na hora de sair da garagem sai sem fazer nenhum barulho, como um amante bom astral; ou faz um barulho infernal, como um amante desastrado, luz acesa, buzinaço, limpadores de para brisa funcionando.

         Um dia quando chegava em casa, um telefone era arremessado da janela da sala.  E, engraçado, foi ver o aparelho passar por mim tirando fino, como se dissesse:

         - Hoje a barra está pesada.

         Quando entrei, vi minha mulher no sofá:

         - Essas desgraças não funcionam direito!

        E era o terceiro aparelho que tinha sido instalado pela companhia.

        Mas a revolução dos bens inamovíveis ia chegar. Ah, se não. Até hoje a mulher não sabe porque eu liguei os aparelhos de quando cheguei em casa, entrei na cozinha e achei televisão ligada na sala, rádio ligado, então cuidei do restante e liguei também  o fogão e o liquidificador.

        

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

 

Dois bolos, duas medidas

 

Ia fazer um bolo para o meu aniversário de 60 anos, sem me falar nada. Estou vendo a labuta na cozinha. E sem saber de nada, como de costume, entrei a revirar a cozinha bisbilhotando coisa de comer.  Até que me veio a ordem expressa para não mexer no bolo sobre o fogão. Minha mulher e minha cunhada exclamaram ao mesmo tempo:

- Mexe nesse daí, que é de todo mundo; nesse daqui não.

Havia dois bolos: o de todo mundo mexer e outro só para ver.

    Não sabia dessa política em casa. Levei uns quarenta e tantos anos para descobrir. No final, acostumei-me com o bolo que “podia mexer” e fiquei atrás dele toda manhã. O outro tive notícia dele, nem quis olhar mais.

 

 

A bênção

O professor Valmir, cara legal, falou para dar benção ao padre Capuchinho. Passei direto sorrindo, tomando por brincadeira o que era uma ordem do diretor.

                           A secretária

 Não se sabe bem como nem por que marcamos um almoço no restaurante esquinado do posto de gasolina do trecho que vai  para rodoviária, num encontro de muita ousadia de nossa parte. Eu, um Dom Juan jacaré e ela a secretária de uma colega. Tomaríamos umas cervejas e depois se veria o resto. Mas não, nem chegamos a esquentar um prévio namoro, ela passou a engatar coisas profundas que implicavam mudanças radicais, tipo separação. Eu iria me separar? E aí me trouxe para a realidade. Pelo que entendi, eu tinha que tomar a decisão naquela hora, de assumir o compromisso com ela, como um grande amor.

Então foi o que faltava para o choro de desiludida. Aí tive que pedir menos e recuei diante de tanta luz para aquela nova vida a dois, que se iniciava.  Desmanchamos ali mesmo um possível embrecho, com pedidos de desculpas pela esfregação e amasso de reconhecimento, e desde então...

Ela chorou um bocado. A mesa foi posta, e ela, loirinha dos olhos verdes e marejados, nem quis comer nada, o que foi de me causar uma profunda sem graceza.

 

 

 

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Criancices

 1 -  Fazer negócio

Dei uma derradeira olhada nas lameirinhas dela, que era um colosso... de madeira, carroceria pintada de verde, todo transadinho, o caminhãozinho de brinquedo, que me encantava.

- Você não quer trocar numa casinha não... bacana, que fiz no quintal perto do  pé de coqueiro?

- E cadê? perguntava o menino filho do carpinteiro.

-  Lá em casa, mas você pode ir lá visitar a qualquer hora.

A casinha em questão era o que tinha de maior valor...  inestimável. Sem mais detalhes.

- Aí, fica ruim.

 - Então é quanto a mercedinha?

- Cr$ 500,00.

Dinheiro para gente grande! Tinha que entregar no quente Cr$ 250,00, que pai pegaria na gaveta da loja de tecidos, ali na praça do Mercado, ao modo de negócio:

- Quinhentos é muito alto. Tome, dê a ele esse dinheiro, que é uma boa entrada de negócio.

Assuntando nas lameirinhas da mercedinha, saí empurrando a novidade pela praça. E isso entre 1968 e 1969.

2 – Apreciando a beleza de BH-MG e contando vantagem:
- Eu tenho uma moto lá na Bahia.
- Verdade? Você roda com ela assim no asfalto? perguntou um menino de minha idade.
Tinha  acabado de tirar as rodinhas que ficavam de lado.
3 – Cozinhadinha
Acompanhava as cozinhadinhas que minha Irmã mais velha fazia. É que ela em vez de fazer de conta ela fazia de verdade o feijão, o arroz, cortadinhos, em panelas pequenas, com cheiro de fumaça. E na hora do presente, a gente dava uma boneca velha (dela mesma) embrulhada com papel bonito (aprendi com Ereca).
4 – Roupas de sair
Ao brincar de artista na casa de um colega, ele fantasiava com roupas de verdade (de sair);
5 – Segredo
Falou em lhe dar e que podia escolher o local escrevendo com o dedo indicador sobre a farinha de trigo polvilhada na maceira da Cozinha.
Escreveu: -  No “corredorzinho” (que havia lá entre a casa dela e o muro vizinho). 
- Na cama, seu bobo, acrescentou ela embaixo com sua letra bonita.
6 – Faltou força, Mocó
 Em mudança para cidade aprende logo só o que não presta. Mocó botava tanta força no taco ao Jogar sinuca, que a bola caía de tonta. Um dia ele precisava matar a bola sete. Deu com força, que a bola, após correr várias tabelas, veio pra o meio e parou perto da caçapa, rodopiando.
 - Diacho, faltou força!
7 – Tamanho GG
José, menino mais velho, Zé de Fausto, veterano na guerra (de meninos), tirou do bolso um nota amarelinha de mil cruzeiros e falou:

 - Vai lá na venda e compre tudo de bala de leite. Tome aqui esse chapéu e traga cheiinho.

 Podia comprar só uns duzentos, que já eram uma quantia grande e trazer o resto de troco.
 - Não. Comprar todinho.
No seu estilo: GG.
8 – Letra de formiga
 Letra de formiga. Parecia que em vez de usar pena, usava uma casca de arroz para escrever. Claudinha, até bonitinha, cabelo liso, de seda. Parecia economizar papel. A gente olhava com gosto  as anotações no seu caderno do assunto dado em sala  de aula. Era o contrário de um coleguinha de infância, hoje doutor Zander, que para escrever era um letra de elefante.
9 -  Um terreno rural
Deu a notícia ao sogro com entusiasmo, que comprara um fazendinha. A conversa que pairava era de um terreno de uns dois mil hectares. Eram dois hectares apenas, que produziu dois sacos de feijão.
10 – Passar no vestibular
Vestibular concorrendo para o curso de Letras (considerado sem muita concorrência), a gente ia olhar o resultado na parede e começava de baixo para cima, até que correu o dedo por maior e não achou. Ia embora, desencantado da vida, até que...
 -  Fez para que curso, Nei?
-  Letras Vernáculas.
- Corra aqui. Meus Parabéns, Nei. 2º lugar. Português 100%; Redação: 97%.
11 – Duas meninas e um careta
Era ligadona em mim. Escrevia meu nome na altura da coxa. Que menino não ia querer? Eu. Era areia demais pro meu caminhão. A gente passava na frente da casa dela para ir jogar bola, quando algum menino mais abelhudo olhava e gritava meu nome:
  - Corra aqui, cara, venha ver seu nome.
 Ficava envergonhado e caia fora. Pegava depois as “reportagens” dos colegas: Estava escrito na coxa, fora a fora, Nei George.

 Era bonita e tiradinha. No ensaio de quadrilha ficava amuada, enquanto não me colocavam como seu parceiro. 

 Fazíamos roupas do mesmo pano. Trocávamos presentes. Mas era areia demais para o meu caminhãozinho. Achava. Quando foi um dia o irmão veio me trazer recado de namoro com ela e eu disse que preferia a mais nova, que era menos interessante e ninguém cobiçava.

 

 


terça-feira, 13 de julho de 2021

Uma Águia pousa em meu bairro

 


 

Era um carro de passeio como qualquer outro. Não, não era como qualquer outro. Tinha desenhado no teto uma enorme bandeira dos Estados Unidos. De tanto olhar esse detalhe, que encobria o principal, descobri que não era pintura mas um plasticozão adesivado no teto. Que de tanto eu olhar como combatente, nas minhas caminhadas matinais, iniciava-se uma orelha no descolamento da pontinha. Esse combate é homenagem que faço a um amigo que vibrava quando tombava um americano em filmes de índios:

- Tome, filho da puta! dizia entre os dentes.

Havia poucas casas quando fui morar no bairro. De repente era aquilo de construções com tentativa de elegância, carros na porta rente ao meio fio. Esse ficava metade na calçada, metade na rua, por isso que no lusco fusco eu visualizava a bandeira como uma imensa águia, que vinha rapinar em nosso quintal: Petrobrás, Amazõnia e Base de Alcântara.

Não era Copa do Mundo nem nada e esse automóvelzinho todo dia ali estacionado com sentimentos macabros. Decerto. A pessoa deve achar o máximo bandeira dos Estados Unidos no seu carro todo transado, com som  extravagante, calculo.

- .. e os dentes careados, diria o meu amigo numa brisa de lembrança. - ... da filha chamada Merillyn, acrecentaria.

Lembrei-me dos anos 70, quando o professor de Educação Moral e Cívica, no calor do ufanismo, passou como trabalho desenhar o escudo nacional numa cartolina. Apesar de haver caprichado, coisa mais linda do mundo, não recebi avaliação como os demais. Ele me chamou para o canto e pediu que refizesse, quisesse uma avaliação.

E eu queria igual ao do colega, em que ele escreveu palavra bonita: razoável.

Agora temos que de forma escancarada agüentar a idiotice em pleno sol de meio dia. Também não mais vesti camisa de seleção brasileira.

 Não me arrependo de mudar meu roteiro em minhas caminhadas matinais. Comecei a passar por outra rua e parei de ficar vendo aquela águia, sem poder fazer nada contra senão torcer para os índios quando derrubavam mais um americano nos filmes. No tempo em que achava bacana o fato de meu amigo ter parado de tomar cocacola.

 

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Sustentável amor

 

 

 

 1.

Por nossas limitações,

delimitamos imensidão do mundo em busca de um habitat.

Quantas coisas insignificantes deixamos vida afora

como um simples escrito de infância,

asas bonitas de erma borboleta

que bailava além das cercas

de jardim.

2.

Nessa tentativa de válida equivalência

nunca nos afastamos do trivial da história.

3.

Retire fora as estultices circunstanciais

que o estorvo se revela o mesmo

do que é analogicamente clássico.

4.

escrevo para substituir a foto que esqueci de clicar no momento exato de poesia

que a estação aparece senão passa

e pacifica

todas as suas cores,

exalados odores.

5.

Não cuidei simplesmente da fruta

que me haveria tanto de apetecer por princípio de chama,

é que desde o caroço colho o amor

que se fez na sua perseverança diária,

segredo que guardo

que gruda

e nunca sai

de mim.

 

Nei George Prado

26.05.2021


segunda-feira, 21 de junho de 2021

A flauta doce

 

para Vasco e Patrícia

 

Passeava montada em um cavalo. Fazenda do avô. Não se lembra agora da cor do cavalo nem de como era a vegetação, mas do short dela, nos seus vinte e poucos anos, do cabelo castanho ao enleio do vento e, ela levemente chicoteando o animal, do entrecruzar de olhos, quando ergueu-se para além do que se discutia. Ela era uma das herdeiras, na vaga do pai, falecido, que ali comparecia para a partilha do rebanho de gado deixado pelo velho avô. Gado que não acabava mais. Nem aí, diria depois, um dos tios, entendido, cuidaria de sua parte.

Passeava com estilo de menina de cidade que aparece no campo. Bom, viera ali como advogado de uma turma de herdeiros para o embate com outro advogado da turma dissidente, que a família não tinha assim uma união, e não para apreciar material estranho ao processo. Mas o clique fora feito.

Cabeça de gado para lá e para cá, para um e outro herdeiro, foi realizada a partilha, até que se deu por encerrada essa etapa, porque com relação a bem imóvel, a fazenda, isto já estaria nos autos, conforme o entendimento firmado. Hora de ir embora.

Ao ligar o carro, guardava consigo a imagem dela no cavalo de que nem a cor se lembrava, num jeans em destaque de pernas bronzeadas, e aquela jovialidade que parecia distante da sua esfera afetiva por impossibilidade jurídica da pretensão, até que, de súbito, apareceu-lhe à porta uma voz de flauta doce:

 -  Vai pra cidade? Pode me dar uma carona?

Claro. Com um negócio daquele, iria até para... - mandaria depois explicações às famílias...

Deveria ser, por força de oficio, coisa natural. Estaria apenas dando uma carona. Mas e as pernas?

 - Você não participou da partilha do gado. Seu tio João, não foi?

 - É. Não entendo muito disso.

As pernas. Os cabelos. A jovialidade. As pernas. As pernas. Não tinha como não olhar.

 - Solteira.

- Solteira, mas tenho um filho que tá com mãe. Tou sozinha em casa. Cê me deixa lá? É logo ali. Vou te ensinar.

Era caminho.

 - Aqui.

 Parou.

 - Entre. Pego uma cervejinha no boteco ao lado.

 As pernas. Os cabelos. A jovialidade. Uma cervejinha. Resolveu.

Casinha modesta. Sentou-se. E ela chegou com a cervejinha destampada apanhada do boteco ao lado, um copo e ainda ligou a tevê:

 - Vou tomar um banho.

Foi-se. E ele na cerveja e tevê. Ela passando enrolada na toalha para o tal banho. De volta para se aprontar no quarto, porta aberta e com espelho de onde ele via as pernas sem o short. Que programa se passava na tevê nem se lembrava, em que se encontrava a quantidade do líquido na garrafa nem se lembrava. 

O espelho do quarto dela lhe mostrava um monumento e ele então tomou uma atitude.

- Demorou! Pensei que você não viesse mais não – disse  a flauta doce.


quarta-feira, 16 de junho de 2021

Para lá, para cá


Naquela casa, daquela rua, de manhãs claras e resto do dia a caminho curto da noite, moravam umas garotas. Ponto, e sobre esse ponto os suspiros mais profundos de tesão, encanto juvenil, acerto e ajustes de almas gêmeas. Quem saberia? Não existiam em crua realidade, mas eram quase palpáveis e bonitas até dizer “chega!”. E a gente carregava para onde bem quisesse trocando segredos de menino e caçando ousadia com elas.

“A do meio não está de namoro com Tadeu?”

 “A que tem uma covinha no rosto quando ri?” Qual, Tadeu não tem essa força toda não; acho que é um cara de fora."

Mas com a nova professora, que se sentava com descuidada elegância e fumava carlton, sorridente, pernas cruzadas,  com estilo, foi diferente o papo.  Adão até inventou uns lances interessantes dela. A notícia que circulava era a de que ela andava nua dentro de casa.

“Pelada?”

“Nua como assim, Adão? Só de calcinha?

 "Dizem que Basílio trabalhando de pedreiro pro vizinho dos fundos  é que tivera  a sorte de ver”- disse Adão.

Iluminação ou magia? Basílio deve ter tido uma iluminação. Ficamos todos com inveja de Basílio. Quando ele passava para o trabalho a gente olhava com admiração. Como que pronto para pedir autógrafo. Basílio, afinal, tinha visto a professora, pernas e peitos, mais os cabelos louros de entrada.

Um dia ela esvaziou uma carteira de carlton e a arremeçou no chão, corremos eu e Rock para pegar, quando saiu dos lábios dela uma rispidez de autoridade:

“Ei, é de Gustavinho!”

E Rock, mais atirado, porém respeitoso com aquela estampa de professora,  nem ousou e deixou para mim, que guardaria como um espécie de...  fetiche.

Depois, ficava imaginando a professora sem o vestido curto de suaves bolinhas se movimentando dentro de casa.  Para lá, para cá. Para lá, para cá.

Sem Basílio por perto, claro.

  


sexta-feira, 28 de maio de 2021

O quarto de visita

 


 

Ninguém ali entrava. A não ser para limpeza periódica, quando botavam coisas para fora no processo de varredura e lavagem do quarto. Peças que ainda nem tiveram uso, quanto mais! Dizem que era para a tia, que havia casado recentemente, quando aparecia em dia de missa. Pelo menos uma vez, numa manhã, o casal foi visto se despedindo por lá.

- Saem, meninos! Vão brincar lá adiante. Aqui dentro não. Retirem-se daí, era uma das encarregadas, na labuta, com balde de água e vassouras no esfregão, no preparo para encerar o piso numa segunda demão.

Deixavam no capricho. Tanto que, segundo se dizia, daria para comer no chão, e depois lacrava, como de costume.

- É o  quarto de visita, dizia-se.

Que havia de tão interessante que não podia ser do nosso bico? Visita nenhuma aparecia por ali. E quando aparecia, a pessoa ficava era no quarto dos meninos ou no da empregada, conforme a conveniência. O quarto de visitas entregue às moscas, aguardando, aguardando, quem nunca chegava. Aquilo ia me encucando de tal maneira que uma vez em comentário com minha irmã, deixei escapar:

- Um desperdício!

- É, meu filho, e se num belo dia aparecer? Vai ser feio pra família, rebateu minha irmã mais velha, preocupada.     

Lembrou que nossa família prezava muito o nome, os valores de um bom anfitrião. Tudo tinha reservas de prevenção para o inusitado, o extraordinário. O jogo de louças na cozinha, o de toalhas e outro de cama no quarto..

- ... Do elefante branco, pensei mais ou menos alto.

-  Isso é pra quando chegar uma visita.

Lá uma dia minha irmã me chamou num canto e perguntou se conhecia o quarto de visita  da casa de dona Nida, a vizinha. Que ela viu aberto, uns móveis novinhos ainda envolvidos em plásticos, papelões e faxinas, essas coisas do novo, só que velho de não uso.

- Não, respondi.

Mas o que ninguém me explicava era aquele zelo pelo quarto. Um quarto que, no final, dele não se fazia uso – uma espécie de  recanto sagrado. Até o dia em que a gente brincava de esconde-esconde e Adelaide, também nos seus onze anos, me empurrou para dentro, apressada e ofegante:

- Aqui ninguém vai nos achar, bobo!

Como de fato. Só que disse assim e, numa fala de ousadia, fechou a pesada porta e pelejou comigo.

 Ela vestia um shortinho curto de cor beje, que não deu trabalho nenhum para tirar.

 

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Covid-19 leva Dr. Ginaldo Cerqueira Gomes

 


                  

         1969,  início de ano letivo. Da janela do prédio velho do Grupo Escolar Antônio Batista um menino, de uns seis anos de idade, espremido entre a professora e outros coleguinhas, nos saltos da curiosidade, assistia a cena que ficaria inserido nos anais da história de fundação do Ginásio D. José Pedro Costa, no município de Candiba, tendo à frente o prefeito Joaquim Neves da Silva, alguns vereadores, e um moço de roupa branca, nos seus vinte e oito anos, que chegava da capital para ser médico e o novo diretor do Ginásio.

-  Dr. Ginaldo  Cerqueira Gomes, como ele fazia questão de corrigir as pessoas simples com quem relacionava.

E o aluno de 6 anos de idade, com perdão da palavra, era este pobre cronista. Sobre esses dois é que vamos deixar aqui algumas gostas de tinta de vida.

Revolucionou os usos e costumes de um povo. Na linguagem, introduziu novos vocábulos e expressões de uso comum. Um sucesso nas festividades cívicas e tradicionais, como terno de reis por exemplo. O desfile do 7 de setembro de 1970 foi o melhor realizado. O carnaval de 70, com concurso de Rainha, também foi uma boa sacada

Estimulou o esporte com o Torneio de Futebol Dr. Ginaldo Cerqueira Gomes, cujo campeão (1974) foi o time de Zinho de Pedro Rocha. Na arte culinária introduziu o mungunzá e o vatapá.

E impôs respeito numa sociedade de gente atrasada, analfabeta mas direita e trabalhadora. Logo se espalhou sua fama na prática de médico generalista. Respeitado como pessoa que ajudava os necessitados. Inclusive, muitos que se conduziram bem na vida.

Ficava provisoriamente na casa de seu Badinho da Farmácia Cláudia, até passar para sua casa, arrumada a gosto,.

Havia os bailes da juventude na casa do médico. Eu morava perto e costumava freqüentar esses movimentos aos domingos. Os discos das músicas mais  badaladas na ocasião, uma discoteca! Eu tinha minhas parceiras nas danças. Para lá convergiam  meninas e  meninos da cidade, geralmente estudantes do ginásio.

 E ele fazia exames médicos para sua clientela da zona rural que lhe trazia passarinhos. A área do quintal, em formato de  “L”, era enfeitada com gaiolas. Com todo tipo de pássaro, formava-se uma orquestra natural. E para dar comida aos bichinhos e limpar as gaiolas? Serviço que acabou arranjando para Bigu, um seu vizinho, que, imitador que era, passou a imitá-lo no falar:

- Ô Bigu, você já deu comida aos pássaros?

Marcou por demais a nossa vida. Depois, Candiba ficou pequena para o seu amor ao ser humano e teve que ir para cidade vizinha de Guanambi, onde encontrou espaço e terreno fértil para expansão desse seu amor, caridoso que era.

Essa página de Guanambi, onde se destacou como médico e pessoa caridosa, que fique para outra ocasião. Eu quis apenas aproveitar e registrar, como se fosse para sair num importante retrato, aquele menino de seis anos de idade que presenciou  a sua entrada na vida nossa, naqueles anos  de 1969, então em pleno vigor para a vida de salvar vidas que resolveu abraçar. Para isso estará esperando-o, mais uma vez, a figura humana de seu Badinho da Famácia Cláudia. Peço uma salva de palmas para Dr. Ginaldo Cerqueira Gomes e acrescento mais: valeu, tio!

 

sexta-feira, 9 de abril de 2021

NA GODELA


Estranhava as cozinhadinhas que minha Irmã mais velha fazia, nas brincadeiras de bonecas com as amigas. Em vez de fazer de conta ela fazia de verdade. Cozinhava feijão, arroz e cortadinhos de mamão verde, em panelas pequenas, às vezes, por algum descuido mas sem reclamação, com cheiro de fumaça, minha preferência. Todo mundo sabe como era. Quem comia mesmo eram as donas das bonecas e convidados, como eu no caso, que ficava só ali, na godela.

Olhe que eu me viciei. Era uma comidinha sem fartura, que depois, para valer, vinha o almoço da casa. Mas não dispensava. Interrompia a brincadeira com os carrinhos de plástico para uma pausa: convidado para uma cozinhadinha. Quando era de minha irmã Nora..., era de tirar o chapéu. Era lorde, ou chique, como se dizia então.

Tinha um caixote de carrinhos de plásticos. Muito orgulho:

- Pega esse (que tinha as rodinhas de tampas de borrachas de frascos de injeção), é macio, uma beleza, e entregava o caminhãozinho à criancinha mais pobre que a gente, sempre de bico, que ficava só apreciando e nunca acontecia de roubar.

E muitos outros, que apareciam, pegavam um carrinho para brincar. No fim da tarde, hora de tomar banho, havia um garoto encarregado de receber os carros e dar baixa nos empréstimos.

Um dia era aniversário de uma boneca, minha irmã mandou distribuir o bolo mediante apresentação de um presente. Eu, no faz de conta, comi um pedaço de bolo de verdade, mas morri de rir quando minha irmã lamentou o presente entregue à Ereca, empregado de mãe, que saiu correndo com o seu pedaço de bolo:

- Por que, Nora? Tão bonitinho!  - eu disse a ela..

 Acontece que o sacana tinha enrolado num papel não um presente novo mas uma ursinho já velho e esquecido,  apanhado nos pertences dela.

Hoje considero minha irmã, ex-nuticionista do Hospital Roberto Santos, bom que se diga, uma boa cozinheira.

- O melhor arroz fumacento que já comi. Tem gosto de infância, Nora.