sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A machadinha

 


 Para Dr. Robério Alves Neves

 Início do segundo ano primário. Aglomerado de alunos no corredor de acesso à sala de aula, naquela manhã de 1970. Um menino, chorando que fazia um horror, sendo arrastado pelo braço da mãe me chamou logo atenção.  Causou-me estranheza, na verdade. Fiquei meio envergonhado por ele.

- Oxe, como é que chora se está indo para escola?! pensei dentro de meus sete anos de idade. Mas ao tempo que me achei assim com minha responsabilidadezinha me achei também com certa inveja: - Ué! E podia chorar assim! Menino maluco! fotografei dele essa imagem, com os detalhes da mãe  arrastando o moleque de cabelo loirinho pelo braço, que dava seu showzinho logo cedo.

E esse menino loirinho iria para minha turma. Com quem fui pegando um pouco de rusticidade ao longo dos estudos que desenvolveríamos pela frente.  Em andar pelas ruas, jogar biroscas, pegar luta, tomar banho nas barragens escondidos dos pais e saber manejar o estilingue (pelo que nunca fui de tomar gosto). Escondido dos pais! Descobri que os pais dele eram velhos. Pudera! Aí  era fácil de driblar. Não eram como os meus.

Tomando banho num fim de tarde, um vento batendo solitário, longe de casa, mas preocupado, e alguém falava:

- Olhe sua mãe aí, cara.

Você pensando em brincadeira de menino, quando menos se esperava era sua mãe mesmo, com uma sandália na mão aproximando para pegar para bater. E você ia lá imaginar que sua mãe estava ali no meio do mato?

Quanto à maluquice, que parecia ser o charme dele, tirava isso para lá. Depois a gente foi aos poucos se conhecendo a ponto de estudarmos juntos para a prova de admissão, num só livro, à luz de candeeiro que amanhecera numa cadeira perto da cama. Esforço infantil que resultou contemplado com nota cinco para ambos e com advertência do diretor do ginásio, nosso vizinho:

_ Vocês passaram, você e Rock, mas me prometam não fazer a prova final da escola.

Ninguém iria lembrar daquela professora chata. Esse é o termo: chata. Nessa ocasião, minha briga particular passou a ser com Rock, ele tirara nota 5,0 e eu 5,2. Era ligeiramente melhor.

- Quem é Orlando Prado Martins?

Antes que a gente pensasse nalgum possível mal feito de Orlando, o diretor completou:

- Diga a ele que meus parabéns! Primeiro lugar: 8,5.

Mais um na incipiente turminha de ginásio, que formaríamos a partir dali, do primeiro ano ginasial, ao lado de Paulo de Nonô, o cara (ficou com esse apelido porque brigava  fácil  e como um não podia falar o nome do outro...).

Mas, no segundo ano, tivemos uns cadernos tipo brochura, de capa mole, com detalhes de atletas de Olimpíadas comprados na venda de Possidônio. Bonzinho para escrever. Então comprei uns dois na conta de pai. Num gesto de imitação de menino, ele resolveu levar um também, aproveitando a presença do pai, que acabou enfiando a mão no bolso e pagando os caderninhos. Foi quando observei que o pai dele, ao contrário do meu, era velho, mais relapso, por isso que ele vivia mais solto.

Mércia, filha de um homem rico, era nossa namoradinha. Nossa não. O máximo que aconteceu foi de eu passar a mão pelo cabelo arrumado dela. Mércia era namorada dele. Minha irmãzinha tinha dito qualquer coisa sobre ela preferir Rock. Oxi, não sabia Mércia que ele era maluco e andava com estilingue no pescoço! ‘Descobri que Mércia era maluca também, filha de um negociante raparigueiro que deixava a garota nas casas de conhecidos da cidade e a apanhava num opala verde no fim de tarde, depois de haver aprontado em bebedeiras nos bares em dia de feira.

Na casa de Rock tinha um sofá em que ele guardava as suas revistinhas de zorro a pato Donald.

- Cuidado!

A gente desencostava do sofá perguntando:

- Com quê?

E ele:

- Cuidado com a machadinha!

Eu sempre procurava descobrir que porra de machadinha era essa. E ele “cuidado com a machadinha”, ia passando e dizendo “cuidado com a machadinha”, que até hoje tenho essa sede de saber.

Já no início da adolescência, na turma da sétima série, descobrimos que Rock era pisciano, o que explicava mais ou menos a sua maluquice, quando, numa confusão de sala de aula, o professor, não habituado a resiliências, mormente com adolescentes, um dia apertava nossa turma:

- Faça o seguinte: ou aparece quem cuspiu no caderno do colega Rock ou todo mundo vai levar suspensão por três dias

O professor de inglês, além de pastor da Igreja local, era do Sul, de costumes e linguagem diferentes, meio xarope, considerava-se, e não ia voltar atrás.

Rock, numa confusão de meninos, de sacanagem, se queixara: “alguém cuspiu em meu caderno, professor! ”

O professor bem que tentou resolver, dando uma chance, mas quem é que queria se queimar perante a classe, para o professor se sair numa boa?

- Se não revelar o nome de quem cuspiu no caderno do colega Rock a turma toda entra em suspensão por três dias.

Estimulava a delação. Eu podia ser tudo, menos idiota de dizer “sou eu professor, livre a turma disso”, e Rock, com cara de “se arrependimento matasse”...

- O professor, acho que foi um passarinho desses que cagou na folha do caderno, deixe isso pra lá, disse olhando para o teto da sala, onde havia pardais.

Mas o professor não era da região, tinha outros costumes, então a turma B da sétima série ginasial de 1975 provou sua solidariedade ao colega e tomou uma suspensão de três dias.

Nessa ocasião, completaria meus catorze anos e, para o ano, iria estudar em Salvador, levando comigo o carinho desse gesto de apoio da minha turminha ginasial mas eu queria mesmo era saber da machadinha do sofá da casa de Rock.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário