segunda-feira, 29 de julho de 2024

Flávia

 


 

Além de Edu ser voto vencido, eles realmente tinham razão: duas semanas de internamento não eram suficientes. Referia-se ao serviço de tratamento e a torcida de familiares e amigos:    

- Isso mesmo, hora que você ficar bom, você vem pra casa.

Era o apoio, a solidariedade. Estava ali numa das áreas ajardinadas, escutando Flávia ao violão, martelando o verso: o Sol vai renovar a vida. Era uma composição que Edu fazia junto com ela. Inspiravam-se na chegada da colega sergipana, que entrara meio às apalpadelas até que com o Rivotril acabou dormindo ali mesmo na grama do jardim, sob o sol leve da manhã, antes de ser carregada para dentro. Flávia sabia desse detalhe e caprichava no choro:

amanhecer mal amanhecida

procurando braços para dormir

procurando casa que ficou pra trás

um travesseiro cheio de paz

                       

- Legal como você consegue captar os dois momentos, de chegada e de alento – era a pausa para um breve comentário de Flávia..

-  A garota é um avião, Flávia, Daqui a pouco ela chega para tomar um sol – disse Edu.

- De tanto ouvir o refrão? – brincou Flávia.

– Ih, ela vem chegando! – encerrou Edu.

A garota veio sem perder o molejo:

- Você me empresta um cigarro? – aproximou o Monumento, de short, cujo sergipano carregava no sotaque.

Acendeu o cigarro. Sem tremedeira nas mãos, observava Edu, a garota se retirou para fumar debaixo de uma árvore adiante.. Edu, em particular, encarou a colega Flavia para explicação do caso:

- Álcoo?

- Não. Cocaína.

Flávia passou a ficha da sergipana. Começara como manequim, porém, no primeiro sinal, a família aconselhou-a a afastar-se de alguns amigos e da droga.

- Seria uma tragédia com uma garota dessa estampa.

- Oh, dessas é que não falta, meu irmão. O caso é parecido com o meu.

O caso de Flávia envolvia maconha. Então, Edu falou:

- Sua família cuidou a tempo, hein?

- Contaram pra mim mãe que seu estava com uma turma que fumava.

- E era verdade?

- Admiti. Ela me falou que pagava tudo para eu parar. Aproveitei o recesso na faculdade e vim pra cá.

- Então, viva sua mãe, mandar você pra mim. Você é jovem, quarto semestre de Letras, não é? Uma parceira de composição.  Uma atriz de futuro,  garota.

Mas ninguém ali estava obrigado a nada.  Lugar de reencontro consigo, qualquer dia, numa busca de acerto de consciência, a sergipana confessaria tudo.  Por enquanto ela estava em fase de estudo. Depois iria despontar a maravilha que guardava no seu íntimo. Todo dia a rotina, de levantar cedo, tomar o café, banho de sol e ir para sala de terapia, onde se ouvia o profissional.

- Eu estava crente que se conseguisse passar um dia, eu passaria adiante.

Sobre esse fato, Edu anotara no diário: Em, 23/09/15: Fiquei quase um ano sem beber, até que no dia da vitória de Dilma para presidente, de alegria tomei uma “boa dose” de cachaça, que deveria ser só aquilo, e tudo acabou voltando de forma mais exagerada, a ponto de ter que procurar tratamento aqui, com apoio da família, e compreender a minha doença e saber da importância de evitar o primeiro gole.

- Você viu ontem  à noite a volta de Rodrigo Reis? Teve recaída, voltou.

- Eles não deram alguma previsão pra você?

- Dizem que não estou preparado.

 Edu ainda estava vencendo a cantilena de ir embora, mas faltava muito pelo visto. Nesse dia, ele fez anotação no seu diário, apanhado por Flávia, que balançava a cabeça concordando enquanto lia:

Em, 29/09/15.

Sempre que eu cessava o hábito diário de beber, minha esposa, feliz, comentava com as pessoas "graças a Deus, agora é para o resto da vida", porém eu discordava, até que voltei ao vício em um ritmo mais intenso (compulsividade). Comecei a refletir sobre como poderia finalmente acabar com aquilo, pois não podia mais acordar todas as manhãs já embriagado para enfrentar o dia, que passava como um acumulado de momentos perdidos e não vividos plenamente, causando danos à minha saúde. Foi então que decidi vir para esta casa, com o apoio total da minha família, onde descobri que no meu caso se trata de uma doença progressiva, cuja recuperação depende da aceitação (rendição), o que finalmente aconteceu durante o meu tratamento. Agora, conto com a ajuda da força de um Poder Superior, além da minha própria vontade, da literatura e dos terapeutas, pois há um mundo inteiro à minha frente e muito a ser conquistado.

            Flávia fechou o caderno e  o entregou a Edu:

- Você já está perto de nos deixar, cara.

Tempos depois, Edu recebia  de volta o caderno com as anotações do terapeuta  Edson, confirmando as impressões de Flávia:

            Em 23/10/15:  A vida surpreende em todos os momentos. Agora é só você mostrar que é capaz. Só por hoje! Edison.  

          Ia fazer um período de noventa dias quando resolveram acolher o pedido de Edu.  Nesse dia, apareceram informações de Flávia: uma notícia ruim e outra de compensação: amanheceu, sem a sergipana (a mãe viera buscar na noite anterior), mas Edu recebia espontaneamente de Flávia um beijo na boca. Era a compensação.

         

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