Além de Edu ser voto vencido, eles realmente tinham razão: duas semanas
de internamento não eram suficientes. Referia-se ao serviço de tratamento e a
torcida de familiares e amigos:
- Isso mesmo, hora que você ficar bom, você vem pra casa.
Era o apoio, a solidariedade. Estava ali numa das áreas ajardinadas,
escutando Flávia ao violão, martelando o verso: o Sol vai renovar a vida. Era uma composição que Edu fazia junto
com ela. Inspiravam-se na chegada da colega sergipana, que entrara meio às apalpadelas
até que com o Rivotril acabou dormindo ali mesmo na grama do jardim, sob o sol
leve da manhã, antes de ser carregada para dentro. Flávia sabia desse detalhe e
caprichava no choro:
amanhecer mal amanhecida
procurando braços para dormir
procurando casa que ficou pra trás
um travesseiro cheio de paz
- Legal como você consegue captar os dois momentos, de chegada e de
alento – era a pausa para um breve comentário de Flávia..
- A garota é um avião, Flávia,
Daqui a pouco ela chega para tomar um sol – disse Edu.
- De tanto ouvir o refrão? – brincou Flávia.
– Ih, ela vem chegando! – encerrou Edu.
A garota veio sem perder o molejo:
- Você me empresta um cigarro? – aproximou o Monumento, de short, cujo
sergipano carregava no sotaque.
Acendeu o cigarro. Sem tremedeira nas mãos, observava Edu, a garota se
retirou para fumar debaixo de uma árvore adiante.. Edu, em particular, encarou
a colega Flavia para explicação do caso:
- Álcoo?
- Não. Cocaína.
Flávia passou a ficha da sergipana. Começara como manequim, porém, no
primeiro sinal, a família aconselhou-a a afastar-se de alguns amigos e da
droga.
- Seria uma tragédia com uma garota dessa estampa.
- Oh, dessas é que não falta, meu irmão. O caso é parecido com o meu.
O caso de Flávia envolvia maconha. Então, Edu falou:
- Sua família cuidou a tempo, hein?
- Contaram pra mim mãe que seu estava com uma turma que fumava.
- E era verdade?
- Admiti. Ela me falou que pagava tudo para eu parar. Aproveitei o
recesso na faculdade e vim pra cá.
- Então, viva sua mãe, mandar você pra mim.
Você é jovem, quarto semestre de Letras, não é? Uma parceira de
composição. Uma atriz de futuro, garota.
Mas ninguém ali estava obrigado a nada.
Lugar de reencontro consigo, qualquer dia, numa busca de acerto de
consciência, a sergipana confessaria tudo.
Por enquanto ela estava em fase de estudo. Depois iria despontar a
maravilha que guardava no seu íntimo. Todo dia a rotina, de levantar cedo,
tomar o café, banho de sol e ir para sala de terapia, onde se ouvia o
profissional.
- Eu estava crente que se conseguisse passar um dia, eu passaria
adiante.
Sobre esse fato, Edu anotara no diário: Em, 23/09/15: Fiquei quase
um ano sem beber, até que no dia da vitória de Dilma para presidente, de
alegria tomei uma “boa dose” de cachaça, que deveria ser só aquilo, e tudo
acabou voltando de forma mais exagerada, a ponto de ter que procurar tratamento
aqui, com apoio da família, e compreender a minha doença e saber da importância
de evitar o primeiro gole.
- Você viu ontem à noite a volta de Rodrigo Reis? Teve recaída, voltou.
- Eles não deram alguma previsão pra você?
- Dizem que não estou preparado.
Edu ainda estava vencendo a
cantilena de ir embora, mas faltava muito pelo visto. Nesse dia, ele fez
anotação no seu diário, apanhado por Flávia, que balançava a cabeça concordando
enquanto lia:
Em, 29/09/15.
Sempre que eu cessava o hábito diário de beber, minha esposa,
feliz, comentava com as pessoas "graças a Deus, agora é para o resto da
vida", porém eu discordava, até que voltei ao vício em um ritmo mais
intenso (compulsividade). Comecei a refletir sobre como poderia finalmente
acabar com aquilo, pois não podia mais acordar todas as manhãs já embriagado
para enfrentar o dia, que passava como um acumulado de momentos perdidos e não
vividos plenamente, causando danos à minha saúde. Foi então que decidi vir para
esta casa, com o apoio total da minha família, onde descobri que no meu caso se
trata de uma doença progressiva, cuja recuperação depende da aceitação
(rendição), o que finalmente aconteceu durante o meu tratamento. Agora, conto
com a ajuda da força de um Poder Superior, além da minha própria vontade, da
literatura e dos terapeutas, pois há um mundo inteiro à minha frente e muito a
ser conquistado.
Flávia fechou o caderno e o entregou a Edu:
- Você
já está perto de nos deixar, cara.
Tempos
depois, Edu recebia de volta o caderno
com as anotações do terapeuta Edson,
confirmando as impressões de Flávia:
Em
23/10/15: A vida surpreende em todos os
momentos. Agora é só você mostrar que é capaz. Só por hoje! Edison.
Ia fazer um período de noventa dias quando resolveram acolher o pedido de Edu. Nesse dia, apareceram informações de Flávia: uma notícia ruim e outra de compensação: amanheceu, sem a sergipana (a mãe viera buscar na noite anterior), mas Edu recebia espontaneamente de Flávia um beijo na boca. Era a compensação.