sábado, 27 de julho de 2013

A filha que bateu na mãe e virou cadela

A filha que bateu na mãe e virou cadela

Para Zeca Bahia

Na feira livre de Candiba aparecia vez por outra um vendedor diferente dos demais. Daqueles que davam verdadeiros espetáculos para vender seu produto. Não. Nada de vendedor de remédio contra picada de cobra ou vitamina para galinhas e porcos. Chamava a atenção de todos. Logo um círculo de pessoas se formava em volta. Duvido que conseguisse vender bem. Mesmo porque havia muitos analfabetos. De nada adiantaria ter em mãos aqueles livrinhos de versos. Hoje sei que se tratava de literatura de cordel: lindas, tristes e fantásticas estórias contadas em versos. Daí que o interesse maior não era apenas pelos romances, ilustrados com xilogravuras, mas pela leitura e resenha que deles fazia o vendedor com fala nordestina, resumindo a estória.

 - Leiam A peleja de Riachão e o Diabo - e recitava de viva voz:

Riachão ‘stava cantando
Na cidade do Assu
Quando apareceu um negro
Da espécie de urubu
Tinha a camisa de sola
A calça de couro cru.

Aí fazia um resumo do duelo um dia enfrentado pelo violeiro Riachão contra o diabo em figura de gente.

Os livrinhos se achavam dispersos numa mala aberta de papelão. Uns com capa bem ilustradas, outros de papel mais ordinário. Alguns ouvintes, atraídos, chegavam a folhear os livretos, meio vacilantes, quando lá vinha o vendedor:

- Pode levar, meu amigo. Essa é a estória Peleja de Lampião no Inferno. Isso, leve os dois: aqui a estória de Cancão de Fogo ou este, uma estória de amor: O amor do Soldado. Vamos chegando, gente!

Vibrei naquele sábado de feira livre quando, mal me aproximei do mercado, a voz nordestina do vencedor já se fazia ecoar:

- A filha que Bateu na Mãe e Virou Cadela. Leia este formidável romance  - e se repetia: -  A Filha que Bateu na Mãe e Virou Cadela.

Não consegui dormir à noite. Ficava imaginando a transformação da filha que bateu na mãe. Cheguei mesmo a orar temendo que tal infortúnio sucedesse dentro de minha família. Para mim e para muitos outros não se tratava de pura estória mas de realidade. Talvez por isso é que quando Arnaldão de seu Braulino, nosso vizinho, chegou da romaria feita a Bom Jesus da Lapa, eu quase morri de medo com as coisas que ele contava. Decerto que ouvindo literatura de cordel ou por invenção própria, já que Arnaldão era nosso contador oficial de estória, ele saiu com aquilo que o mundo estava prestes a se acabar e que, final dos tempos, o homem mal iria encontrar carne de sapo para comer.

- Como é que você soube disso, Arnaldo? - perguntei, coração em bombardeio. E lá vinha ele explicando que em Bom Jesus da Lapa existe uma espada pendida de umas rochas com uma ponta quase a tocar o chão. Assim que a espada tocasse o chão o mundo se acabava.

Meu coração quase à boca. Arnaldo com aquele tom macabro de voz por certo me tiraria mais uma noite de sono tranqüilo. Em busca de conforto, acabei por ficar mais amedrontado. Perguntei:

- Ô Arnaldo, falta muito, né? pra espada fincar no chão.

Ele cerrou um pouco os olhos e, num tom de fim-de-mundo, respondeu sinalizando com a mão:

- Coisa de um palmo e meio.

Eu, que já tinha rezado para que minha irmã não virasse cadela, fiquei por muito tempo rezando para que a espada da Lapa não tocasse o chão. E vai ver que foi por isso que o mundo não se acabou mesmo.




sábado, 20 de julho de 2013

Salvador Revisitada


Salvador Revisitada


o cão ainda não pega
a capital do seu Estado
ainda no limite de capital provinciana
o texto que se presumia com equívoco de uma vírgula
foi uma mosca apenas
que ali pousara

o fluxo de veículos já passou a fazer parte
mas os garçons ainda se atrasam
em discussão sobre o futebol
tão fraquinho
da noite passada

as crianças continuam sendo despejadas
nas escolas
mas cabisbaixas
cutucam aparelhos
que as levam para cima
longe perto
e os jornaleiros já não passam como antes
gritando A TARDE... A TARDE
porque as notícias se perderam ante os fatos

Salvador/BA, 08.07.2013
NGP

sábado, 13 de julho de 2013

Camisa do Flamengo não

Camisa do Flamengo não


A mulher veio se queixar que hoje em dia já não se faz mais empregada como antigamente, que essas mocinhas não sabem arrumar casa, cozinhar - principalmente cozinhar -, nem cuidar de menino, etc e tal. Um verdadeiro discurso. Isso feito uma cantilena - uma cigarra todos os dias nos ouvidos, quando em casa chegava e a encontrava recolhendo a roupa enxuta do varal ou correndo até a cozinha para espiar a panela no fogo ou ainda vindo até a sala ralhar com os meninos e verificar se eles faziam a tarefa ou assistiam à televisão.

O diabo que empregada ali não durava mais que um mês: “Não serve. Você viu a sujeira em que se encontra a vidraça? As plantas morrendo de sede, a minha panela que não pode ser areada com bombril! Você viu?

Vinha outra. Desta vez uma senhora. Tinha mais experiência, mais juízo (“da idade de mãe”), podia dar certo.

Não deu:

- Eu ainda acabo com meus dias de vida. Olhe o que essa tonta fez!

Por ele, ele até que perdoava. A velha não conhecia essas modernidades - achou que o salame tipo italiano fosse como lingüiça caseira e tascou tudo no feijão, gordureiro sem fim, que teve que fazer farofa de ovo se não quisesse ficar com fome e agradecer encontrar-se a meninada na casa da avó nesse dia.
Deletada a velha, apareceu depois o contrário: uma nova. Nem bonita nem feia. No frescor da idade, como diria Machado de Assis. Mas aí, mesmo antes de ser testada no emprego, quem ficou para os cantos dizendo coisas foi ele:

- Essa menina não vai dar certo aqui não. Pode mandar embora.

- Você é doido, é? Imagine! Logo agora que achei uma menina prendada, caprichosa, que sabe fazer as coisas! Pois dessa aí eu gostei.

- Pois eu não gostei nem um pingo. Se a gente entra na cozinha, essa menina com essa camisa do Flamengo. Se entra na sala, camisa do Flamengo. No quintal, camisa do Flamengo. Quieta, pelo amor de Deu.

- Tá certo que você é botafoguense doente, mas eu é que não vou perder uma empregada dessa só por causa de besteira de futebol. Nem pensar, nem pensar mesmo. Eu é que sei o que é ficar sem empregada, me matando no tanque de lavar, na cozinha e tudo – e lá vinha de novo a ladainha..

Ele, que sempre dizia ter dois times (um para amar e outro para odiar), virou a página do jornal que estava lendo, meneou a cabeça e, entre dentes, mordeu as palavras:

- Isso é demais: camisa do Flamengo em minha casa. Vai que passa um amigo aí e a gozação está feita. De jeito nenhum.

A mulher não lhe deu mais ouvidos e saiu para as compras.

Ficou observando no quintal a empregada regando as plantas - a camisa do Flamengo para lá e para cá. Sem soutien; os seios pontudos como frutas no ponto de colheita.

- Es-sa ca-mi-sa do Fla-men-go...

A essa altura, já não mais sabia em que trecho do jornal interrompera a leitura.

Chegou até a pensar, com certa isenção, que a camisa do Botafogo (é claro que não iria admitir isso perante os flamenguistas) perdia de dez a zero.

Uma nesga do sol, em declínio, iluminava em rubro-negro o tecido fino. Eram os seus olhos, em todo campo de visão, tomados por aquelas duas pontas de seios.

Quando a mulher retornou para apanhar algum objeto esquecido deparou com a cena: a menina segurando frouxamente a mangueira d’água e ele lhe suspendendo a camisa, já em meio, seios à mostra, no ponto do... “nhoque”, mas aí...

- CACHORRO! QUE HISTÓRIA É ESSA?

Então ele foi mordendo a blusa e puxando-a bruscamente com as mãos. Não levou mais que um segundo, ela assistiu, um pouco mais conformada, o restante da cena: ele retirando completamente a camisa que a menina vestia, jogando-a no chão e pisoteando feito um doido:

- Eu já disse: camisa do Flamengo em minha casa nem ver. Vou botar fogo. Aqui é BOTAFOGO. BOTAFOGO, minha filha! - esbravejou e saiu para o quintal cumprindo suas palavras.

Tudo foi contornado, “graças a Deus”, e a menina ganhou blusa mais decente, etc.

- Só acreditei mesmo porque o fanatismo dele pelo Botafogo é coisa pra psiquiatra. Tirou com raiva, com os dentes e tudo e tocou fogo na camisa - escutou as explicações dela aos familiares.

E ele, ajeitando as folhas do jornal:


- Tá, neném, imagine se eu vou deixar gente entrar em minha casa com camisa do Flamengo!

domingo, 23 de junho de 2013

Geração banana

Conto da era FHC


Geração banana



1.

Acabo de saber da prisão de Toledo. Pegou todos nós como na foto dos últimos dias de Pompéia. Um vulcão que tínhamos no quintal de casa, mas que se sabia sine die. Agora essa sensação de que podíamos ter feito algo. Irmanados. A gente sempre com os probleminhas do próprio umbigo. Tivesse reparado bem, como então se vê, o problema de Toledo não era o problema de Toledo. Era nosso. Toledo é que foi homem, foi macho. Nós sim é que nos tornamos uns bananas. Aliás, uma geração de bananas. Tenho vontade de dizer tudo isso a Toledo. Adiantaria alguma coisa? Ele está preso. No fundo todo mundo com inveja da besteira que Toledo fez. Besteira não. Olhe só como somos hipócritas. Se bem que é isso mesmo – a hipocrisia é uma das características do homem banana.

Depois é que fui juntando aqui e acolá do que fez Toledo nesses últimos tempos e dei com essa descoberta tardia. Ele esteve com quase todos da turma. Ele nos procurou, afinal de contas.

2.

Vejo agora na parede a foto do nosso time da época de ginásio. Fico imaginando o que éramos então e o que hoje somos. Toledo, magrinho, cabeludo, como quase todo mundo naquela década de 70. Ele coma fita na testa imitando Douglas do Bahia, que ele tinha visto numa revista Placar lá na alfaiataria de seu Zequinha. Jogava de ponta. Drible e cruzamento. Meio ciscador mas bonzinho de bola. E na escola era um dos primeiros. Em tudo. Até nas malandragens. Não era feito como Miguel, que aparece ao lado, esforçado, todo direitinho, filho de mamãe, desses que carregam os livros para os professores e etc. Foi ser o que na vida? Professor de História, coitado. Na casa dos quarenta e fodido. Miguelão, que já é avô, entrou para o banco. Hoje é gerente. Está bem. Os outros, quase todos, também: um médico, outro engenheiro e outros bem sucedidos no comércio. Só o Toledo.

O que ganhava como professor mal dava para os livros. Certa feita, com muito cuidado para não ofendê-lo, Renato tentou trazê-lo para o comércio. Ganharia muito mais.

- Muito agradecido, companheiro. Não sei viver mais fora de uma sala de aula.

E não sabia mesmo: vivia para os livros e para a escola. Um tipo. Bem que era bonito vê-lo rodeado de adolescentes, passando conhecimentos, dizendo as coisas. O que não se sabia era desse seu radicalismo agravado repentinamente.

3.

Que custava lhe ter dado um pouco de atenção. Gente, ninguém deu ouvido ao Toledo. O bananismo foi geral. Agora eu fico olhando essa foto em que aparece Toledo menino, ginasiano, tomando meu pilequinho burguês de final de expediente e chorando. Eu pergunto: isso vai resolver alguma coisa? Vai? Pode resolver para mim, para me recuperar do bananismo, mas e Toledo? Sacanagem até na dor – me servir de Toledo para curar dos meus males. Por que não lhe fui camarada quando me procurou? Eu só não. Todo resto da turma: Miguel, Renato, João, Gabriel, Besourão e Gonçalves. Um dia que nos encontramos na sauna do clube a conversa foi que Toledo andava meio fraco da cabeça. Fraco porra nenhuma. Fracos estamos nós.

- Ele disse que a contribuição da nossa geração é zero – lembrou Renato.

- Disse também que nada podemos esperar da geração seguinte se não fizermos algo agora – completou Miguelão.

- Ele entende que essa geração de velhos que está no poder é de uma perversidade tamanha e não pensa nas outras gerações. Eu perguntei a ele: “Ô Toledo, mas como eles podem se perpetuar?...”

- Que que ele respondeu? perguntou Gonçalves.

- Ah, ele falou um bocado de coisas. Disse, por exemplo, que nós vamos deixando pelo chão todo o nosso ideal humano à medida que pisamos o tape do poder.

- Feito um círculo vicioso – arrematou Renato.

4.

A televisão agora vai encher o tempo mostrando as mesmas cenas. Primeiro as imagens de como se deu a prisão. Depois um pouco sobre Toledo, sua cidade, o colégio onde lecionava, entrevista com alunos, com o dono do barzinho que ele frequentava, essas baboseiras. Quanto o repórter conclui a matéria vai dando um nó na garganta e a gente não tem como segurar. Deveriam explorar o lado sério, não a maluquice em si, que esta era mero pretexto para o que objetivava  Toledo, se bem o conheço. Muitos captaram sua mensagem, mas eu, você, você, você, não os outros, que a mídia tenta controlar tudo. De qualquer sorte, que houve um certo abalo houve. Renato me liga para dizer que a coisa já anda pela internet afora.

- Não sei com quem eles arrumaram, mas dizem que até aquelas poesias que ele andava escrevendo para um livro que nunca publicava aparecem na internet.

Pelo mesmo isso. Já é um começo. Toledo não vai achar de todo inútil o que fez. Falava muito dessa poesia. Da força e do poder das palavras combinadas entre si. Só que ninguém lia poesia senão pessoas como o próprio Toledo.

A irmã dele, Norma, professora do mesmo colégio, é uma das entrevistadas. Diz mais ou menos o que a gente já sabia, mas acrescenta que Toledo vinha acumulando uma serie de aborrecimentos e que a qualquer momento ele chegaria a uma explosão com a que se viu.

Passou mal quando soube de algumas privatizações, dinheiro público cobrindo rombo de bancos privados e empresários cada vez mais ricos. Sofreu com os escândalos da compra de voto no Congresso Nacional, sem contar com as questões antigas que ele carrega, como o da Educação no Brasil.

- Ele chorava quando lia os jornais.

O repórter se apressa:

- O que fazia ele chorar por exemplo?

A câmera focaliza Norma mais em cheio. Emocionada, contida. O repórter renova a pergunta:

- A senhora disse que ele chorava quando lia os jornais. O que o fazia chorar em especial?


- Isso: todas as safadezas que estão fazendo com o Brasil. 

sábado, 15 de junho de 2013

A vez que me tornei herói

A vez que me tornei herói


Num dos seus encantados versos, o poeta Manoel de Barros lembra que o quintal de sua infância é maior que o mundo. Sempre trouxe comigo entendimento parecido, principalmente quando às vezes passo próximo a nossa antiga casa, com o seu minúsculo espaço, o mesmo muro, o mesmo pé de manga, talvez ali dentro o mesmo menino a brincar na sombra, como se tudo resumisse àquele universo. Da alma criança é que brota a grandeza das coisas, que há de marcar como tinta indelével vida afora.

Feita esta, digamos assim, breve exposição de motivo, passemos a relatar a vez que me tornei herói para o resto da vida. E venho procurando manter como posso esse título. Naquela época, a antena parabólica, objeto quase inacessível, podia ser adquirida através de consórcio entre amigos. Assim é que, contemplado, consegui instalar uma em minha residência. Maravilha. Não propriamente para mim, que não sou muito de televisão, mas para a mulher noveleira e os baixinhos da Xuxa.

No dizer do poeta Castro Alves, “passaram-se anos, séculos de delírios, prazeres divinais, gozos do empíreo, mas um dia volvia aos lares meus”, foi quando surgiu a dor-de-cabeça da tal “manutenção”. À saída para o trabalho, a recomendação da mulher:

- Veja se arruma um técnico para consertar a imagem da televisão, que tá cheio de chuvisco, e os meninos reclamam na hora do desenho animado. Não esqueça.

Com tanta coisa para fazer, ia eu lá me lembrar de achar o tal técnico?! Acabava sempre voltando para casa sem resolver o problema, para depois receber outro sermão. Até que um dia, não mais aguentando essa cantilena, me acudiu a imagem de um colega de infância, que vivia a cutucar aparelhos de rádio e que por ultimo, segundo informação, era um competente especialista em Guanambi, onde já não era mais conhecido por Juarez de Dona Judite mas sim Juarez Soares. Descobri seu telefone, bati o fio, e daí a minutos - olhe Juarez de Dona Judite (pois assim sempre o tratei; coisa de menino) chegando num fiatizinho branco. Quis lhe mostrar o aparelho de TV na sala mas ele só fez me pedir uma cadeira e uma varinha, e do lado de fora mesmo se ajeitou, cutucando num copinho que havia na parabólica e derrubando na grama um inchu de maribondo.

-  Pode ligar o aparelho.

Quando liguei a TV, as crianças ansiosas, foi como se, após tempos acostumados com a imagem em chuvisco, encontrasse uma tela de cinema. Juarez de Dona Judite, que agora era Juarez Soares, me cobrou caro e se despediu. O caro, no entanto, se tornou barato diante da felicidade dos meninos e da mulher noveleira.

Calma. Até aí não se pode falar que nascia um herói, pois que mera obrigação de chefe de família. O herói apenas iniciava a sua gestação. Tornei-me herói no dia em que fui até a casa do meu Tio Dedê  e ouvi a sua queixa:

- Moço, a mulher tá para me matar por causa da imagem da TV e eu já não sei mais para onde rodar essa antena parabólica para encontrar a posição certa até que deixei no mesmo lugar.

A mulher veio da cozinha:

- Já falei pra ele, Nei, pra chamar um técnico, e ele é teimoso, fica é tentando consertar sem saber.

Lembrei-me de Juarez Soares e, mais que de pressa, falei firme na voz:

- Quem vai consertar essa porra sou eu. Gê, me dê aí uma cadeira e uma varinha.

Logo a mulher prontificou tudo, para o muxoxo de meu tio em meneio negativo de cabeça:

- Oh meu Deus...

Subi na cadeira pensando “se não tiver a casinha de maribondo no copinho da antena eu tou frito, vou ter que improvisar uma das minhas brincadeiras”. Principalmente porque os meninos dele, Filipão e Lalá, me olharam com brilho nos olhos como se eu fosse um salvador da pátria, de forma que não podia falhar.

Não deu outra. Meti a varinha e o inchu de abelha caiu  igual a uma frutinha madura.

- Pode ligar a TV, Gê – ordenei com autoridade.

Só meu tio ainda achava que era uma de minhas palhaçadas costumeiras, quando de lá de dentro vieram os meninos para me abraçar como se eu tivesse feito o gol mais bonito em pleno maracanã.

Virei um herói naquela casa. Venho acompanhando o crescimento dos meus dois primos que, aliás, me tratam por tio. Filipão estuda medicina. Larissa Leão Dantas se prepara para o vestibular e ainda toca violão e canta, como uma Nara Leão, mas artisticamente adotamos apenas Larissa Dantas. Sempre que nos encontramos recebo aquele abraço de herói. Isso nunca vai apagar. Manoel de Barros tem razão. (Um beijo, garotos)



sábado, 8 de junho de 2013

As nuvens



As nuvens


as nuvens de minha terra
são lãs de algodão
ninguém sabe até onde
elas vão
sem dar liga a preço de mercado
elas são
o que são
e enfeitam o céu
flechado de desejos
mas elas não

preferem ser vadias no alto
ao sabor próprio
do destino de nuvens
      
tão bonitinhas
ilustrando a imensidão
a mostrar que a vida
ela é grande
apesar



22.10.2012.

sábado, 1 de junho de 2013

BAR NOGUEI RA



BAR  NOGUEI
RA



O letrista contratado para fazer o serviço na fachada do bar, imaginei assim que deparei com o estabelecimento, devia ter pensado na ocasião “Êta, porra, faltou parede!”, pois o filho da mãe calculara errado o espaço e o corpo das letras, como se pode ver.

- É, mas pelo menos não cometeu erro de separação de sílabas - ponderou um amigo que me acompanhava, diante de minha curiosidade de ali entrar só por conta do nome do bar com aquele letreiro.

O barzinho, que ainda continua ali perto do mercado municipal de Guanambi, ficou por muito tempo, ainda que meio desbotada, com aquela fachada. Sempre que me encontrava naquelas imediações fazia questão de passar em frente, para curtir apenas, até que outro dia divisei o boteco com pintura nova e desenho centralizado das letras com tamanho único – “BAR NOGUEIRA”. Perdi o fascínio. Vai ver mudou de dono e o sacana resolveu fazer sua reforma, queixei-me depois ao mesmo amigo.

- Já que você gosta de apreciar essas coisas, cara, vá lá no boteco de Dori que você vai encontrar uma tabuleta engraçada. Lá serve buchada aos sábados.

Sei lá. Mas tinha essa atração pela forma como o povo em geral se expressa no dia a dia para realizar a comunicação. Ensinava português nessa época e talvez por isso me despertasse para esses detalhes do uso da língua. Um dia pedi que a turma fizesse uma pesquisa na cidade. Então, para estudo e debate, conseguimos anotar coisas como, por exemplo, o aviso que havia num barzinho com mesa de sinuca: “Fincha R$ 0,50”; num açougue, uma cartolina branca com letras desenhadas artisticamente, que o açougueiro, cheio de orgulho, diante do elogio, disse ter sido escrito pela filha: “Não vendemos fiado – Favor não enxista”. Notamos que alguns procuravam mostrar que estavam escrevendo corretamente e aí é que judiavam mesmo da tal gramática. Caso do Café Botafoguense de Dedé. Havia uma tabuleta com o nome das bebidas com os preços correspondentes ao lado: “Penga --- R$ 0,50; Leco de Peque --- R$ 0,50”. Quer dizer, Dedé, numa confusão de ortografia, informava, na verdade, os preços da pinga e do licor de pequi.

Entre nós firmou-se a idéia de que o português é um idioma difícil. Fácil eu sei que não é. Não é à toa que Rui Barbosa travou disputa logo com Carneiro Ribeiro, que tinha sido seu mestre, com relação a redação definitiva do Código Civil de 1916. Imagine. Eu aprendi, no entanto, que o importante é a comunicação. Deixemos, por ora, essa busca sofrida pela língua erudita e vamos às brincadeiras que surgem com o uso que fazemos dela.

Já que me achava nessa onda, fui até o boteco de Dori. Não é que a tal tabuleta era bem trabalhada com letras em entalhes na madeira envernizada! Só que quando li pensei de imediato tratar-se de outro idioma, o espanhol talvez, pois estava grafado assim: “FIADOSOAMANHATA”.

- Ô Dori, que porra é essa que está escrito ali?

- Ué, doutor, não sabe ler? Olhe lá – disse pausadamente: – FIADO SÓ AMANHÃ, TÁ?

Dizem que quando Dori vendeu o ponto para ir para S. Paulo, o comprador fez questão de pagar um pouco a mais para que a tabuleta ficasse no bar. Pelo menos, dessa vez, não aconteceu como no Bar Nogueira, que para essa minha mania acabou perdendo o charme.