sábado, 30 de novembro de 2013

A “frase”



Quando chegou ao escritório e encontrou cobradores na antessala – o que ultimamente vinha se tornando rotina -, cartas de cobrança sobre a escrivaninha, várias delas exigindo esclarecimento sobre o não pagamento na data de vencimento de boletos bancários, isto no prazo tal, sob pena de protesto de títulos, teve que se sacudir como que em busca de uma saída emergencial. Primeiro os da sala de espera. Foi lá e tascou:

- E aí, pessoal?

Cobradores a postos, empunhando notas, meio em tumulto. Teve que bancar uma de político, coisa assim, e foi aqui e acolá, abraçando um e outro e dizendo qualquer palavra do tipo “amanhã  pela tarde”, “você aí, já conversei lá, vai ficar mesmo pra outra segunda-feira”, “e você, rapaz, disse que vinha ontem não veio, esperei, esperei, até que acabei pagando outras coisas de mais urgências, mas é assim mesmo, não é? amanhã pode”,  você aí, coisa pequena”, “o seu não, vai ficar mesmo pra semana, já até liguei ontem avisando”, “hoje em dia, sabe como é que é”, e assim, de roldão, foi despachando todo mundo, até que a sala ficou praticamente vazia: ele, a secretária e o silêncio.

O silêncio vírgula, porque em sua mesa as palavras grafadas naquelas correspondências ali amontoadas eram cantigas a invadir desde a manhã até o fim da tarde.

Nem precisava de enfiar a espátula para abri-las e conhecer o conteúdo delas. Pensando bem, certas palavras grafadas queimam mais que ferro em brasa, pior que a linguagem oral daqueles cobradores. E tudo cheio daquelas ameaças de praxe, do tipo “protesto”, “nome na SERASA”, “nome no SPC”, “nome no CADIN”, essas modernidades.

Mas disso até que pôde se safar quando se lembrou do que dissera um amigo:
- Moço, meu nome pode ir para a SERASA, SPC, CADIN, pode ir para a casa dos infernos, até aí tudo bem. Eu só não quero mesmo que meu nome caia na boca de um Roberto de Monte Alto ou de um Capixaba na praça dos táxis, porque aí eu tou mesmo lascado.

Bem, mas ali estava diante dele uma dessas correspondências. Ele a abriu, leu o que já sabia de cor – que não consta ter sido pago o boleto bancário na data de vencimento.

Foi quando, num estalo, teve que buscar nos recônditos da memória a figura de Dedé de Gô, dono do Café Botafoguense em Candiba. De um Botafogo bom time, com jogadores como Jairzinho, Paulo César Caju, Gérson e companhia limitada, e que depois passou a apanhar mais que rapariga de soldado.

- Pôxa, Dedé, o que está acontecendo com o seu Botafogo?

E Dedé, professoral em termos de Botafogo, sem perder a classe, tamborilava com os dedos no balcão do Café Botafoguense, à vista de muitos interessados, e respondia:

- É a “frase” do time, né, meu filho? É a “frase”. Fazer o quê?

Pronto. É a ‘frase”.  Estava ali o  que procurava. Era uma luz. E a resposta para toda essa situação, o velho Dedé, que nunca estudou Sociologia, Filosofia, Psicologia nem muito menos gramática, lhe dava para responder aquelas correspondências.

Assim é que, em resposta a uma delas, chamou a secretária e mandou que, adaptando aqui e acolá, fosse respondendo as cartas nos seguintes termos:

Prezado Senhor:
Em resposta a correspondência tal, em que V. Senhoria solicita esclarecimento pelo não pagamento na data de vencimento do débito tal, venho dizer o seguinte: é  “a  frase”.

Aos meus amigos, leitores e credores: “no começo era o verbo; agora é a “frase”.


terça-feira, 26 de novembro de 2013

A Chegada de ACM ao Inferno





1.
Deu-se  na televisão
Rádio, internet e jornal
Notícia já esperada
Da morte de um imortal
No ramo da política
Do cenário  nacional

2.
De prenome Antônio Carlos
Magalhães de sobrenome
Conhecido por ACM
Aqui falo desse homem
E se falo é com cuidado
Pois que as palavras somem

3.
Baiano de nascimento
Nasceu ele em Salvador
Terra de todos os santos
Em que foi governador
Deputado Estadual
Foi por onde começou


4.
Médico por formação
Foi redator de jornal
Por duas oportunidades
Chegou à Câmara Federal
E eis que nos anos setenta
Foi Prefeito da Capital


5.
Esse homem, minha gente
Foi herói, foi repressor
Conviveu com JK
Democrata e construtor
De Brasília, a Capital
Até que a coisa mudou

6.
Mas não  mudou o retrato
Do presidente mineiro
Que ficou no gabinete
No seu  mandato inteiro
Quando veio a Ditadura
Militar como o certeiro

7.
Daí pra governador
Da Bahia foi um pulo
Seu Estado governou
E com jeito muito duro
Nos tempos da ditadura
Em que se pichava muro

8.
Diz ter sido um progressista
Usou cuia, usou chicote
Pôs a polícia nas ruas
Estudante dançou xote
Se progresso foi dum lado
Do outro se deu calote

  
9.
Cachorro naquela época
Tinha trabalho dobrado
Pra pegar de estudante
A professor revoltado
Se hoje conto esta história
É que sou cabra retado

10.
Tempos de repressão
Se viviam nessa época
ACM mão de ferro
Não descansava a munheca
Batia sem dó nem pena
Sufocava “quebra-quebra”

11.
Mas também por outro lado
No encontro da União
Nacional dos Estudantes
Sem muita confusão
Consentiu realizasse
No Centro de Convenção

12.
Esse homem brigou tanto
E até com brigadeiro
No final da Ditadura
Pra saltar noutro terreiro
Enterrando um regime
Em busca do alvissareiro

  
13.
E no que perdeu na Bahia
Pra Waldir e Nilo Coelho
Ganhou foi um Ministério
Pra não dobrar o joelho
E na eleição seguinte
Retomar seu aparelho

  
14.
Pra prefeito em Guanambi
Nilo Coelho foi e venceu
Nas palavras de ACM
Pra prefeito ele nasceu
Numa crítica suave
Pra limitar quem não é seu

15.
E não é que ele acertou
Nessa parte de prefeito?
Só errou em outra parte
Pois que nada é perfeito
O homem foi governador
Quando vice foi eleito

16.
De volta ao Governo
Do Estado da Bahia
ACM incrementou
O que antes já se sabia
Um esquema concentrado
De ser ele sempre o guia

17.
E assim por muito tempo
Foi que mandou e desmandou
Colocava chupa-cabra
Para ser governador
E de cima comandava
No cargo de senador

18.
Ele tinha por projeto
Ter um filho presidente
Da Câmara de Deputado
E conseguiu, contente
Mas também da República
Que era dali para frente



19.
Era um nome de aceitação
Do filho Luiz Eduardo
Da direita e do centro
De quem não o via errado
Mas o destino o levou
Que frustrou o planejado

20.
ACM depois disso
Se tornou de certa forma
Um homem mais amargo
Não gostando de reforma
E com vícios de outrora
Veio por ferir mais norma

21.
Pois não é que Presidente
Do Congresso Nacional
Permitiu que se quebrasse
De maneira negocial
O sigilo eletrônico
Do painel e coisa e tal

22.
E pra não perder mandato
Teve peito e renunciou
Um suplente chupa-cabra
Era o seu senador
De forma que tudo então
Como antes continuou



FIM DA 1ª. PARTE

domingo, 24 de novembro de 2013

Pelo Retrovisor


 
Gustavo tinha uma calça Lee, camisa branca por fora, um par de tênis, num jeito seu, e toda a vida pela frente. Vinha como o frescor da manhã, sol tênue, outono se avizinhando. Seus cabelos inda úmidos do banho, mas soltos, no mesmo ritmo dos passos, descompromissados com o tempo. Não havia o tempo. O momento fluía como a água que passa ininterruptamente sobre o mesmo ponto. Sob a maciez dos seus pés, o mundo inteiro era uma conquista que se faria passo a passo. Vislumbrava um universo que se lhe abria feito a mulher dos sonhos, pernas e seios, no ato do amor. Só restava aguardar a realização desse desejo.

Vendo-o em arrumação para sair, a mãe indagava:

- Para onde vai, Gustavo?

A resposta, sempre num largo sorriso, era a mesma:

- Vou existir.

Assim dizia por dizer. Brincadeira. Existência era realização. Algo distante, portanto. E não era chegado o momento.

O ar era puro cheiro de fruta e de café forte invadindo a manhã. Sentia a prenhez das coisas ao simples contato. E a canção se eternizava na vibração dos seus dezessete anos.

- Eu te amo – murmurou entre suspiros a primeira namorada de carinhos mais ousados. – Vamos nos casar, meu bem?

-  Gu!

- Vamos?

- E nossos pais?!

- Vamos fugir? – a mão em chamas sobre os seios.

O amor. Ah, o amor... O futebol, o estudo, a poesia, toda uma existência, uma estrada onde pôr os pés e deixar as marcas das realizações.

Por isso, prenhe de vida, como a bola prestes a estufar a rede em grito de gol, Gustavo não pôde ainda compreender como tudo agora pareceu ter se conduzido num processo letárgico. Estivera no ar, com transmissão ao vivo, via satélite, para todo o universo. Não fizera os gols. Etapa complementar, não percebera que a vida terrena não comporta rascunho, que tudo é redação definitiva.

Com estalo dessa descoberta, Gustavo – paletó e gravata – deu partida no automóvel. Era uma manhã de junho, árvores se agitando. Pelo retrovisor viu de relance a sua imagem na do filho, calça jeans, camisa branca, par de tênis, num jeito seu, que deixara diante do portão da escola.

sábado, 16 de novembro de 2013

2 milhões com 90 dias e sem juros


Naquela época, por causa da inflação, cobravam-se em torno de três por cento de juros. Ao dia. Vi caso de pessoas cobrarem meio-dia de juros, isto é, um e meio por cento, porque o cheque só ia ficar bom para ser sacado na parte da tarde. Contudo, fazia-se negocio, comprava-se, vendia-se e, pelo menos, havia uma aparência generalizada de rendimento fácil. Almerindo, caminhãozinho velho e um pouco de faro como atravessador, era um dos denominados “faisqueiros”, aqueles que punham fogo no preço, comprando um capulhinho de algodão aqui e vendendo acolá para obter seu ganho.

Nessa labuta de transportar algodão, discutir preço, receber dinheiro e fazer pagamentos, Almerindo acabava por se passar como cidadão integrante do quadro de negociantes de sucesso na região.

Foi com essa pose que, quando um dia passou em frente a uma birosca, misto de bar e residência, logo se viu beliscado pelos olhos compridos de dona Branquinha.

- Oxente, será que é verdade o que o povo fala? – encucou-se Almerindo .

O que se falava então, à boca pequena, era que dona Branquinha, casada, filhos e marido sério, não só servia bebida e refeição ali em sua casa como também “servia marmita por fora”.

Acrescentando-se um caldo “Maggi” da Galinha Azul, até que dá pra fazer uma canja, pensou Almerindo.

Dona branquinha tinha vindo da roça com a família, Zé Palito à frente, fazendo negócios de algodão, e ela ali cuidando de ganhar algum trocado, no seu comércio de bebida e comida para as gentes que se empanturravam no progresso da região. Falavam dela. Mas Almerindo, de inicio, embora interessado, achou ser maledicência. Só agora, meio cabreiro, passava a vislumbrar um horizonte.

- Minha flor! - dizia Almerindo alisando o material, e ela meio esquiva, num olhar que ia da censura ao mensalínico, sempre num traquejo de mulher misteriosa - comércio e amor.

Era amor. Almerindo não tinha mais nenhuma dúvida. Freqüentava ali o ambiente de venda, mas sempre na espera de que quem come por ultimo come mais ou melhor, e jogou o laço.

- Como uma pata! - pensou.

Tudo havia acabado bem. Almerindo ergueu-se da cama. E quando imaginava tudo tranqüilo, já abotoada a camisa, só se ouviu o estrondo de ferrolho de porta se arrebentar e ir ao chão.

- Que negócio é esse? - era Zé Palito, o maridão, que acabava de entrar no quarto.

Almerindo pensou na velhinha, sua mãe, pensou no pai, nos irmãos, na mulher dele e nos filhos. E isso num relance. Estava morto. E ali numa situação de alto risco, a adúltera nua e enroscada nos lençóis da cama, e o marido em pé, na porta, com todas as razões para lavar a sua honra. Tudo como via no cinema. Pensou em doutor Custódio, famoso criminalista da região.  Ele seria morto e o outro teria toda razão para ser absolvido. Pensou nisso. Depois pensou: “um tem de entrar dentro do outro até um ou outro ir para o inferno. Ou eu ou ele.”

Mas ele, Almerindo, nunca foi de matar ninguém. Poderia escapar pela janela. Carregá-la nos peitos, parede afora. Viu, no entanto, que era bobagem de sua parte: a janela era pequena, de ferro e vidro, estilo vitrô. Almerindo respirou fundo. Estava pronto para tudo. Pensou de novo na família, no ilustre advogado. “Se for o caso eu mato em legítima defesa”, com esse pensamento, ele rompeu para a porta de saída, onde Zé Palito se achava estacado, cheio de moral. Mas, afinal, ele, o marido, é que era vítima. E isto ainda sob o eco do “Que negócio é esse?”, porque toda essa reflexão de Almerindo foi numa fração de segundo.

Quando, num vácuo de silêncio, Almerindo se aproximou da porta do quarto, com o pensamento de só reagir no último caso, e ali tentou transpor, recebeu bruscamente no peito a mão de Zé Palito e imediatamente um pedido:

- Me empresta aí 2 milhões com 90 dias e sem juros.

Almerindo, mais que ligeiro, só fez sacar do bolso o talão de cheque do Banco do Brasil e dizer:

- Oxente, tem caneta aí?


quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Para minha irmã Alécia



nesse dia não se acordou em horário de costume
a mulher já não estava mais ao lado no leito
tampouco nos afazeres
porque não se ouvia barulho da cozinha
o filho não fora à escola
os gatos não choraram pela ração diária
lá fora na rua não passava o doido do bairro
nem o bêbado
não houve cumprimento dos vizinhos
mas um entendimento mútuo silente de cabeça
no rádio, o locutor, que antes achava engraçado
falava de forma trivial
informando errado a hora certa
e se desculpando
a dupla Zezé  di Camargo & Luciano parecia cantar desafinado
o Sol despontou desapontado
(sua casa, seu quintal, ao caminhar descobriu
que havia umas formiguinhas e no passar poderia esmagá-las
e então desviou o seu passo)

NEI GEORGE PRADO

Rua Virgiliana Reis, s/n – Candiba(BA), 8.10.2012

sábado, 2 de novembro de 2013

Não “magina” nada!...




Pense o leitor em Tacísio Meira nos anos setenta, nas novelas da Rede Globo. Pensou?! Pois você não “magina” nada. O galã perdia de dez a zero para ele. Ele tinha a mesma estatura de Tarcísio, cara meio quadrada, do jeito que as mulheres apreciam (e eu não sei o porquê, mas diz a pesquisa que é essa preferência delas). Era mais para cinema americano que essa coisinha peba de novela da Globo. Lorde. Comprido, magro, branco para moreno, roupas no capricho, voz que dava até para concorrer com Cid Moreira, e, para completar, naquele tempo em que não havia propaganda senão enaltecedora do uso do cigarro, fumava carlton. Sempre na algibeira.

Saiu de Candiba e foi para S. Paulo e de lá voltou desquitado, ou, como se dizia então, largado da mulher.   Disputado, acabou se embrechando com uma viúva nova. A mulher com dois filhos menores num sitiozinho perto da cidade. Beleza pura. Tudo arrumadinho. Ele encontrava roupa lavada e passada. No esmero, que a viúva, não bonita assim mas nova e, como se então dizia, caprichosa, do que ninguém tinha a reclamar, e ele, aquela estampa de homem, para inveja de outras mulheres. Vida que segue.

Trouxe lá de S. Paulo, sabe-se lá, talvez resultado da partilha de bens com a mulher, uma picape tipo C-14, daquelas de carroçarias compridonas, e arrumou de jeito certo essa menina, trabalhadeira, disposta etc. Procurou algum comércio. Melancia. Enchia essa picape de melancia e vinha para praça tomar um bacardi com coca-cola no bar enquanto neguinho passava e escolhia uma melancia, cujo preço recebido seria depois transformado em bacardi com coca e cigarro. A vida era bela.

Fim de tarde, garantido em casa da roupa impecável a janta, acudido pela nova mulher, depois que ela já tinha dado combate em tudo: ração para as criações (umas vaquinhas, galinhas e porcos), lavoura zelada, árvores frutíferas etc.

Mas nesse fim de tarde, aguardando a boca da noite, ela sempre se aprontava, perfumada, camisola diferente, no interesse de uma recompensa com o “artista”.

Então ele chegava da rua... Janta de qualidade e ... Momento. Deitava-se ao seu lado e, ao cabo de alguns dias sem lograr êxito no intento, começou a se insinuar, cheirosa, com o bumbum tocando lá na parte dele:

- Quieta, mulher, não “magina” nada... A gente dá um duro desgraçado... Fica só em casa... Não “magina” nada. – e virava para o outro lado. Aí dormia que roncava e até.. peidava..

E era sempre assim o filme. Até que: CARTÃO VERMELHO. Não “magina” nada.


FEV-2012.