- Ninguém quer saber
disso, otário – ralhava com o primo, tentando encontrar um buraco e se esconder
com o rosto marcado de espinhas.
- Sua mãe está te chamando.
Pra te mostrar roupa nova – mudava de assunto, na insistência com querer agradar.
No quarto, sua mãe
abria a cortina para que uma nesga de sol penetrasse e a vida explodisse em
pontos positivos de galhos. Para completar esse desenho, a manhã se enchia com pássaros
cantarolando.
- Essa calça de brim cor de chumbo cairá bem
com essa camisa de cassa.
Ficaria lindo mas com
quem iria ser a estréia sua mãe não dissera, já que, vendo-o borocoxô, tentava
levantar sua bola.
- Meu filho, você quer
um chocolate?
Disse que sim.
Aceitava a boa vontade da mãe nessa tentativa de mudar de astral.
- Vai ficar lindo com
essa camisa de cassa.
Passou também a loção
pós barba e sorriu para a mãe, com quem resolvia compartilhar essa pequena
alegria. Não estava próximo do espírito de liberdade de menino em fim de aula
mas caminhava para isso.
- Não está animado?
- Pouco.
- Você passou, isso que
importa. Ainda tem um resto das férias.
- Quase morro, mas
estou aqui são e salvo, para pegar firme
o ano de 77. Agora não perderei o
trilho.
- Isso, meu filho.
Assim que se fala. Você perdeu seu futebol, suas novelas, só estudando, mas
venceu uma etapa.
Afastar-se do futsal fora
uma tremenda punição. Dias de “babas”
que se foram, sem sua presença. Ficar de fora dos encontros, das festinhas... Voltava
agora para os personagens. Difícil fora
viver longe do mundo fictício. Às vezes o desejo de encontrar esse conforto era
tanto que se imaginava apertando a tecla correspondente ao play e se deixando levar. Emaranhava-se em sonhos novelescos. Deles saía num ritmo mágico
procurando pelos personagens em suas andanças. No momento estava ali, final de
férias, se espremendo no quarto, sem coragem de enfiar a cara na rua. Vergonha?
Tinha que quebrar o gelo. Por ora só aparecia o primo com aquela prosa de
futebol e aí não dava.
Tomou atitude de
escancarar a janela e deixar o sol entrar na sua inteireza, iluminando a vida
diante de si:
- Bom dia! Vamos
curtir, moçada – disse Gustavo com os
cabelos assanhados pelo facho de luz que a brisa trouxera.
- Vou te apresentar
umas garotas na praça, cara – disse Roque ao entrar, dividindo a novidade com a
mãe, às voltas com arrumação de guarda-roupa.
Com ele andava uma áurea do possível e do
impossível. Sem que se desse por isso, havia se formado ao lado da igreja um
grupo de moças para disputa de um baleado na manhã de sombra vencendo início de
sol.
- Beleza, daqui dá para
a gente ver o jogo de baleada na pracinha. Vou até lá conversar com as meninas,
disse Roque.
Ficaram então de
camarote aguardando diligência de Roque. Logo, não tardou, houve paralisação do jogo. E
no meio da garotada, gesticulando como um profissional, enfeitava a cena um
rapaz ágil. Era ele. Roque assoprava um apito que alguém providenciara na hora.
- Aí ele se achou –
observou a mãe, que acompanhava pela janela e conhecia o atrevimento do
companheiro do filho.
Organizava-se assim um
evento esportivo, digno da pequena assistência matinal. As garotas mostravam-se
de certa rivalidade juvenil que ia esquentando o ambiente. E o árbitro
esbanjava-se no apito, ditando regras consagradas e com suas explicações criava
mais normas.
- Bola da turma de
cima! É reversão: pegou por último na perna de Lilica – era o arbítro mostrando
entrosamento.
Roque botava ordem na
brincadeira, dando seguimento a partida.
Até que veio falar com Gustavo, que resolvera sair da toca, todo
penteadinho, com calça cor de chumbo e camisa de cassa, E o primo como
acompanhante, bengala com o dedo de mãe, tolerável depois da batalha nos
estudos.
O jogo continuava sem
arbitragem mesmo, que Roque estava com atenção desviada para assunto
extra-campo, outra bengala mas sem o
dedo materno. Aí era mesmo a saída do leão em cumprimentos de beijinhos nas
meninas.
- Olá, garotas!
Mas ele estava
interessado numa menina branquinha, a um
canto da área reservada à peleja.
- A de blusa de
bolinhas? Deve ser parente de alguma colega!
- É tia – falou o primo. – Tia de Samira. Mais nova e tia, irmã da mãe
da Samira.
Nem precisou de um corte, como no cinema, Roque
já estava com a menina agarrada pelo pulso.
- Quer te conhecer,
cara.
- Já conheço
- Oxi! de onde? –
espantou-se a garota.
Já estavam arranchados
na calçada da igreja, quando Gustavo
ousou puxar a branquinha pelo pescoço e segredar:
- Na novela, Nívea-Maria-quando-jovem.
- Ah meu cabelo – disse
e ensaiou um sorriso de resultado triste.
- Parece que você não gostou? – estanhou Gustavo .
- É que a gente não tem televisão – respondeu Nívea Maria.
Então Gustavo mudou de
assunto e marcou encontro para a boate, à noite. Ela seria chamada de Nívea e embalaria
aquele resto de férias do ano de 76. Que quase não acabou.