Se alguém me perguntasse como
estava dizia que estava bem, como resposta normal a esse tipo de pergunta,
maneira fácil de encobrir um problema. A verdade, porém, é que, grosso modo, a
considerar meu caso de per si, não
podia estar a dizer-me normal. Também não podia dar-me como meio morto, como
forma de queimar esperança e ter que gastar maior tempo com explicações de
natureza espiritual ou científica. Porque, afinal, sem querer agarrar-me a
ideia de entrincheirar-me como vítima digno de pena e permanecer nessa minha morte
acabou, segundo alguns mais próximos, por ser-me, ao contrário, um presente. Certo privilegio de espírito?
Onde estava a minha destreza
para as coisas? Meu ímpeto, meu rompante, minha indignação? Meu jeito de cavalo
solto, num levanta e sai, pronto para qualquer parada? Como se tivesse que
começar a escrever mas com a mão esquerda mal acostumada. Na verdade, tudo
estava em contramão, enviesado, de meio dia para a tarde.
Os dedos, quanta importância
dos dedos para mim, exímio datilógrafo, para o gasto, agora na doce suavidade
de um teclado. O som tirado de um violão descolado, sempre comigo. Os dedos
bonitos já não obedeciam com presteza a ordem do cérebro. Na ânsia de ver de
pronto o texto, como se distribuía antigamente, por anos, saindo agora de jeito
truncado. Aí tinha que reiniciar (verbo muito em uso) e tome-lhe interrupção
que irritava quem estava acostumado com aquela perfeição de texto. De vez em
quando, vociferava com razão:
- Vou ter que começar de novo
com o asdfg, asdfg, asdfg, é?
Inventei de manuscrever e
descobri que não sabia, desaprendera completamente. Outro o estilo, que não
tinha paciência de colocar em prática. Era no antigo, insistia, e aí errava, atrasava, acabava interrompendo, teclando uma espécie de “pause”.
- Dr. Luiz e esposa, seus
primos, vieram para uma visita.
Fazer o quê? Tinha agora que
desempenhar o papel de enfermo que recebe visitas. Ficamos um bom tempo até que
talvez por meu comportamento incompatível com a de um enfermo tivesse levado o
casal forçosamente a se despedir cedo.
- Estou frequentando umas
sessões de fisioterapia, por ora.
Aí falou-se muito da
importância desse ramo da medicina, ao cabo do que ficaram pescando coisas no ar, até que resolvi
me abrir:
- Desculpe, mas eu não sei
fazer esse papel de doente não. Não levo jeito. Só faltei dizer “ô mulher, me acode aqui!”
Após agradecimento de praxe
pela visita, dirigi-me à esposa, sempre na cola para as emergências e “panos
quentes”:
- Agora fale que estou
proibido de receber visitas. Não sei fazer esse papel.
- Bicho do mato! fui chamado
pela mulher, que se irritara com o comportamento do doente. – Você devia era dar graças a Deus. Mal-agradecido!
completava finalmente a companheira.
- Veja se para com essa ideia
de falar que está morto, Deus castiga.
- Prefiro a primeira, que eu
devia dar graças a Deus, porque se quer uma explicação para minha morte eu lhe
dou agora. Na vida a gente tem que se preocupar com a saúde física, mental e
espiritual, as três, não é? Bem, aí a
seguinte ponderação: sou de longevidade, considerando o grupo familiar pelos
dois lados. Portanto tenho maior probabilidade de desencarnar em idade
avançada, sem ter que pagar, espero, por faltas em vida passada mas por abusos
no exercício de meu livre arbítrio, que foi o período de extravagância com uso
do álcool, considerado suicídio, de forma que o AVC me deixou assim meio torto
para o resto de vida. Porque, segundo Kardec, em seu livro de minha cabeceira, A GÊNESE, “As doenças, as enfermidades, a
morte, que daí podem resultar, provêm da sua imprevidência, não de Deus”.
- Não sinto mais o paladar cem
por cento, prosseguia eu: não consigo correr, com arrancada, nem me levantar do
chão sem uma mão de apoio, concluía meu chororô.
- Lembrei que outro dia caí fazendo
caminhada no entorno da Lagoa do Mocambo. Bom que uma moça, que vinha passando,
me deu a mão. Mas outro dia, cinco horas
da manhã, me apertei e aproveitei que ainda estava escuro e, seguro no poste,
fiz na rua perto de um terreno baldio. Que tristeza ficar olhando, procurando
um canto. De oura feita, quis me virar para reerguer, com dificuldade tamanha,
escondido num resto de construção do largo da lagoa, em tempo de ser flagrado.
A partir desse fato mudei de atividade física para passeio de bicicleta em vez
de caminhada e fico enxergando todos com a estampada ideia de fim de mundo no
rosto.
- Fim de mundo?! Então você me
vê velha, não gosta mais de mim. É isso, estou feia. Vá procurar outra.
- Não. Calma. Não é bem assim.
Você tem efeito contrário: te vejo ainda menina. É com relação as outras
pessoas: “Quem já foi Naninha?” é assim que olho e logo me pergunto dentro de
mim. Tia Mena, olhei pra ela outro dia, ela sorrindo, e eu sofrendo dentro de
mim.
- Por quê?
- Está ficando velha, eu vi a
velhice em ação, se acentuando nela... Ia dizer “é uma pena”, mas é a vida. Temos
que conviver com essa fase e encontrar outros confortos. Já você, você é uma
coisa minha que eu vejo da forma que eu quero, entende? Inseparável. Una. Meu
ego prevalece sobre qualquer outro entendimento. Inda te vejo de uniforme bem
engomado, chupando um picolé de groselha, a caminho do portão do colégio, num
início de tarde. Impregnada de primavera. Mas e os
outros? abrem-se as cortinas para tanta luz de realidade que dá para você apanhar
um cisco no chão, uma agulha no palheiro. Compreendeu?
Ela pareceu engolir em seco:
- Mas você não pode ter esse
comportamento...
-
Meu comportamento pode parecer estranho, mas não de um acabrunhado.
Compreendeu? Quero o equilíbrio espiritual, respeito e cuidado com o corpo
físico, que eu não tinha. Longe
de mim acompanhar essa sombra. Devemos procurar cumprir essa nossa vida
buscando a luz. O que eu quero dizer é que com essa minha conduta, me declaro
ciente de minha conduta anterior. Meu princípio vital sofreu um abalo. Daí essa
minha visão. A começar, essa destreza que já não tenho nos dedos da mão, encerrei
fazendo movimento com os dedos.