quarta-feira, 25 de setembro de 2024

 


Bonitinha

 

  

Era bonitinha e nada tinha de ordinária mas era como se tivesse.

 

No barzinho de costume, um toco de garota morena se sobressaía, desaparecendo e reaparecendo com seu pretume de cabelo curto. Pequena estrela durante a mesada de cerveja com amigas. Edu bateu o olho de paquerador. Ela estava perto de uma veterana conhecida que se dirigia ao balcão para pedir mais uma e percebeu o entusiasmo dele

- Não vai me apresentar à pequena? – indagou Edu.

A veterana deu sinal, a garota apareceu toda sorriso, short branco e blusa vermelha, limpinha e cheirosa:

- Olá, faz tempo que andava a sua espera.

Ofereceu o rosto para beijinhos.  Mas ele preferiu aproveitar o pé do ouvido dela e segredar:

- Preciso te ver, Cabelo Preto.

- Também – ela disse.

Notou que ela tinha receio, porque deixara o garoto, patrocinador da farra deles, quase sozinho à mesa. Edu não deu preço as dores do moleque e procurou cercar de atenção a garota. Foi logo aconselhado pelos mais velhos a evitar uma crise climática no local. O enfurnado se achava dono. Edu, ao contrário, mantinha-se inarredável, firme no seu propósito festivo, ignorando as dores alheias. Aproximava-se de uma típica briga de bar. Mas Edu não levava jeito de mocinho. Deixava que o rival destilasse irritação. O velho que tentava conter Edu dizia tratar de um marceneiro, endinheirado de momento. Num vacilo dos contendores, Edu tratou de  encontrar depois com a garota .

 Foi o que ocorreu quando, outro dia, passando pela mesma rua, topou com um capacete que escondia asas de graúna, mas que dele se livrou, para receber recados e voltar para seu esconderijo:

- No posto de gasolina,  daqui a meia hora – disse Edu, passando com o carro rente.

E lá se foi  num rasgado a lambreta com  garota cheirando a lavanda pós banho vespertino.

 Ali, a Graúna encontrou abrigo para sua lambreta e adentrou o carro de Edu sem pressa. Desde então, passou a ser sua dama de honra temporária. Quando Edu estava em um barzinho, sua lambreta chegava.  Assim, ia ele colhendo figurinhas de montar o quebra-cabeça dela, que era órfã.

- Recebi minha casa, com um barzinho, de herança.

Tomou conhecimento de que ela enfrentara problema de menoridade com o Ministério Público..

- Você foi abusada, mas não gosta de falar, é isso?

- Apareça por lá, Edu: comidinha boa, cervejinha gelada e eu – disse para mudar de assunto.

- Quem vai lá?

- A turma da gente e pessoas comuns.

Uma espelunca, soube depois, com infiltrações quando chove. E o negócio era só fiado, que resultava em prejuízo, não mensurado mas de efeito corrosivo.

- Por que você não aluga pra alguém do ramo o barzinho?

- Já aluguei uma vez. Tive que retomar.

Ela precisava de um companheiro forte. Graúna não tinha comando. Inspirava cuidados especiais, no final era uma pródiga. Ela era bonita e tinha tudo para ser comum, mas era uma moça de caráter nobre. E Edu começou a acolher sua visita como uma demonstração de afeto. Por exemplo, enquanto estava em outra cidade bebendo com amigos, ela viajou de moto sozinha para se juntar a ele no final.

- Foram doze cervejas; três foram pagas pela namorada de Edu – contava, confundida, a dona do barzinho.

  

Outro ato de demonstração de afeto de Graúna se deu quando ela apresentou a ele uma amiga, que se sentou à mesa com eles. O dia parecia morrer nas serras ao longe. A garota, desentendida com os pais, aguardava resultado de exames. Viera de outra cidade e ia se hospedar onde senão na espelunca de Graúna.  Edu completou a cerveja dos copos e deu um bico no seu.

- Combinamos, eu e sua amiguinha – disse.

- Ela está grávida, você contou pra ele? – dirigiu-se à amiga.

Edu não esperou reposta e falou:

- Eu acho mais bonita assim.

- Então vamos os três.

                Tudo somado, serviu pata selar uma amizade.

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 22 de setembro de 2024

Adilce

 


 

Ele se recordava dela frequentemente ao lado de colegas. Nem muito melancólica nem excessivamente feliz, mas de sorriso fácil. Na verdade, seu rosto era o que mais acompanhava nessa recordação. Não se sobressaia pela beleza, mas por ser uma jovem comum, companheira. Não havia presunção nela, que prezava pela discrição. Começando pelo vestuário. A exuberância de Adilce só existia na imaginação de quem a admirava sem saber, como agora recordava Edu. Não nascera para ser líder, mas para prestar uma assessoria de primeira qualidade. Descoberta tardia, mas válida, enquanto vida. Tantos passes desperdiçados!  Vez ou outra vira Adilce erguer o braço e fazer uma observação para tirar dúvida. Seria ela uma aluna dentro da média, sem sinais de um segredo.

Também ela seria a garota respeitada do bairro. Espécie de orgulho adormecido. Falariam dela, não espontaneamente, mas se alguém provocasse, a propósito de algum assunto. Fora daí não havia o que ecoar. Só Edu podia tardiamente conhecer seu âmago. E ficar querendo lhe dar explicações, chamando-a a um canto de sala:

- Posso lhe dizer o seguinte, Adilce: – dizia Edu ao pé de ouvido, em contato com seu cabelo curto, que, ao seu arrepio, aproveitava o cangote para cumprimento com um beijo.

Ela se limitaria ao sorriso de sempre e a um volver de ombros, como se falasse com ele o trivial.  E esse quadro ficava assim se repetindo, em lampejos de Adilce em meio aos colegas de sala.

Quantas vezes, Edu não a tivera  ali por perto e nada fizera? Deveria ter convidado Adilce para uma cerveja, uma boa conversa, quem sabe?

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

 

Esperando no Studio

 

A cunhada dele, envolta em uma toalha de banho, abriria a porta do Studio, permitindo que Edu entrasse e aguardasse na antessala. Esse pormenor da toalha não estava previsto no acordo com o proprietário do Studio. Mas qual era a sua relevância agora? Foi lance rápido, como pedia a circunstância. E nada a acrescentar senão cenas, em devaneio, de um ato de loucura.

A campainha soou umas duas vezes. Na segunda, um barulho de chaveiro foi ouvido. Em seguida, uma porta de vidro se abriu e a estaca de uma Deusa surgiu em frente, enrolada numa toalha branca e exalando forte odor de sabonete. Com um sorriso no rosto. Sem pedir desculpas, pela aparente normalidade, parecia estar à procura de alguém. Edu, de repente, viu o portão se fechar e a toalha, perto dele, se soltar do corpo, como o invólucro de um bombom.

A propósito, o que iria mesmo fazer ali? Lembrou-se então que tinha que botar voz definitiva numa gravação já aprontada por Tadeu dos Teclados. Decerto que ele andara tecendo elogio ao seu talento, que apareceria para gravar uma composição sua. Tinha mesmo que aguardar, o que talvez justificasse a exagerada receptividade.

Ela tão garota e ele tão entranhado em anos!

- Mas esses meninos de hoje não dão liga para isso não – reclamaria egoisticamente Edu.

Cairiam então sobre o sofá, que sofreria um bocado na fúria com que se encontrariam. Bonita a manchete do outro dia: homem ataca moça em recepção de Studio. Mas aí, irmão, até explicar que beiço de jegue não virou chiclete...

- A história seria outra – era o que rolaria de conversa de rua.

Mas a beleza da garota seria digna de homenagem.

- De até, respeitosamente, encomendar missa pelo sucesso alcançado – completaria a conversa de rua.

Um corpo de garota recém saído do banho, excedendo a fragrância, em sorriso aberto, num afundar-se macio para a vida, só daria azo a essas imaginações, na mente de um boêmio em decadência como Edu.

Quando se reergueu, notou que a ninfeta desaparecera com a chegada de Tadeu, que entrou na saleta e, no trivial, chamou:

- Edu, pode entrar.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

 

Uma colega sergipana

 

 

Ela possuía um corpo impecável, embora pequena, sem esconder segredos sob suas sedosas madeixas e com um leve sotaque sergipano em sua voz sedutora. Com apenas algumas palavras, já chamava o noivo de “Carneirinho” em todos os lugares. Era assim que se referia a ele, o proprietário de um chevete novo que se destacava na escola e, em parte, com ar de proprietário também da pequena. Daí a razão de falar pouco e apenas com poucos. Ítalo, tímido, arrastava sua carteira na direção da garota silenciosa, que lhe parecia diferente. Sobre o carro, ele concordava com os pais:

 - Enquanto não passar no vestibular, não quero ver filho meu se exibindo ao volante.

Ele não alimentava nenhum desejo real por carro, e observava, com total naturalidade, o ciúme que Carneirinho despertava entre os colegas. Sentar-se naquele canto não era por atração por Carneirinho, mas por consideração pela sergipana, com quem mantinha uma conversa tranquila,

Um dia, quando Ítalo mal se sentou foi logo recebendo notícia forte:

- Gente, o papa morreu –  alguém impôs silêncio na sala.

         - Ôxe, de novo? Isso foi há um mês atrás, cara  - disse Ítalo,

- Deu na TV agorinha mesmo, morreu o outro, João Paulo I.

-  Ôba, o colégio vai feriar – pilheriou Carneirinho.

         - Fale então com sentimento; é pecado falar assim, cara – censurou  Ítalo.

- Não sou religioso – retornou Carneirinho.

- Também não, mas por princípio somos católicos.

- Verdade – disse a sergipana.

Viu a palavra sair dos seus lábios,  e se encheu de felicidade com a concordância em sergipano. Ainda bem que os colegas levaram João Carneiro Aquino para a área de recreio, rumo da cantina, de onde voltaria soprando um copo de café, como ato preparatório para o cigarro longo que costumava trazer na algibeira.

Iria voltar depois do feriado e, durante o papo, num vacilo de Carneirinho, aplicar um beijo na sergipana, porque carregava consigo um interesse platônico por ela, que era bonitinha, de boca bem desenhada. Perpassavam-lhe esses pensamentos, mas nada tinha a oferecer para a garota, sequer uma prenda, senão sua simpatia. O outro pelo menos tinha um carrinho transado e a ginga do chaveiro nos dedos. Mas descobria então essa afinidade brotando entre eles, Ítalo e sua colega nova. Se não vencia pelo menos arrefecia aquele entusiasmo dela.  Preparava-se para um beijo de ocasião, que era para haver e não houve.

Quando voltaram na semana seguinte, que se encontravam às sós, numa situação temerária, rostos quase alinhados, o que houve foi um anticlímax.  Ítalo se lembrou da festa desfrutada na noite passada (Forró dos Estudantes) que lhe deixara numa ressaca dos diabos,  ao ouvir da sergipana:

         - Êta, que cheiro de cachaça!

domingo, 8 de setembro de 2024

Mulheres que somem

 


 

Mulheres que somem. Gustavo teve umas tantas, que a caixa de saudade se encheu delas e travou, Somem de vez ou na poeira do tempo. Como, por exemplo, Branquinha, que ninguém sabia por onde andava. Havia nomes e números. Essa, por exemplo, era a de no. 3. Outras Branquinhas também existiram e chegaram a passar por ele. Nessa tentativa de organização, algumas escapuliram e se perderam. Essa tinha três filhos pequenos. A explicação que prevalecia era que dela eram só dois, o  outro era irmão caçula deixado pela mãe.

- Olhe lá sua Branquinha – apontava o garçom, colega de trabalho dela.

Não se exibia, mas nela podia-se perscrutar um corpo sarado de elegante  mulher. Tinha que se virar, dar o duro, prestar serviços de auxiliar de restaurante, quando era tolerada no voltar para casa com suas trouxinhas de comida. Depois, á noite, tinha que se virar num trampo de frentista do posto de gasolina. No mais, arrumar uns trocos em outros serviços e até enfrentar galanteios, nos limites dos descaramentos, que com ela ninguém podia se fazer de besta.

Freguês assíduo do estabelecimento, Gustavo acompanhava o esforço de Branquinha. Tal a liberdade, que um dia, numa brincadeira de gata ladrona, ela roubou de Gustavo uma nota alta.  Quando se ergueu para ralhar com ela, avistou sua estampa vindo  de lá com uma filharada. No detalhe, a irmã no apoio, ajustando as roupinhas das crianças. Mas, nesse particular, observava-se a maldade dos fregueses:

- Dizem que a irmã dela é que é descaradinha.

Gustavo falava “roubou” para ela desconfiar e devolver sua grana, mas falou mais alto o instinto maternal da gata ladrona, com a escada de filhos pequenos para cuidar. Foi pelo bom senso que Gustavo decidiu. Após ela, pretextando dar o caso por encerrado, resolver empurrar Gustavo com a bunda. A maravilhosa Branquinha  não deixava que se ultrapassasse, que se fosse adiante. Também dela se sabia pouco.

Despedia-se da filharada e, rumo à cozinha, vestia um avental com a elegância de uma mamãe gata.  À noite, apareceria de macacão de frentista para, como quem distribui agrados, relativizar as estapafúrdias cantadas que levava.