sábado, 25 de março de 2023

Como no último dia de aula

 


            Queria sua chegada com espírito de liberdade de menino em último dia de aula e certeza de prazo longo para ajustes das pendências que decerto ficariam.  Mas, de férias, estava chegando por baixo, porque, para poder passar teve que se ralar na prova de segunda época, O humor era zero. Tratava as pessoas com rispidez, até quando o primo veio lhe falar, num sinal de agrado e respeito, que seu time, o Vasco da Gama, fora campeão;

- Ninguém quer saber disso, otário – ralhava com o primo, tentando encontrar um buraco e se esconder com o rosto marcado de espinhas.

- Sua mãe está te chamando. Pra te mostrar roupa nova – mudava de assunto, na  insistência com querer agradar.

No quarto, sua mãe abria a cortina para que uma nesga de sol penetrasse e a vida explodisse em pontos positivos de galhos. Para completar esse desenho, a manhã se enchia com pássaros cantarolando.

 - Essa calça de brim cor de chumbo cairá bem com essa camisa de cassa.

Ficaria lindo mas com quem iria ser a estréia sua mãe não dissera, já que, vendo-o borocoxô, tentava levantar sua bola.

- Meu filho, você quer um chocolate?

Disse que sim. Aceitava a boa vontade da mãe nessa tentativa de mudar de astral.

- Vai ficar lindo com essa camisa de cassa.

Passou também a loção pós barba e sorriu para a mãe, com quem resolvia compartilhar essa pequena alegria. Não estava próximo do espírito de liberdade de menino em fim de aula mas caminhava para isso.

- Não está animado?

- Pouco.

- Você passou, isso que importa. Ainda tem um resto das férias.

- Quase morro, mas estou aqui são e salvo,  para pegar firme o ano de 77.  Agora não perderei o trilho.

- Isso, meu filho. Assim que se fala. Você perdeu seu futebol, suas novelas, só estudando, mas venceu uma etapa.

Afastar-se do futsal fora uma tremenda punição.  Dias de “babas” que se foram, sem sua presença. Ficar de fora dos encontros, das festinhas... Voltava agora para os personagens.  Difícil fora viver longe do mundo fictício. Às vezes o desejo de encontrar esse conforto era tanto que se imaginava apertando a tecla correspondente ao play e se deixando levar. Emaranhava-se em sonhos novelescos. Deles saía num ritmo mágico procurando pelos personagens em suas andanças. No momento estava ali, final de férias, se espremendo no quarto, sem coragem de enfiar a cara na rua. Vergonha? Tinha que quebrar o gelo. Por ora só aparecia o primo com aquela prosa de futebol e aí não dava.

Tomou atitude de escancarar a janela e deixar o sol entrar na sua inteireza, iluminando a vida diante de si:

- Bom dia! Vamos curtir, moçada  – disse Gustavo com os cabelos assanhados pelo facho de luz que a brisa trouxera.

- Vou te apresentar umas garotas na praça, cara – disse Roque ao entrar, dividindo a novidade com a mãe, às voltas com arrumação de guarda-roupa.

 Com ele andava uma áurea do possível e do impossível. Sem que se desse por isso, havia se formado ao lado da igreja um grupo de moças para disputa de um baleado na manhã de sombra vencendo início de sol.

- Beleza, daqui dá para a gente ver o jogo de baleada na pracinha. Vou até lá conversar com as meninas, disse Roque.

Ficaram então de camarote aguardando diligência de Roque.  Logo, não tardou, houve paralisação do jogo. E no meio da garotada, gesticulando como um profissional, enfeitava a cena um rapaz ágil. Era ele. Roque assoprava um apito que alguém providenciara na hora.

- Aí ele se achou – observou a mãe, que acompanhava pela janela e conhecia o atrevimento do companheiro do filho.

Organizava-se assim um evento esportivo, digno da pequena assistência matinal. As garotas mostravam-se de certa rivalidade juvenil que ia esquentando o ambiente. E o árbitro esbanjava-se no apito, ditando regras consagradas e com suas explicações criava mais normas.

- Bola da turma de cima! É reversão: pegou por último na perna de Lilica – era o arbítro mostrando entrosamento.

Roque botava ordem na brincadeira, dando seguimento a partida.  Até que veio falar com Gustavo, que resolvera sair da toca, todo penteadinho, com calça cor de chumbo e camisa de cassa, E o primo como acompanhante, bengala com o dedo de mãe, tolerável depois da batalha nos estudos.

O jogo continuava sem arbitragem mesmo, que Roque estava com atenção desviada para assunto extra-campo,  outra bengala mas sem o dedo materno. Aí era mesmo a saída do leão em cumprimentos de beijinhos nas meninas.

- Olá, garotas!

Mas ele estava interessado numa menina branquinha,  a um canto da área reservada à peleja.

- A de blusa de bolinhas? Deve ser parente de alguma colega!

- É tia – falou o primo. – Tia de Samira. Mais nova e tia, irmã da mãe da Samira.

Nem  precisou de um corte, como no cinema, Roque já estava com a menina agarrada pelo pulso.

- Quer te conhecer, cara.

- Já conheço

- Oxi! de onde? – espantou-se a garota.

Já estavam arranchados na calçada da igreja,  quando Gustavo ousou puxar  a branquinha pelo pescoço e segredar:

- Na novela, Nívea-Maria-quando-jovem.

- Ah meu cabelo – disse e ensaiou um sorriso de resultado triste.

- Parece que você não gostou? –  estanhou  Gustavo .

 - É que a gente não tem televisão – respondeu Nívea Maria.

Então Gustavo mudou de assunto e marcou encontro para a boate, à noite. Ela seria chamada de Nívea e embalaria aquele resto de férias do ano de 76. Que quase não acabou.

 

 

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