A vez que Tatau ficou fraco da cabeça
Seu Zé de dona Dezinha espantava as moscas da
prateleira. Assim, ao lado, na outra ponta do balcão, próximo à porta que
comunicava venda com residência, dona Dezinha, como de costume, carregava os
dias entre o pedalar da máquina de costura e a pausa para ir lá dentro espiar
as panelas no fogo. Era perto de meio–dia. Foi quando ali apareceu o roceiro
Tatau, um tipo alheio e de poucas palavras.
Pediu sabonete Lux, pasta de
dente colgate (imagine!), mais outros
trens e coisa e tal.
Seu Zé assoviava uma cantiga qualquer, do tempo
dele moço, enquanto ia apanhando os produtos para fazer aquele embrulho, que,
ali no comércio, era umas das suas marcas registradas.
Entregou a mercadoria ao freguês e, ainda com a
boca em formato de assovio, esperou pacientemente pelo dinheiro, cujo
valor indicava com os dedos. Mas Tatau,
como se isso não fosse com ele, simplesmente virou-se para sair. E estacou a um
passo e meio, já quase à porta de saída, ante o grito de seu Zé:
- Hei! O
pagamento, moço!
Tatau se voltou e, com a maior naturalidade do
mundo, sapecou uma resposta que, dali para frente, o deixaria marcado por toda
vida:
- Agora!...Pagar como? se eu venho me deitando com
sua mulher sem nunca ter cobrado nada?
O formato de assovio pareceu escapar pela primeira
vez da boca de seu Zé, com o que fulminado por uma descarga elétrica. dona
Dezinha, que acabava de cortar nos dentes a linha da costura, arregalou tanto
os olhos que lhe caíram os óculos.
- Olhe ela aí, pode perguntar se não é verdade.
Por aquela seu Zé não esperava nunca. Vendo que o
homem endoidecera de vez, pediu que se retirasse sem precisar pagar a
mercadoria.
- Pode ir embora. Vai... vai... vai... não precisa
pagar nada não. Vai... vai... - tangia com a mão.
Dona Dezinha, ranzinzazinha que sempre fora, dava
socos na própria mão e dizia:
- Não dá, José, não dá... desaforo... desaforo...
- Dou sim, pode ir... vai... vai.
Tatau apertou contra o peito o embrulho e se
retirou, todo posudo, sorriso de descaramento, seguido da molecada que, sabe-se
lá como, surgira à beira da porta.
A notícia se espalhou rápido pelos quatro cantos da
cidade: Tatau tinha ficado doido. Espalhar é modo de dizer, porque adiante, sempre
escoltado pela molecada, Tatau entrou na venda de dona Dircinha, desprevenida,
e aprontou mais uma. Pediu um pacote de bolachas palito. A mulher atendeu ao
pedido e esperou pelo dinheiro. Tatau ia saindo, quando dona Dircinha (se
arrependimento matasse!) gritou acenando com os dedos:
- O dinheiro, seu Tatau...
- Agora?! E ocê acha que eu vou pagar? Quantas
vezes eu já te peguei na cama sem cobrar um centavo? Hein? Quantas? Esse
molecão mesmo, que tá aí no chão se arrastando, é meu. Eu que fiz.
- Meu Deus! Suma já daqui, Satanás! - gritou dona
Dircinha com as mãos no rosto.
A cidade fervilhava em comentários. Como é que podia de uma hora para outra uma
pessoa calada, aparentemente séria, como Tatau, enfraquecer por completo da
cabeça?
Foi parar na cadeia, é claro. Cá fora a molecada
ensaiava um tímido movimento em favor de Tatau. Mas lá dentro o delegado mandou
que dessem umas correadas no descarado.
Antes de levantar a correia, o guarda municipal
mandou que Tatau tirasse a roupa. Quando Tatau se despiu, o guarda largou a
correia no chão e saiu correndo assustado:
- Cê bst’ôme!
Em termos de correia, a de Tatau era um assombro.