segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

 

A mulher dos tomates

 

            Em uma academia, ela chamou a atenção discretamente, pois ele também a encarou dessa maneira, antecipando o que poderia ser o tema de um possível diálogo entre eles.  Para Ítalo, era a mulher dos tomates, a cunhada de um quitandeiro do bairro. Mas, olhando bem suas partes, ela não era a mesma, puro equívoco.  Tinha o corpo trabalhado, a senhora. 

            - E a mente aberta aos negócios – Ítalo completava o raciocínio.

            Olhou o rosto e  confirmou:

            - È mesmo a mulher dos tomates.

            Possivelmente, atrás de um balcão, ela ocultava a maravilha que se desvendava através das roupas esportivas, mais adequadas. Aquela era uma área comum para exibição de coxas, braços, pernas e mamas. Ele percorreu as pernas da mulher e percebeu nobreza naquela alvura de coxas, sem sinais, no gesto sério ao erguer os alteres, num agachamento com barra, e refletiu:

            - Com certeza não é a mulher dos tomates.

            Conforme o consenso estabelecido, o princípio da inocência deveria prevalecer na incerteza. Assim, deveria prosseguir. Em um movimento rápido de encantamento, ela se posicionou no centro da sala com a destreza de um atleta e, em seguida, caminhou até outro dispositivo que estava desocupado. E lá continuou a pedalar. Ela viajava para longe, sem deixar o ambiente da sala. A imaginação de Ítalo a acompanhava.

Um pequeno detalhe transformava tudo, como podia uma mulher se transformar dessa maneira num instante? É aquela história da mulher com uma flor no cabelo – pensou Ítalo. Ou talvez tenha sido uma decisão que afetou os trajes e o comportamento. Quem a observava ocasionalmente no cotidiano não poderia acreditar na bela imagem que se apresentava diante dele. Ele poderia "tomar boca" com a mulher, como se costumava dizer, para melhor enquadrar a conversa, mas agora seria descortês. Seria um instante apenas de admiração. Ela deveria possuir um parceiro. Como é que ele não fazia companhia? Esses pensamentos ferviam em sua mente. Deixar fluir! No mínimo, ele deveria permanecer à espreita na porta.  Aguardar para destravar a porta do carro estacionado, tal como na música "Esse cara sou eu", de Roberto Carlos. Era a forma perfeita para um clipe.

                        A mulher dos tomates se aprontava para ir para casa. Apanhou no armário da recepção uma mochila, falou qualquer coisa com o professor, abrindo um leve sorriso e caminhou para o local reservado para veículos, sem ninguém pra lhe abrir a porta do carro, o que era uma falta gravíssima.

                        O professor podia dar outras referências sobre ela, a de blusa cor de rosa. Aliás,  teria que se certificar primeiro.  Com a sua aproximação, para não demonstrar grande interesse, Ítalo indagou, apontando a mulher:

                        - Ela é...

                        Mal terminou de falar, foi atropelado pelo professor, que, sacudindo a cabeça, respondeu com  cumplicidade:

                        - É. Ela mesma.

                        “Ela mesma, quem, cara pálida?” Não querendo demonstrar interesse, Ítalo acabou deixando ficar com o que estava na sua mente, “a mulher dos tomates”.

 

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

 

Eliene

 

                       Por um tempo, Eliene serviu como galho, com certa regularidade, do tipo “cadeira cativa”, "papai-mamãe", dinheiro contado e a tranquilidade necessária para o exercício diário de quem estava começando na vida. Quis reviver essa vidinha tão conhecida de todos. Aliás, Ítalo sempre teve queda para a vida prosaica.

                            Depois da universidade, pelo menos uma vez por mês, ele deixava ali parte do seu salário. Sempre que se aproximava da casa, alguém num misto de vigilante e frequentador encontrava-se a entrada. Voltar seria de  melhor política. Ou ignorar? Corria-se o risco. Quando se cuidava de uma decisão, já estava lá dentro, com algumas doses a mais, esperando numa saleta. Depois, alívio com a entrada dela, cheirosinha, bonitinha ao seu modo, num leito na semiescuridão. Retirava a roupa dela. Segurava-a e a tocava (sua pele quente!), uma gruta como recompensa descoberta no final. Era quando ainda tinha a agilidade de um rapaz de trinta anos. Com um vestido novo e um penteado básico, Eliene deveria estar perto disso. Mas não estava interessado nesses pormenores. Parecia uma máquina de música, cuja duração dependia de ficha.

                             Que máquina! Agora sem novidades, mas uma mulher vivida. Nem ela estava mais agarrada a esse improviso nem ele andava mais atrás. Também não era mais aquele professor iniciante de aula preparada a contento. ”São outros os tempos, Ítalo”, gritou dentro de si, então pediu uma cerveja, que ela mesma fez questão de trazer e fazer-lhe companhia.

                  - Pra frente é que se anda, cara! – concluiu Ítalo.

                  - É, não vamos mais falar de passado – ela emendou na conversa.

                  - Você evoluiu, Eliene; agora é uma empresaria, tem seu estabelecimento, dirige os negócios...  – disse Ítalo.

                  - É, também não deixei de esperar por certa pessoa às sextas-feiras à noite – disse com piscada de olho.

              - Imagine – falou Ítalo, depositando um beijo no pescoço dela, que se agachou delicadamente.

                  - Naquele tempo eu vinha e entrava com medo.

                  - Medo de que?

                  - Sei lá, eu era novo, entrava na vida, tinha que ter minhas cautelas.

                  - Eu também era nova, uai, e garota. Acha que não tinha medo?

                   - Medo, por exemplo, de um cara que ficava sempre na calçada, de bico.

                  - Um morenão forte?

                  - Era. Um dia eu cheguei, encarei, e ele me disse pra esperar um minutinho... aí gelei...

- Ôxe, por quê?

- Aí, acho que ele percebeu, então ele disse que você estava terminando de se aprontar, que entrasse e me sentasse, dava tempo até de fumar um cigarro ou tomar uma. E eu tinha medo dele, achei que fosse um namorado seu.

                  - Ah, não, era sim um fã meu, tornou-se compadre, mas andava sempre por ali, me dava certa proteção.

                  Ergueu-se da mesa e foi buscar um álbum de fotografia:

                  - É esse? – pôs o dedo num retrato de um cara com um menino nos braços.

                  Era o cara.  O som que parecia encobrir o ambiente era A volta, uma canção de Roberto Carlos, em nova versão. Ítalo percebeu surgir dessa conversa um sopro de nostalgia e acabou convidando a empresária para o seu quarto. Prestaria uma homenagem em agradecimento pelos momentos de aprendizado de vida que compartilharam juntos.

 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

 

Letícia

 

"Quem te viu, quem te vê", refletiu Ítalo ao adentrar o bar e observar Letícia despenteada, com sinais de embriaguez, em farra com "amigos".

- Separou, cara, faz pouco tempo – alguém informava próximo à mesa escolhida por Ítalo.

- Casou pra dar gosto aos pais adotivos. Casamentão. O noivo era funcionário de uma estatal – um outro colocava mais recheio.

         - Lembro-me dela penteada mas comendo a gente por baixo.

            Ítalo era testemunha desses fatos. Ela sempre o tratou com maior respeito, mas também andou comido com os olhos graúdos dela. O pai tinha feito apresentação tempos atrás, sorriso grande:

            - Minha moça, noiva do Sr. Nelson Palmeira.

            Ele se limitou a dar os parabéns, mas percebeu nela o detalhe de estender o olhar de maneira discreta. Ela era jovem, estava em plena saúde e prometia muito de Sodoma e Gomorra nas sombras daquela catedral.  Apenas uma constatação de macho, que só o tempo se encarregaria de mostrar.

            - Quem já foi essa menina, cara?

            - Minha irmã me contou que ela falava de um fogo que tinha dentro dela, que ninguém dava jeito.

            Respeitoso, Ítalo também não correu atrás, mas agora que se tornava mais fácil, parecia queixar-se de haver chegado com atraso. Corpo mais solto, porém desajeitado após primeiro filho. Ítalo tinha que pedir a cerveja e caminhou para cumprimentar Letícia:

            - Olá, Letícia,

           Ela ergueu-se para beijinho, entusiasmada, e  pediu que sentasse com ela, no que ele acatou, para tanger dali uns carinhas que estavam sobrando. Letícia tentou puxar para um papo mais descolado:

        - Ficamos juntos, afinal, depois de tantos anos, não é, Ítalo? A gente comentava, eu e minhas primas, da beleza dos homens que apareciam lá em casa. Você mesmo era um deles. Só que quando meu pai me apresentou foi como noiva de Dorivaldo.  Mas era um tempo bom.

            Encaminhado na bebida, Ítalo foi logo se enturmando na conversa, apegando-se a lances picantes, de quando ela, a mulher de argolas, esbanjava categoria:

            - Eu tinha uma tara por você, Letícia.

            - Oxe, então deu empate, porque eu também tinha mas não podia, que estava comprometida.

            - Será que agora dava para desempatar? – alguém na mesa perguntou na resenha.

            - Vou levar essa menina num salão de beleza de um amigo e dar uns tratos no cabelo, que era tão bonito - disse Ítalo num rasgo de contentamento.

            Era um final de tarde, Ítalo apanhou a mulher descabelada e a carregou para dentro do carro, dizendo ao dono do bar:

            - Pode deixar tudo pra mim aí,  cara. 

 


sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

 

Brabinha

 

                  Acordou ouvindo aquela voz grossa, de estragos nos graves, que incomodavam os tímpanos.  O cara articulava um vocativo, que fazia estrondar por todo velho casarão, só mais tarde decodificado,:

         - Brabinha! Brabinha!- era o que queria dizer o cara das cordas vocais estragadas.                

         Brabinha, que devia ser pessoa responsável por aquela espelunca, calculava Ìtalo, devia ser gente de cabelo na venta, de muita energia.

         - E não um pedaço de gente pisando uns saltos de sapato – como pôde conferir Ítalo espiando da porta.

- Brabinha é você?- perguntou.

- Mais alguma coisa? Sim, esse cara que saiu só me chama de Brabinha, e, quer saber, eu só braba mesmo. Mais alguma coisa? Que aqui não virou banco de praça não.

Ele solicitou uma porção de salsichas com azeitonas para acompanhar a cerveja e observou a mulher rude que emitia ruídos de toc-toc-toc no chão da residência.  Decerto que fazia parte do ritual. Esse estilo de quem já teve sucesso no passado seria um deslize. Ítalo anotou: corpo bem definido e o restante agradável, particularmente a voz e a capacidade de agitar os cachos do cabelo.

 Brabinha apareceu com a porção e reclamando de Zeca que não queria pagar à menina.

- Sacanagem, cara,  tem que cumprir o combinado.

A autoridade moral de Ítalo se juntou à brabeza da mulher que levou só algum tempo para Zeca arrumar seu dinheiro e pagar à menina. Trazia enrustido no tênis:

- Coisa de caloteiro mesmo – disse Ítalo.

         Zeca pegou um palito e ficou beliscando os petiscos, enquanto  aguardavam Rock, o outro parceiro de farra.

- Vou deixar você aguardando Rock pra gente ir embora e vou aproveitar também, que ninguém é de ferro.

- Brabinha! - chamou.

         E era ela mesma, com aquela voz e experiência de toda uma vida.

 

 

 

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

 

Célia

 

As suas mãos deslizaram sob a mesa e se deram como dois objetos ajustados.  Célia se encontrava em uma situação de carência. Às vezes, era vista com certos trejeitos de uma dependente alcoólica.  Mas era fase inicial, que seria corrigida a tempo. O reencontro com Ítalo, que antes tinha namorado sua irmã, proporcionava um alívio.

- Hoje ela está casada e com filhos rapazes; é uma dona de casa. Mas disse que o lance que vocês tiveram antes, coisa de adolescente, valeu a pena – Célia informou sobre a irmã.

Falavam, embevecidos, das vantagens de São Paulo., quando Ítalo, companheiro de cerveja, aproveitou para ilustrar com uma lembrança de trecho inicial da canção de Caetano:

- Alguma coisa acontece com meu coração

Embalado por cervejas, o diálogo se estendia noite adentro. Retornara à sua terra natal com seus dois filhos em uma viagem de lazer:

- Pra refrescar mais a cabeça após a separação.

Ítalo assuntava, mas insistia em inserir trechos de Caetano Veloso:

- Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto.

Célia prestava contas do tempo que passou fora, em São Paulo:

            - Não precisa dizer da decepção, mas era tarde. Então é isso, resolvi vir aqui para depois retomar erguida, de banho tomado.

            - E foste um difícil começo, afasto o que não conheço.

            Após um carinho do parceiro, justificou:

- Visitar minha vó e  encontrar amigos, como vocês.

Ítalou a envolveu em seus braços e lhe deu um beijo de agradecimento. Tornou-se algo inato. Nem a dona do bar notou qualquer irregularidade. Na realidade, não havia nada além de saudações de reencontro com amigos. O resto era o ambiente que os unia. Célia era uma jovem, evidenciada pelo seu corpo ainda magro e rosto com marcas de tropeços iniciais. A fumaça dos cigarros se dissipava no seu olhar distante e por ora cheio de esperança.

- ... aprende depressa a chamar-te de realidade, porque és o avesso do avesso do avesso...

- Vamos até a casa da velha – falou como se pedisse auxílio.

E precisava de um apoio.

- E ele paga pensão regularmente?

- Não posso reclamar; mas a questão não é essa.

Ítalo optou por não fazer mais questionamentos. Algumas mulheres costumam enveredar-se por explicações oblíquas. Com um abraço, seguiram como um par. Eles iriam até o fim do universo, mas era bem perto. A ansiedade era a alegria que sentia em relação à avó e aos dois filhos. Chegou com alguma determinação e recordou-se do remédio da sua avó idosa. Dirigiu-se ao quarto dos garotos para dar um beijo de despedida.

- Beijo da mãe, crianças - ela se curvou diante deles em seus respectivos leitos, sussurrando em um ambiente quase escuro, mas com a intenção de ser divertida. – É minha vida agora.

Viu Célia esconder uma lágrima fora da casa. Ítalo estava bebendo, mas não conseguia se afastar da companhia dela. Com poucos movimentos, seus gestos se comunicavam. Como por exemplo, um pegar o cigarro e o outro o fósforo. Por essa razão, cada esquina era um ponto de encontro para abraços e beijos.  Não tinha conhecimento de uma Célia assim.

- Claro, você só tinha olhos para a mais velha de nós, que realmente era um estouro.

- Você era garotinha – disse para um simples consolo.

- Veja no que deu – falou como se tivesse um fardo para carregar, mas sem perder o encanto.

- Você é forte, Célia.

- É, sou.

E era mesmo. Iria voltar para S. Paulo uma nova mulher pronta. Ítalo, após afagos, cantarolou verso final de Sampa:

 E os novos baianos passeiam na tua garoa...