Avião em rodoviária
O
taxista já estava por aqui. Mas, primeiro, ele tinha que faturar o dele.
Segundo, tratava-se do doutor Emiliano, velho freguês. Nessa ocasião Roberto
Carlos ainda não tinha feito a canção em homenagem à classe, por isso, sem
qualquer sopro de reconhecimento, tinha mais era que enfrentar a vida. No duro. Dr.
Emiliano pagava bem. Para dizer a verdade, no final, valiam a pena os esporros
que levava do ilustre médico.
-
Desliga essa porcaria!
Pombas.
Adorava as músicas de Leandro & Leonardo. Mas ali quem mandava no momento
era o dr. Emiliano, médico bem conceituado na região. Estavam indo para MOC.
Montes Claros. Ele tinha que pegar o avião para Brasília. Urgência... urgência
– era só o que sabia dizer e quieto ficava durante a viagem. O doutor com as
suas conjecturas, e ele, coitado, que não tinha conjectura alguma, mal podia
ouvir o som do carro. O doutor gostava era de música clássica, Pavaroti, essas
coisas. Daí a proibição:
-
Isso não é música; é idiotice; é atraso; coisa de brasileiro.
Urgência!
Urgência! Agora era procurar chegar logo em Montes Claros, deixar o homem no aeroporto
e retornar com sua recompensa no bolso. Voltaria feliz, Leandro & Leonardo,
Amado Batista e Cia a todo o volume. Para descontar o atraso poderia até se dar
ao luxo de conversar o que bem lhe desse na telha. Sozinho. E daí? Estaria tudo
certo. Ele de cá, recompensado; o doutor de lá, em Brasília, com sua conversa
reservada para outros doutores.
Boa
parte da viagem era esse o clima. Ele de cá e o doutor de lá, nariz empinado,
ruminando argumentos para se apresentar em Brasília. Até que, não mais
agüentando aquela “urgência”, dor nas costas, teve que despertar a fera:
-
O doutor dá licença, mas pelo menos uma paradinha para o cafezinho, sacumequié.
Estavam
nos arredores de Porteirinha.
-
Vê lá se não demora. Tenho que pegar o avião – disse e abriu uma revista que
trazia no colo.
O
avião! O avião! O avião mesmo ele encontrou foi ali naquele barzinho de beira
de estrada. Aliás, dois aviões. Enquanto tomava o café apressadamente, pôde
observar que duas morenas no capricho, com sacos e sacolas, estavam com olhos
compridos atrás de carona. Daquelas que se ele fosse dizer que estava indo para
o inferno elas topavam na hora: “É pra lá que estamos indo também”. Não deu outra. Ele tinha era muito tempo de
chão, estrada e raparigagem. Não ia errar dessa vez. Quando as moças se
aproximaram para fazer o pedido, a vontade que ele teve foi a de dizer que sim
e mandar o doutor pegar um outro táxi, mas ele tinha família para manter, uma
filha formando no Luiz Viana, não podia perder a cabeça:
-
As meninas que me perdoem, mas eu só posso dar carona com o consentimento do
doutor ali. Tenho que deixar ele em Montes Claros.
O
doutor Emiliano se agitava no banco do carro. Só fez bater aquele olho de
descaramento nas moças e dizer como se fosse uma bronca:
-
Claro que dá. Deixe de ser gente ruim. Não vê que o carro é grande e oferece espaço?!
Daí
a Montes Claros o homem quase teve um torcicolo. As duas moças no banco
traseiro e ele levando um papo meio a seu modo.
A
certa altura de intimidade e tara, meteu o dedo no toca-fitas e cutucou o
taxista meio à parte:
-
Ponha aí aquela sua porcaria de fita.
Antes
de chegar a Montes Claros, Leandro & Leonardo, coitados, não fosse
gravação, já tinham ficados roucos. Ele até que tentou colocar o Amado Batista,
mas lá vinha um tapa aplicado pelo doutor:
-
Mexe não, essa música é boa – e se virava numa prosa interminável com as
meninas.
O
carro corria macio pelas ruas da cidade. Tinha até certo receio de perguntar
alguma coisa, pois, motorista zeloso, não podia se dar conta do que se passava
entre os passageiros. Apenas por suposição, ante os gritinhos femininos,
julgava que o doutor se saia simpático e bom de prosa.
Tendo
alcançado trecho decisivo da área urbana, teve que intervir:
-
Vamos tomar o aeroporto, doutor. As meninas ficam onde mesmo?
-
Que aeroporto, rapaz? Então vamos deixar essas moças aqui desamparadas? Puxa
para o melhor hotel da cidade, onde cabem dois cabem quatro.
Registra-se
aí a cena mais cômica. Naquela pressa toda, estavam num hotel, dois apartamentos,
um para cada casal, o doutor Emiliano ajudando a sua eleita a subir as escadas,
carregando pacotes, recolhendo tabletes de doce que iam caindo, o que dava a
idéia de serem elas vendedoras ambulantes, tal era a quantidade do produto
embalado para a revenda.
Noite
dos prazeres, paraíso completo, o doutor, que tanta pressa tinha, só viajou
mesmo no dia seguinte, após ter tirado o atraso de duzentos anos de namoro.
Mas
tudo que é bom não deixa de passar uma ressaca. Tempos depois, estando em
Guanambi, na praça do táxi, conversando com o colega Dedé, o orelhão tocou:
-
Alô! Aqui é da praça do táxi.
-
É com você mesmo, seu porra. Vá até a rodoviária, pega aquelas duas raparigas e
some com elas daqui. Imagine que chegaram de Minas e tiveram a ousadia de ligar
pro meu consultório. Imagine só: eu ir lá apanhar aquelas duas quengas?! Se
minha mulher sonhar uma coisa dessa?...
-
Mas não foi o senhor que deu o telefone e todas as garantias, doutor? Eu lembro
que sim.
-
Deixe de saber. Se minha mulher descobre eu te mato. Se vire... se vire... - e
bateu o telefone.
Agora
era só o que faltava: ele tinha que proibir avião de aterrissar em rodoviária.