sexta-feira, 29 de junho de 2018



Maior inventor de todos os tempos ( I )

O maior inventor de todos os tempos? Sempre tinha carregado consigo, para quando em alguma circunstância fosse instado a dizer, uma resposta que entendia  liquidar de vez a polêmica: o maior inventor foi a própria humanidade; não um fulano de tal que viveu numa certa época, porque a maior invenção – achava - foi a escrita. Graças a ela é que daí decorreram as demais. Mas agora abria mão de toda essa crença para impor, sem admitir direito ao contraditório - que esse princípio se lixasse por lá -, para bater o martelo retificador da verdade: o maior inventor do universo, de todos os tempos, foi... Grahm Bell.
Era na parte de cedo e o telefone do escritório tocava. Tocava não; fazia escândalo. Parecia uma rapariga a gritar por todo edifício: “Gustaaaaaaaaaaaaaavo... Gustaaaaaaaaaaaaaaaaaavo”. Teve que subir as escadas saltando degraus, tanto que chegou meio ofegante quando conseguiu alcançar o fone:
 - Alô.
- Gustavo?
Deus! Era ela! Deu vários beijos no bocal do fone. Até que enfim a vida que pensava ter se lhe escapado para sempre. Até que enfim aquela voz que tinha deixado de musicar em seu ouvido fazia algum tempo. A voz. A voz. Só com isso parecia retomar o verde da existência, a vontade de abraçar até os inimigos se os tivesse, como falou um dia em que fizeram amor três vezes na noite e depois foi para o trabalho e de lá ligou para ela só para agradecer por isso, que naquela manhã amanhecera com esse ímpeto...
- Gustavo?
Que maravilha! E esse “Gustavo!”era assim, ainda que como quem estava zangada e iria cuspir maribondos; “a voz”, que deixara de enternecer seu íntimo auditivo, mesmo em tom de agressividade.
- Gustavo?
Zangada.
- Fale, meu amor.
Imagine aqui com que entonação respondeu. Depois de um hiato naquele realacionamento. Ausência igual a frio de Vitória da Conquista, de pelar cachorro. Falar em cachorro, ela agora iria soltar os dela.
-  Pare com esse negócio de amor. Você está ficando maluco, é?
Tinha que sair por aí, não era?
- Você telefonou pra todas as casas da cidade procurando por mim. Você acha que isso é coisa de gente normal?
- Você não me deixou o número do seu telefone, Baby...
Imaginou-a suada, limpando a garganta, quando respondeu:
- Pare de me chamar de Baby. Acabou e pronto.
A voz. Como sua cidade não era tão grande assim, conseguiu um desses catálogos telefônicos locais, e, como não sabia o número do telefone da família dela, resolveu ligar para todos os números procurando por ela. Não agüentava mais aquela perda.
- ... e além do mais, você é um idiota: ninguém aqui me conhece pelo nome não e sim pelo apelido, “Joice”.
Trabalho da porra. Ligava: “é da casa de Joicilene? Não? Você pode mandar um recado pra ela, pra ligar pra Gustavo?
- Então como é que você ficou sabendo, Baby?
- Pare com esse negócio de Baby. Acabado.
Brava. Mas chegaria lá: o trabalho não fora inútil.
- ... você é maluco, ligou até pra rádio FM e eu estava na cozinha fazendo café quando a rádio divulgou; e mãe e pai escutando...
- E eu sabia lá que era rádio; eu queria tentar localizar você, por isso liguei para todos os números do catálogo...
- Você é maluco e eu não sabia disso...
- Mas eu fiquei assim depois de você, Baby...
- Pare de me chamar de Baby!
- Pra que essa brabeza?
- Eu fiquei assim depois dessa loucura sua. E olhe, esqueça, a gente não tem mais nada a ver. Por favor.
- Eu vou aí na sua cidade
- Não faça isso.
- Vou. Então venha você aqui senão eu você: você não pode me impedir
- Eu já lhe expliquei que não dá certo. Fique com sua mulher, já que você não se livra dela.
A bronca era essa: ciúme da titular. Tinha visto o casal fazendo compra em um supermercado e ele todo aninhado à esposa, com beijinhos e coisa e tal, e então entrou em parafuso, quando julgava haver superado essa idéia de possível separação e se manter daquela forma.
- Mas você já tinha compreendido isso, Baby: coisa superada.
- Pare de me chamar de Baby, e tem mais: compreender é uma coisa mas ficar vendo aquilo é outra coisa, você lá se babando, beijinhos e abraços e palavras...
- Mas eu sou assim...
- Vai ser assim agora nos infernos – gritou (“a voz”) e bateu o telefone.
Tinha certeza de que ela iria ligar de novo. Conhecia. Ela não tinha terminado a sua operação de guerra, para que depois ele lograsse êxito no seu intento. No fundo, ela teria gostado da sua loucura.
2
Menina dos Olhos

            Ela, após a aula, chegou até a sala dos professores, a propósito de tirar alguma dúvida. Mas não havia dúvida; havia certeza, desde quando fizera chamada nominal, quando a tinha visto num entrecruzar de olhos. Que olhos os dela! Era só confirmação. Tanto que a questão exposta ambos sabiam mero pretexto. Energia. Pura química. A jovialidade latente e a busca da experiência de quem fala fácil e de coisas por descobrir.
            Apenas uma garota. E era a vida em raios de ouro. Um encontro do que se iria completar em realização - um braço que o retiraria da floresta dos homens em redescoberta.
            Prontificara-se a  escrever no quadro o que o professor ditava, com letra bonita, que o professor confessava não ter caligrafia. Os olhos, primeiro plano. A voz: “Professor”. O resto nem se fala. Era um primeiro dia de aula. Um primeiro dia do que se tornaria para sempre.
            Fosse cinema, haveria um fundo musical. A canção falaria por si só. Imagine agora somada à imagem. E ela: “Professor”. E o professor, conforme preparação, tendo que ter aquele controle de classe.
            À saída do colégio identificou-a em meio a muitas outras garotas a caminho de casa com o caderninho junto ao peito, e não era uma qualquer, se destacava - a menina dos olhos,  e então parou num bar, pediu uma bebida e, vendo-a passar na outra margem da rua, nesse momento, chorou. E choraria tempos depois.

3
O maior inventor de todos os tempos II

            Porra de Graham Bell.  Quem, na verdade, inventou o telefone foi Antônio Meucci, para poder se comunicar do seu escritório com o quarto, onde ficava sua mulher, que sofria de reumatismo. Graham Bell  apenas comprou a idéia e colocou Dom Pedro II como garoto propaganda. Agora queria falar com a mulher e o espírito de Meucci não baixava. Teria que arriscar ir até a sua cidade assim mesmo. Iria movimentar  exército, marinha e aeronáutica, todas as forças, para trazer de volta aquele violão afro. Se falasse com a mãe, diante do seu estado misantrópico, ela lhe daria suporte, sem, no entanto, deixar de registrar que ele já era casado e que saísse do caminho da moça.
            - Não pode, mãe; ela é minha – responderia. Então a mãe não teria como não aprovar seu desiderato. Mãe é mãe.
            E a filha da mãe não ligava. Ficou ali olhando o aparelho e o dia não começava. Uma hora, duas horas, sem nada fazer senão se fixar no telefone, que Meucci inventou só para falar com a mulher e ele sem poder falar com uma das dele. Tinha até falado para a secretária Olhe, cancele aquele negócio. Que negócio? Maluquice de mandar numerar as namoradas. Telefone, Rose. Havia umas dez. Em vez disso, Telefone, número quatro, e aí ele sabia que era Rose sem precisar falar o nome: ela tinha uma tabela e ele tinha outra correspondente. Acabou com o engarrafamento. Às vezes, na sexta-feira era um horror, todo mundo queria sair. Tinha que criar uma desculpa e outra para ir conduzindo a coisa: Fale com Rose que tive que viajar pra Salvador/Fale com Samanta que estou adoentado/Fale com Meire...
            Depois dela, teve que “chamar o processo à ordem”, como se diz na linguagem forense:
            - De hoje em diante eu só estou pra uma pessoa – falou com a secretária.
            - Já sei: Marcela.
            - Marcela não conta, minha filha: Marcela sempre, estou falando de Joicilene, que nem chegou a ser numerada.
            - Ah. E as outras?
            - Deleta.
            Foi assim. Agora ela não ligava. Também acabou ficando livre daquela turma. Aos poucos ninguém mais ligava. Coisa feia. Onde já se viu.  Agora era só Joice. E ela difícil.     

4
A aluna no. 1


                 Onde já se viu isso? Ela não se contentava com a aula dada em sua sala e vinha e ficava sentadinha na sala da outra turma, onde ele, de novo, tratava do mesmo tema, abordando a primeira geração romântica, poemas de Gonçalves Dias.  Deparou-se com aquela estampa de garota e então procurou esmerar-se ao discorrer sobre o poeta:
            - Vocês podem reparar que não existe nenhum adjetivo no poema. Ele enaltece a terra em que nasceu se valendo de um recurso. Qual? A comparação: Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá/as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá. O Romantismo no Brasil se iniciava assim. O Brasil querendo ser, se achar, como se diz na linguagem atual, daí o nacionalismo.
            O jeans em ajuste no corpo da Vênus. Ela estaria gostando da aula, era? Ou dele? Sentada na mesinha da carteira escolar, ao fundo, atenta. Podia? Pernas cruzadas. Controle de classe, soprava-lhe a censura. Deu seu recado finalizando a aula e ia se dirigindo para o intervalo, quando da algazarra do corredor uma voz se distinguiu:
            - Professor.
            Voltou-se para a moça, que falou sobre o que mesmo? Deu explicações sobre o que mesmo? Viu de perto seus olhos miúdos e negros num rosto de um moreno indiático que mostrava o detalhe das orelhas - pequenas, bem desenhadas - .num meneio de cabelos negros. 
            - O senhor me  empresta Gonçalves Dias, meio cantada sua voz.
          Pegou o exemplar de bolso, que  trazia à mão, e entregou a Joice:
-  Devolva-me  depois. Poemas da primeira fase  romântica, nacionalismo.
- Amanhã – respondeu Joice, interessada.  Posso lhe pedir uma coisa. O Senhor me dá uma carona.
- Claro. Na saída.
            Quando veio o momento de saída, viu um pouco adiante do portão aquela garota com os livros apoiados no peito, dentre eles o de Gonçalves Dias. Parou o veículo e pediu que Vilma, que estava de carona,  se ajeitasse, para ela passar.
            Tomaria uma antes do avançar das horas.  O corsa encontrou uma posição boa em meio aos outros veículos
            - `Só uma gelada e daqui eu desço para casa, falou     Vilma.
            Desceu primeiro, abriu as portas do veículo para cuidar do desembarque das damas.
            - Essa história de cavalheirismo é só até passar as eleições, brincou Gustavo.
- Votar a gente vota, mas garantia nenhuma, completou Vilma.
            - Pela pesquisa, o homem vai ser reeleito com tranquilidade, retornou
Gustavo.
            - É, mas o preocupante é isso daí: “tranquilidade”. Boto fé nessa pesquisa não.
             - Vamos até o fim registrar meu protesto. Vai que ainda chega a um segundo turno.
              - Deus te ouça, concluiu  Vilma, até que passaram a outro assunto, depois Vilma desceu, conforme haviam combinado, e eles ficaram frente a frente. Ela estava com uma blusa marrom por cima do uniforme do colégio, que tinha vestido sem que se percebesse. “... essas meninas...”, pensou com seus botões. Rápido disfarce de costume, com um retoque do batom, e aí era uma garota comum., como tantas outras, e não uma estudante matando aula.
_ fiz meu curso regado a cerveja, discutindo literatura. Altos papo a horas tantas ou tontas, já encaixando poesia, e assim curtia o tempo, lances de conhecimento e troca de idéias.
              _ bacana! – falou , admirada. _ Ótimo esse “horas tontas”.
              _ É. Mais uma e outra, ficava-se leve e ia fluindo a prosa.
            _ Imagino

domingo, 8 de abril de 2018

conto






Diante da tela em branco, para dizer ao mundo, como uma cascata de palavras ainda não gastas ou agora revestidas do novo, a autocensura parece procrastinar o texto, que não mais escorre fácil pelos dedos sobre a maciez do teclado amigo. Como música. Sim, escrever prende-se a idéia de sonoridade da água ladeira abaixo, vai encontrando seus caminhos de livre passar ou pensar, encobrindo locais antes estranhos e redescobrindo outros.
Lembrou a canção que fizera para ela e passara pelo facebook:
_ Você é muito talentoso -  digitou ela em reposta.
_ Você é maravilhosa...  -  replicou relembrando seu jeito menina.
_ Até parece! Você que quer me ver com bons olhos – retornou a menina ao modo sapeca.
De estalo: _ Claro.
A canção era de um tom jovem e lírico, a partir de uma leitura profunda que fazia de seus olhos que brotavam fruição de um mundo ainda por conhecer, sob os ventos propícios à ventura e à projeção, com o fundo doce nostálgico de violinos, que ele acrescentaria então:
                       
ah! tanta coisa lá dentro
destes olhos graúdos
teus

uma pétala de rosa
apanhada ao acaso

um livro que voa
um barco  à toa
na linha do vento

o café fumegante
que manchava de leve
o amanhã de ontem

e a voz violino
número cinco
de as bachianas
brasileiras

Mas ficou com aquela resposta na cabeça (“Você que quer me ver com bons olhos”). Ele queria impor um ângulo de visão, sem isenção, a que se devia ajustar a conduta (“bons olhos”), tal como, dizem, a gente cria na mente a imagem de outra pessoa? Seria isso? Voltava àquela idéia primeira de que o mundo está na cabeça da gente – a gente é o que se cria. Faça a imagem, o filme e vive essa realidade. Hmmm! Acredita? Muito se houve também que o homem deve conhecer a si mesmo. Este o segredo. Bem, pense-se assim por ora. Deixar sua contribuição para a leitura da vida, que envolve leitura de códigos, senhas e sistemas. Acha que no caso em tela ele se apoiava nos dois  posicionamentos, mas o que encucou foi porque ela teve aquela reação imediata, como se já esperasse dele aquilo?  A gente fantasia mesmo e ele bem que tinha dela a figura de uma menina mais moldada nas precauções e nas normalidades. Então era isso; a importância do EU. Stop.  
                        Desde criança que se vão fazendo o mundo e as pessoas, não é? E tem uma imagem que se cria. Vai curtindo isso. Tem sido um menino bonzinho, se conduzindo, sem muito reclamar, nada de especial.   De criança é que vem, e a gente vai projetando. Por isso que se apegam uns aos outros em conluio e se firmam, segredos - um roçar de conhecimentos mútuos, uma troca de dicas um dos outros, e marcham juntos vida afora. Nisso, também os sonhos e alguns projetos que ousam então abraçar em parceria. Assim é que flui a vida em seus caminhos que se vão traçando. Bem, pense-se assim por ora. Stop.
                        Isso de gostar tem a ver um pouco com essa troca de segredos. Com o tempo vai-se conhecendo o segredo do companheiro e este conhecendo o seu. Segredo d`alma. Bem, pense-se assim por ora. Segredo d¨alma é forte. Mas é a isso que ele quer chegar. A mãe em relação ao filho é um exemplo maior. Depois se chega lá.
                        Para começar, fiquemos com o calor de mãos ainda na infância. Tira essa dos recônditos dasua existência. O calor das mãos se tocando. O ambiente. Um carnaval. De repente fez-se uma roda de crianças fantasiadas. A mão dela na sua e era bom segurá-la. Só isso. Limite. A mão prenha de ser envolvida ou você apertar uma outra parte que não é você mas que vai se tornando aos poucos, como uma parte que faltava. Como quem brinca de “anelzinho”” e você recebe o anel deixado numa passada de mão. No carnaval de crianças, a mãozinha que se lhe estendia a menina de fantasia.
                        Passam-se os tempos, mas a imagem desse desejo fica num quadro suspenso na memória.
Quanto mais se vai dominando. Os códigos linguísticos, suas combinações e resultados, é que a censura se impõe. É preciso driblá-los, para dizê-los de outra forma. Vai que em decorrência disso, antigamente  funcionava-se  como cascata, exuberante. Tirar leite de pedras. É isso.  Escrever é também extrair-se. Foi-se época de transborde. Conhece-se um pouco do código. Daí que vai assim mesmo, conforme sai, ora encolhido, ora avançando sinais. Depois, volta-se ao ponto.  A cachoeira se contém. 
O caso do toque de mãos principia um jeito de gostar.  Dito isso, passa-se bem adiante, aqui e acolá, a maciez dos teclados segue aos borbotões, invadindo sinais.

quarta-feira, 28 de março de 2018

Anelzinho



Você é criança. Uma mão de menina em sua mão. Cantiga de roda ou um carnaval de crianças. Aquela mão ali na sua mão. Você ainda não sabe dizer se ela é bonita ou feia. Você sabe dizer que é bom aquele enlace. Para o resto da vida.



Eu estava tomando uma com os amigos num barzinho de sempre, quando, sem que me desse bem por isso, a um cano do balcão, me vi de conversa com uma senhora que ali fizera compras e comigo ficou numa prosa em que não cabia mais ninguém. Aos olhos dos companheiros eu já devia estar meio andado nas cervejas: Nei George com aquela mulher judiada; coisas dele.



Coisas minhas:



- Por onde você andou?



- Moro aqui toda vida.



Falou o nome do bairro. Mas nosso assunto era outro.



- Você se lembra?



- Me lembro sim, e te vejo sempre por aqui, mas nunca pensei que você viesse falar comigo.



Não quis perguntar muito sobre sua vida, que imaginei em sua aparência de mulher sofrida, em contraste com que me apresentava, para meio espanto dos que em volta reparavam em nosso diálogo.



- A imagem que eu tenho sua ainda é aquela; custou um pouco te descobrir depois de tanto tempo.



- Pois eu sempre te vejo aqui com amigos.



- Cadê o colar?



Ela deu um sorriso de nostalgia mostrando ausência de alguns dentes, com a mão em socorro imediato:



- Oh, meu Deus; eu tinha roubado de minha prima minutos antes de brincar com você.



Eu devia ter uns nove ou dez anos, e a mãozinha dela encontra até hoje aquecendo a minha, com aquele colar  que ela disse ter “roubado” da prima naquele Carnaval de 1971.



Por isso, ninguém entendia Nei George; mas notei que o garçon, que me viu levar sua freguesa até a porta de saída, com um olhar prolongado nos seus passos com tentativa de elegância, chorava:

.

- Ô doutor, apanha feito o cão do marido..., me  explicou, com lágrimas o garçom.