- Duas de Manda Chuva e uma de Cavaleiro
Negro num Almanaque Disney?!
Trocou com quem?
Ninguém sabia. O que importava
era o gibi ali na minha mão. Ia ser devorado lá para dentro. Primeiro, deixar
pronto o dever de casa no alpendre, onde costumava, sub-reptício, receber
amigos. Todo mundo sabia que o amigo seria expulso logo que algum adulto da
casa - a mãe, a tia, a empregada - se aproximasse. Tal o clima de terror, que
sempre perpassava uma imagem de suspeito de coisa errada, ainda que não fosse o
caso:
- Moleque!
E de moleque só ficava o vulto
- “pernas-pra-quê-te-quero”! Era numa dessas manhãs em que aparecia
Dominguinhos. Chegava e do mesmo jeito saia. Com sua canhota, que se diziam
certeira, e era verdade, como pude testemunhar por várias vezes.
Ele nunca fora de briga, mas
por conta das injunções da época, era forçado a isso e levasse lá uma porrada
dele para se vê. Chutava, era o nosso Rivelino no time de rua. Ponta esquerda,
tinha o canhotaço. E acabou que ficou mesmo só o vulto de Dominguinhos.
Desaparecera ao pressentir a aproximação de Luísa, uma tia que, por ser uma
adolescente, não recebia o tratamento reverenciado como os demais, mas
procurava se impor.
- Esse moleque não estuda, não toma banho, que
vocês querem com ele?
- Gibi emprestado, acudiu
Louro, um colega vizinho com quem eu fazia as tarefas.
Luísa
fez um ruummm que indicava suspeita naquela manhã de sol tênue, mas a gente nem
queria saber disso. No meio da molecada era um sucesso. Onde se achava revista
de Tex que Orlando tanto adorava?
-
Essa novinha de TEX foi Dominguinho
que me emprestou, dizia o próprio Orlando especando qualquer reação nossa.
Ou
por outra, alguém dizia:
-
Arranjei com Domingo, cara.
Reparando bem, Dominguinho
vinha se firmando como novidade nesse lance de troca de revistinhas.
-
Domingo nem sabe ler! observava Luísa, mordaz, ligada no assunto.
Tal
era o costume entre a turma, que não tivéramos essa conclusão. Normalmente
recebia e passava revistas, de um moleque para outro, com estalo indagador
quando despertava interesse. Notava-se que aos poucos ia aparecendo nas
conversas o nome do companheiro de brincadeira de rua, de outras modalidades,
não nessa do círculo de leitura de gibis.
Na linguagem atual, ele vinha bombando.
A gente sabia que o pai dele, gari, era um alcoólatra, e a mãe uma
destemperada prostituta, não tinham esse cuidado com o menino, que foi
crescendo com mais liberdade, sujeito aos riscos de sua auto defesa, com
resistências de um gato do mato, rusticidade que me faltava na minha
pré-adolescência, tanto que isso seria também tomado emprestado do meu amigo
Domingos. Ele era um ano mais velho que a gente e não frequentava escola, sem
nenhum alarde na época. Era bom em quase tudo, no estilingue, no jogo de gude,
como artista de filme, no trapézio de cirquinho, ninguém melhor no
esconde-esconde do que ele. Jogava sinuquinha (tinha um), com as bolinhas de
gude azuis de números colados de início,
com quem aprendi a usar o taco como se fosse um canhoto.
Era um soldado pronto para a
guerra e nisso distinguia-se de todos nós que não estávamos de prontidão. A não
ser nas brincadeiras de mocinho e então matava-se com tiros de boca: - tchiééé.
O baleado caía morto, conforme o combinado. Só que Davi, meio desaforado, era
um bandido apanhado finalmente por Domingo, que fazia papel de um artista que
dava ordem de prisão. Davi, se achando o máximo, preferiu ficar no alto do pé
de madeira nova sem atentar para o
combinado.
A mão certeira de Dominguinhos
numa flechada na testa e, para completar nosso espanto, Davi tombou no chão com
sangramento, sem rebuliço algum, e sem saber agora como terminou a brincadeira.
Salvou-me, me livrou de morrer
afogado na lagoa, quando fui tomar pé e ele percebeu que eu estava me afogando
e no meu desespero me puxou pelo cabelo,
mas o que mais me marcou foi ele entrar no esquema do círculo de leitura de
gibis sem saber ler, só para emprestar para nós as revistinhas por puro prazer.
E eu adorava Cavaleiro Negro, sem saber que meu verdadeiro herói era ele, Dominguinhos.
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