sábado, 26 de agosto de 2023

A namoradinha

 


 

Faltava-lhe a namoradinha no desenho de vida de pequeno burguês,  que se projetava então à revelia, conforme imaginavam dele. Após criar o modesto costume de frequentar noites e festas numa rua de residências estudantis, caíra-lhe no costume bom um “embrecho” com uma garota, que virou namoro, de ter começo, meio e... fim. Dessas de presilha ou diadema no cabelo. Sobre o que deveria dizer alguma coisa. Mas o quê mesmo? Fazia quase meio século.

O que se riscara no painel desse tempo, no entanto, haveria de permanecer, como o abraço envolvente que dera em Glória, protegendo-se da chuva, sob a marquise, na Avenida Joana Angélica, numa fresca manhã de 1979. Um quadro de um casual encontro haveria de permanecer na sua parede de lembranças, ele voltando da educação física e ela, de sombrinha, indo para o colégio. Dois jovenzinhos num dia de chuva, que aproveitavam para curtir abraçadinhos, aos beijos e amasso. Silêncio. Barulho normal de rua, tráfego e tiritantes chuviscos no asfalto. Momento que fora concebido pelos deuses, sem ninguém saber. Ela nos seus quinze anos, ele nos seus dezessete. Simples assim, como tudo naquela época, com ajustadas lentes.

O que levara a perder aquela rotina? Andava bem no colégio e vinha normal na relação com Glória. Tinha descanso, conforto, rolé, descoberta, dança e toda alegria de uma manhã que se abria no cotidiano.

- Venha, vai ser legal!

Era uma festinha, em que depois de um papo com os novos amigos, regado a batida de maracujá, amendoim e demais itens da família do suco maguary-kibom, dançavam um bocado e iam os dois para uns amassos de despedida. Glória abria a bolsinha e retirava uns caramelos, queimados, chicletes, o que fosse para passar o tempo mudando de hálito, posição ou assunto.

Ah! Queria pintar outro quadro sobre o “finale”,  mas o que vinha na mente era o fatídico dia dos namorados, do presente que recebera. Agora ele se sacudia. Rompera-se a normalidade.

E tão perturbado que ficou perdido com as palavras dos que se diziam novos amigos. Disseram da vibração dela, quando vira os rapazes da UNE no congresso realizado no Centro de Convenções Salvador, na Bahia, após 15 anos de ditadura.

“Que lindo!” Glória teria gritado no entusiasmo, sem saber que ela estaria sendo filmada pelas lentes da mistura de inveja e donzelice dos novos amigos, firmes na solidariedade de macho. E ele, de igual origem, permitindo aflorar um machismo que guardava imberbe dentro de si.

- Ora, Glória não tem namorado?

Preferiu então dar por acabado o relacionamento, malgrado os panos quentes das amiguinhas de Glória, à porta de sua casa. Melhor que procurasse mascar esse chiclete, como fazia ela nessas ocasiões. Deixaram então de presente uma caneta cor de ouro com gravação Edu & Glória, em 12/06/79.

Depois, quantos vezes não chorara nas noites perdidas no escuro do quarto sem a menina da presilha!

 

 

 



sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Naquelas férias de 80

 


 Naquelas férias de 1980, que Edu se iniciava como rapaz num Chevette seminovo, que o pai recebera em negócios, tornava-se imprescindível uma garota para que se completasse o quadro: filho de família classe média que prestava vestibular na Capital,

A prima vinha de apresentar a vizinha, cabelos de cachinhos pretos, cara de imberbe rebeldia:

- O nome dela é Rose. Vocês já podem conversar. Se forem dar umas voltinhas – relanceou os olhos pelo carrinho marrom estacionado na sombra e arrematou: - é só não irem pra longe.

Edu olhou, envergonhado, diante da garota, que se pretendia no padrão daquele  princípio de década, ainda com muita água por passar debaixo da ponte.

Ciro apareceu para pedir a segunda do seu cigarro Minister, que Edu puxava com classe. Ficou por ali inquieto até lhe pedir a chave do Chevette para um passeio rápido.  Era para um amigo, ele ficaria desfalcado mas só por um pouquinho.

- Não demore não, Ciro – disse, num esboço de autodefesa.            

- Você não vai sair agora, está com Rose aqui no “Embalus”, é o tempo de eu dar um giro no carro.

Bem na hora que rolava Bob Marley, o que levava um grupo de estudantes, da mesma barca de Edu, a bater de leve na mesa, tentando reproduzir o ritmo do reggae:

NO WOMAM, NO CRY

NO WOMAN, NO CRY

 - Passou nas duas: Federal e Católica – conversava alguém de caipirinha à mão apontando um careca no meio da rapaziada.

Bem que poderia ser essa pessoa, que brincava com sorriso escancarado e cercado de admiração pelo seu cabelo raspado, símbolo do sucesso no vestibular, mas não dera, conforme explicação que prestava a Rose;

- No próximo, vou focar melhor – disse ao ouvido dela, que se encolhera.

A inércia de Rose, com seu rostinho branco quase encoberto pelos cachinhos pretos, era concordância e não desprezo.  Era uma namoradeira em potencial, que se ele soltasse o braço que a envolvia, ela arrumava substitutos a um passo adiante. Por isso, trazia-a no grude entre beijinhos e garros. Volta e meia, recebia cumprimento de uma coleguinha que, passando por ali, notava um contentamento aflorado por aquele encaixe:

- Boa, Rose.

Mas quando julgava caminhar nas águas calmas das possibilidades que oferecia uma paquera com Rose, eis que de cá ele viu um moço encarando-o na mesa.  E isso o fazia afastar-se de Rose, que mais uma vez se encolhera e ele tinha que trazê-la mais ao peito.

- É meu irmão, ele é um louco quando bebe; ele me bate – Rose começava a tremer com um choro miúdo e entrecortado.

Não ia tomar satisfação, como pedia a ocasião. Lembrou que quando era criança tinha como desculpa que por estar de banho tomado não iria para a briga. Então, Edu preferiu apostar na autoridade que a prima poderia exercer sobre o rapaz.

- Calma, Rose, vamos esperar minha prima chegar, ela que vai resolver essa parada.

E resolveu, porque chegou a prima e foi até lá falar um bocado de coisas com o mal encarado do irmão bêbado, que, pelo menos, para não estragar de todo o verão, deixou o barzinho sem alardes.

Nesse dia, feliz por ter conhecido Rose, o duro foi ver Ciro chegar com o Chevette já noite andada.