quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

 

Célia

 

As suas mãos deslizaram sob a mesa e se deram como dois objetos ajustados.  Célia se encontrava em uma situação de carência. Às vezes, era vista com certos trejeitos de uma dependente alcoólica.  Mas era fase inicial, que seria corrigida a tempo. O reencontro com Ítalo, que antes tinha namorado sua irmã, proporcionava um alívio.

- Hoje ela está casada e com filhos rapazes; é uma dona de casa. Mas disse que o lance que vocês tiveram antes, coisa de adolescente, valeu a pena – Célia informou sobre a irmã.

Falavam, embevecidos, das vantagens de São Paulo., quando Ítalo, companheiro de cerveja, aproveitou para ilustrar com uma lembrança de trecho inicial da canção de Caetano:

- Alguma coisa acontece com meu coração

Embalado por cervejas, o diálogo se estendia noite adentro. Retornara à sua terra natal com seus dois filhos em uma viagem de lazer:

- Pra refrescar mais a cabeça após a separação.

Ítalo assuntava, mas insistia em inserir trechos de Caetano Veloso:

- Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto.

Célia prestava contas do tempo que passou fora, em São Paulo:

            - Não precisa dizer da decepção, mas era tarde. Então é isso, resolvi vir aqui para depois retomar erguida, de banho tomado.

            - E foste um difícil começo, afasto o que não conheço.

            Após um carinho do parceiro, justificou:

- Visitar minha vó e  encontrar amigos, como vocês.

Ítalou a envolveu em seus braços e lhe deu um beijo de agradecimento. Tornou-se algo inato. Nem a dona do bar notou qualquer irregularidade. Na realidade, não havia nada além de saudações de reencontro com amigos. O resto era o ambiente que os unia. Célia era uma jovem, evidenciada pelo seu corpo ainda magro e rosto com marcas de tropeços iniciais. A fumaça dos cigarros se dissipava no seu olhar distante e por ora cheio de esperança.

- ... aprende depressa a chamar-te de realidade, porque és o avesso do avesso do avesso...

- Vamos até a casa da velha – falou como se pedisse auxílio.

E precisava de um apoio.

- E ele paga pensão regularmente?

- Não posso reclamar; mas a questão não é essa.

Ítalo optou por não fazer mais questionamentos. Algumas mulheres costumam enveredar-se por explicações oblíquas. Com um abraço, seguiram como um par. Eles iriam até o fim do universo, mas era bem perto. A ansiedade era a alegria que sentia em relação à avó e aos dois filhos. Chegou com alguma determinação e recordou-se do remédio da sua avó idosa. Dirigiu-se ao quarto dos garotos para dar um beijo de despedida.

- Beijo da mãe, crianças - ela se curvou diante deles em seus respectivos leitos, sussurrando em um ambiente quase escuro, mas com a intenção de ser divertida. – É minha vida agora.

Viu Célia esconder uma lágrima fora da casa. Ítalo estava bebendo, mas não conseguia se afastar da companhia dela. Com poucos movimentos, seus gestos se comunicavam. Como por exemplo, um pegar o cigarro e o outro o fósforo. Por essa razão, cada esquina era um ponto de encontro para abraços e beijos.  Não tinha conhecimento de uma Célia assim.

- Claro, você só tinha olhos para a mais velha de nós, que realmente era um estouro.

- Você era garotinha – disse para um simples consolo.

- Veja no que deu – falou como se tivesse um fardo para carregar, mas sem perder o encanto.

- Você é forte, Célia.

- É, sou.

E era mesmo. Iria voltar para S. Paulo uma nova mulher pronta. Ítalo, após afagos, cantarolou verso final de Sampa:

 E os novos baianos passeiam na tua garoa...


 

 

 

 

 

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