sexta-feira, 19 de julho de 2024

De faróis baixos

 


 Antes de ser admitido em uma clínica de repouso, ele estava desorientado. Isso ocorreu durante um retiro noturno. Ao chegar, alguns amigos o orientaram sobre onde estacionar os carros, que estavam espalhados em frente à casa principal da fazenda. Outros mostraram os quartos disponíveis. Ele passou por grupos de pessoas conhecidas, um deles jogando, outro dançando no quintal. Mais adiante, perto da cozinha, havia um grupo responsável pela comida e distribuição de bebidas em porções.

- Fique à vontade, gente – era a ordem do dia, ou melhor, da noite.

Edu se infiltrou por entre veículos mais afastados e deparou com Nero, tomado e choroso da vida:

- Fique com ele aí um pouquinho – alguém lhe passava o bastão.

Olhou bem o rosto opaco de cachaça de Nero e conseguiu tirar dele um cumprimento frouxo:

- Olá, cara.

Nero estava com os faróis das vistas apagados. Um desencanto. A esposa sabia cuidar bem da chumbação silenciosa do marido. Veio de lá com um cobertorzinho (manta de algodão) e estendeu para ele na poltrona de um FIAT-147, onde ele por certo se acamaria.

- Boa noite, Nero. Boa noite, quem é esse?

 - Edu – correu a se apresentar.

- Boa noite, Edu.  Desculpe, é que estava meio escuro.

- De nada, Leninha. Deixe comigo. Boa noite.

Leninha era muito educada. Para ela, a educação era essencial, assim como uma rotina diária. Além de lidar com alunos adolescentes, ela também tinha que cuidar de Nero, seu companheiro e pai de filhos já crescidos, que trabalhava, mas reservava um dia da semana para a cachaça e era sempre o mesmo filme. De alguma forma, eles conseguiram construir uma família.

Edu percebeu um jovem e uma jovem vestidos com trajes típicos ajudando Leninha nessa tarefa de mãe preocupada. Ali, naquele espaço ao ar livre, sob um céu de festa junina, onde uma fogueira ardia e fogos de artifício estalavam, a vida se desenrolava de forma animada, ao som contagiante vindo do quintal:

                                         Olha pro céu meu amor

veja como ele está lindo

 

Antes de tomar mais um gole, Edu triscou com seu copo no do novo parceiro:

- Um brinde à vida, Nero.

Edu observava sua vida refletida na de Nero. As esposas de uma mesma linhagem desempenhavam papéis semelhantes. Seus filhos, cuidados pela mãe, seguiam os costumes familiares da região. Devido ao crescente egoísmo que emanava de ambos, surgiam perturbações psicológicas. Não estariam elas sujeitas aos desvarios diários dos parceiros? Em Leninha, uma mulher de quarenta anos com traços de beleza, viam-se as marcas dessa resignação. Essa constatação trazia à mente trechos de uma carta encontrada dentro da caixa de violão havia anos, cuja bela e triste caligrafia ecoava na alma como uma navalha:

Edu, como gostaria de poder te ajudar. Não acho normal o seu comportamento diante da bebida. Tudo em excesso prejudica. Você não gosta que fala, mas não posso ficar calada. Você já está sendo prejudicado em todos os aspectos da sua vida. Só você que não percebe. Estou muito triste da minha vida. Você é meu marido, o homem que escolhi para viver, construir uma família.

Estava nas nuvens, numa imersão astral, quando sentiu, amargo sorriso, a mão de Nero em seu ombro:

- À vida, parceiro.

Quando retornou para sua casa, telefonou para a mãe e pela primeira vez, sem mais deboche, admitiu sua real situação:

- Mãe, aquela internação numa clínica que a senhora tanto falou pra mim ainda está de pé?




-  Mãe, aquela internação numa clínica que a senhora tanto falou pra mim ainda está de pé?

Nenhum comentário:

Postar um comentário