domingo, 28 de abril de 2013

Segredo




Segredo



O gosto quente do café
não propriamente do aroma
que exala
nem do líquido grosso
goela abaixo
mas do antegozo
de um trago
do cigarro
que põe renovada a manhã


Fumar é tapear manhãs
que passam em nesga de sol
já não se renovam
apenas
no horizonte do lençol

Fumar é um alento
busca incessante
do instrumento
guardado intacto
que a gente nunca soube mesmo
como tocar

Fumar é um lamento

sábado, 20 de abril de 2013

Verão de 81


Verão de 81



Lugar: Salvador/Bahia. Época: verão de 81. Poder-se-ia acrescentar a ocasião: Festa do Rio Vermelho.
Todo mundo estudante, a gente mal podia chegar ao Farol da Barra. Mas a festa era no Rio Vermelho. E naquele dia havia chegado uns amigos. Estudantes em Belo Horizonte. Mas da cidade de Candiba. Inclusive parentes. Questão de honra. Poderíamos, quem sabe, ser depois bem recepcionados em Belo Horizonte. O entusiasmo falava mais que o bolso. Assim, curtir aquela festa não era coisa de muito sacrifício. Morávamos no Campo da Pólvora. Naquele dia, apareceu também no apartamento o amigo Léo. Era da Marinha Mercante. Vez por outra, estando seu navio em Salvador, costumava nos fazer uma visita. Apesar de carioca, tinha certa afinidade com a família por ter avós Candibenses. Coisa do tempo antigo. Sissi de tia Morena, esperto, teve a idéia:
- Bicho, Léo tá aí.
        - E daí?- perguntei.
- Temos moral, pô. É só você pedir o carro emprestado a sua tia na presença de Léo, que a gente vai curtir no Rio Vermelho.
Minha tia era Edna, que morava conosco. O carro era um fusquinha que ela havia adquirido naqueles dias com a ajuda de Osvaldo Dantas, seu pai, e a poupança que mantinha após o emprego recente.
- Você é maluco, Sissi?! Nem se Osvaldo Dantas mandar.
Malandro velho. Sissi foi firme:
- Vai por mim, porra; Léo tem a maior moral quando vem a sua casa.
Resultado: um fusquinha se dirigia ao local da festa com toda turma. Estávamos eu, Sissi, Lucivaldo, Léo e Bié, e toda recomendação de tia Edna.
Gente, carros, luzes e barracas; o som rolando naquele verão de 81. Por recomendação de Sissi resolvemos deixar o carro um pouco distante do local, numa ruazinha enladeirada (nenhuma novidade em se tratando de Salvador). Quando prosseguimos o resto do caminho à pé, inda voltei para trás e verifiquei que o bichinho estava ali bem estacionado e seguro, numa rua aparentemente morta.
Antes de escolhermos a barraca da cervejada, Sissi, o entendido, lembrando-se da recomendação de tia Edna, disse que eu era meio simples e que era melhor deixar a chave do fusca na tiracolo de Léo. Aliás, tiracolo naquela época ainda era moda. Eu também tinha a minha. Como todos apoiaram Sissi, eu não quis contrariar e dei a chave do fusca a Léo. E toma-lhe cerveja. Som, cores, o tempo fluindo sob o toque mágico da festividade do verão.
Foi ainda com o escuro que procuramos voltar para casa. Subimos a ladeira e constatamos felizes que o nosso carrinho se encontrava no mesmo local. O problema foi a chave. No meio da festa, todos cervejados, Léo havia se despedido e fora pegar um táxi até o porto, pois o navio sairia naquele horário. Culpamos Sissi, filho da mãe; a chave deveria ter ficado comigo mesmo.
- Faz ligação direta, porra – disse e se dirigiu à padaria que se abria em frente para tomar mais uma cerveja.
Foi uma trabalheira. Era impossível abrir a porta travada com o vidro suspenso e quebra vento fechado. Mas o santo dos boêmios veio em socorro. Forçamos um pouco o vidro e conseguimos enfiar o braço e abrir a porta. Pequeno dano. Lucivaldo improvisou uma chave de fenda: uma tampa de garrafa amassada. Bié já dormia na sarjeta ao lado. E acordou num grito ao ouvir o ronco do motor. No momento a gente tinha feito a ligação direta e acionava a ignição com um palito de picolé. Sissi pagou apressadamente a cerveja e veio correndo com o sorriso escancarado. Todos no fusca, não pudemos romper mais que um metro. Naquela operação mecânica a direção ficara travada.
Sissi voltou para a cerveja. Bié se ajeitou no banco traseiro e começou a roncar e peidar. Saímos eu e Lucivaldo à procura de um mecânico. Vasculhamos inutilmente as ruas do Rio Vermelho: as poucas oficinas e encontravam fechadas. Retornamos. Sem graça, sentamos ali na calçada vendo o sol invadir o dia, até que na casa ao lado saiu um rapaz ainda bocejando.
- Ô amigo – gritou Lucivaldo, – sabe onde podemos arrumar um mecânico?
- Qual é o problema? Eu sou mecânico. Olhe a placa aí ó – e apontou. Era no local em que se encontrava o fusca e a gente nem tinha dado por isso.
Entregue o caso ao mecânico para destravar a direção do carro, fomos, no horário em que se toma café com leite e pão ajudar Sissi a esvaziar mais cervejas. A essa altura a cidade já retomava a sua rotina normal de trabalho.
Serviço bem feito, ligação direta o fusca estava pronto para seguir viagem de volta. Lá teríamos que dar uma explicação a Edna. Mas isso Sissi tirava de letra. O chato foi ter que deixar as carteiras de identidades com o mecânico, pois o dinheiro curto Sissi tinha estourado na padaria com cervejada.
Ensaindo o discurso que devia ser feito para explicar a Edna a questão do fusca, Sissi tocou a campainha. Nós mais recuados. Quem vem abrir a porta do apartamento? Quem? Sonia Braga? Caetano Veloso? Não. Quem veio abrir a porta foi Léo. O filho da mãe havia perdido o navio e no mesmo táxi retornara e ali encontrava tomando café da manhã com os meninos, Dedê e Juninho, pois tia Edna já estava no seu trabalho.

sábado, 13 de abril de 2013

Encontro


Encontro


1.
as coisas mudas
vazias vazadas
ágrafas palavras
as coisas me batem
grávidas

2.
nectário de vinho
sorver mergulho
olho no olho

3.
as coisas descoisificadas
lamento alento além
plano vôo
e eu passo a mão na cabeça
do Cristo Redentor

sábado, 6 de abril de 2013

O Mestre e eu


O Mestre e eu



... voltasse aqui
e na minha aldeia
primeira coisa
passaria em minha rua
rua Virgiliana Reis, s/n
bateria no portão de minha casa
- Nei, meu irmão!
e teríamos um dedo de prosa
à sombra do pé de manga
como se fosse de costume

falaríamos de muitas coisas
e até de coisa nenhuma
porque com ele até o silêncio é ato de comunicação
como quando deixou de responder a Pilatos

mas com a suavidade
de um sorver de vinho bom

meus gatos ficariam a seus pés
e receberiam dele
cada um
uma alisada de mão
e eu, talvez, por descuido, brincasse
- sabe, Mestre, não dê muita atenção a esse gatinho Francis não
que ele andou quebrando umas louças lá dentro
e por certo ele me repreenderia
- Nei, porra de louça! Deixe os bichinhos: existem outros valores mais importantes
e então eu me sentiria igual a Marta, irmã de Lázaro

sábado, 23 de março de 2013

CANTIGA DA REDESCOBERTA ( II )


CANTIGA DA REDESCOBERTA  ( II )


um dia, em branco céu,

num enleio de ver e de se deixar ver

de olhos,

pontinhos negros em rútilo giro,

entreabrir-se de véus,

segundo de eternidade,

tu me trouxeste de volta o menino

de há muito perdido

na floresta dos homens,

e até os mesmos brinquedos

de há muito guardados,

tanto que as mãos se redescobriram

e em redescobertas tatearam.


domingo, 17 de março de 2013

A urucubaca da tia Rosa


A urucubaca da tia Rosa


- Zé, passa na casa de tia Rosa. Ela também vai com a gente.

- Você tá maluca? Só se for pra furar pneu na estrada, bater o motor do carro, faltar gasolina, atropelar cachorro...

- Oxente, Zé! Que é isso?

- Não estou lhe dizendo?! Nada tenho contra sua tia. Acho até muito bacana, mas é de uma urucubaca dos diabos.

- Por favor, Zé, você sempre de marcação com minha família. Que história é essa?

- É toda verdade, se quer saber. Toda vez que ela pega carona comigo pra Guanambi acontece alguma coisa na viagem.

- Deixe de implicância besta e passe lá por favor: ela vai com a gente.

É, vai ver que era mesmo cisma de sua parte. Coincidências existem. Não era justo deixar a velha na mão.

- Tá  bom, meu bem, a gente leva tia Rosa.

E quando já se aproximava da cidade de Guanambi, o carro em boa velocidade, tudo indo muito bem, a mulher chegou até a olhar para ele como quem diz com os olhos: “ Veja ai como não aconteceu nada, seu implicante-com-tia-dos-outros!”. Mas foi aí que ele diminuiu a velocidade do carro e parou no acostamento.

A mulher se desfez repentinamente da pose e arregalou os olhos:

- Quê  que foi, Zeduardo?

-  Venha ver - chamou apontando o pneu dianteiro, todo murcho.

Tia Rosa, de dentro do carro espantando mosca, nem se abalava. A mulher trocou um sinal com Zeduardo e, em voz baixa, cochichou:

- Então é assim?!

- Não  lhe disse?... ainda bem que foi só um pneu furado. Da vez passada eu atropelei um cachorro.

-  Meu Deus! Então é assim?!

- Que foi mesmo hein, querida?

- Nada não, tia: apenas um pneu furado.

Terminado o serviço da troca de pneus, Zeduardo limpou o suor e retomou a direção do carro. Do retrovisor interno ele via parte do rosto de tia Rosa com aquele jeito de quem espanta mosca. Rangeu os dentes e pensou: “esta é a última vez, urucubaca”. Ao lado sua mulher pensava: “ Ufa! Tia Rosa, hein!”

Ao entrar na cidade, foi com o auxílio da policia que a mulher conseguiu conter Zeduardo. Queria porque queria dar uns tapas na velha só porque o carro, com documento atrasado, acabou sendo apreendido pela blitz que havia na entrada.

sábado, 9 de março de 2013

As Trevas




As Trevas


as trevas se mantêm trevas
você não mais encontra a sua RG
perdida
num dia que se deu qualquer
nem se pode ver a face amiga
só a face amiga é que pode vê-lo
porque luz própria

as trevas se mantém trevas
e não há relvas
que se podem avistar
nem sentir

senão quando guardada em si
a adormecida chama
que chama
para que possa
a sua fé luzir