- Fique à vontade,
gente – era a ordem do dia, ou melhor, da noite.
Edu se infiltrou por
entre veículos mais afastados e deparou com Nero, tomado e choroso da vida:
- Fique com ele aí um
pouquinho – alguém lhe passava o bastão.
Olhou bem o rosto opaco
de cachaça de Nero e conseguiu tirar dele um cumprimento frouxo:
- Olá, cara.
Nero estava com os
faróis das vistas apagados. Um desencanto. A esposa sabia cuidar bem da
chumbação silenciosa do marido. Veio de lá com um cobertorzinho (manta de
algodão) e estendeu para ele na poltrona de um FIAT-147, onde ele por certo se
acamaria.
- Boa noite, Nero. Boa
noite, quem é esse?
- Edu – correu a se apresentar.
- Boa noite, Edu. Desculpe, é que estava meio escuro.
- De nada, Leninha.
Deixe comigo. Boa noite.
Leninha era muito educada. Para ela, a educação era
essencial, assim como uma rotina diária. Além de lidar com alunos adolescentes,
ela também tinha que cuidar de Nero, seu companheiro e pai de filhos já
crescidos, que trabalhava, mas reservava um dia da semana para a cachaça e era
sempre o mesmo filme. De alguma forma, eles conseguiram construir uma família.
Edu percebeu um jovem e uma jovem
vestidos com trajes típicos ajudando Leninha nessa tarefa de mãe preocupada.
Ali, naquele espaço ao ar livre, sob um céu de festa junina, onde uma fogueira
ardia e fogos de artifício estalavam, a vida se desenrolava de forma animada,
ao som contagiante vindo do quintal:
Olha pro céu meu amor
veja como ele
está lindo
Antes de tomar mais um
gole, Edu triscou com seu copo no do novo parceiro:
- Um brinde à vida,
Nero.
Edu observava sua vida refletida na de Nero. As esposas de
uma mesma linhagem desempenhavam papéis semelhantes. Seus filhos, cuidados pela
mãe, seguiam os costumes familiares da região. Devido ao crescente egoísmo que
emanava de ambos, surgiam perturbações psicológicas. Não estariam elas sujeitas
aos desvarios diários dos parceiros? Em Leninha, uma mulher de quarenta anos
com traços de beleza, viam-se as marcas dessa resignação. Essa constatação
trazia à mente trechos de uma carta encontrada dentro da caixa de violão havia
anos, cuja bela e triste caligrafia ecoava na alma como uma navalha:
Edu, como gostaria de poder te
ajudar. Não acho normal o seu comportamento diante da bebida. Tudo em excesso
prejudica. Você não gosta que fala, mas não posso ficar calada. Você já está
sendo prejudicado em todos os aspectos da sua vida. Só você que não percebe.
Estou muito triste da minha vida. Você é meu marido, o homem que escolhi para
viver, construir uma família.
Estava nas nuvens, numa
imersão astral, quando sentiu, amargo sorriso, a mão de Nero em seu ombro:
- À vida, parceiro.
Quando retornou para
sua casa, telefonou para a mãe e pela primeira vez, sem mais deboche, admitiu
sua real situação:
- Mãe, aquela internação
numa clínica que a senhora tanto falou pra mim ainda está de pé?
- Mãe, aquela internação numa clínica que a senhora tanto falou pra mim ainda está de pé?
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